02
Minjeong acordou sobressaltada. Tinha ouvido uma voz sussurrar em seu ouvido. No entanto não havia mais ninguém em seu quarto. Ela não conseguia se lembrar do que a voz tinha dito, mas não deu muita importância para aquilo que julgou ter sido apenas um sonho.
Com um bocejo, ela se levantou da cama e caminhou até o banheiro. Sentia sua mente distante, como se estivesse desconectada da realidade. Era uma sensação estranha. Foi até a cozinha do apartamento e abriu a geladeira para pegar uma jarra de suco.
Tinha a sensação de que era fim de semana, mas estava quase certa de que precisava ir ao teatro. Tomada por uma súbita ansiedade, deu alguns passos para a esquerda e espiou dentro do quarto. Ao ver o estojo do violino pousado junto à pequena escrivaninha, deu um suspiro de alívio.
Foi então que percebeu que algo havia mudado.
O largo pijama de seda que estava usando deveria ter chamado sua atenção, uma vez que não era seu, mas não chamou. Em vez disso, ela se concentrou no que estava visível a sua volta. Ela estava enxergando, sem nenhuma limitação, coisa que não acontecia havia mais de uma década.
Ela gelou. Isso não deveria ser possível, seu médico havia sido estritamente claro sobre sua condição. Sem reversão. No entanto, era exatamente o que estava acontecendo.
Minjeong quase desabou no chão de tão assustada, mas ficou ocupada demais observando suas mãos, flexionando os dedos como se para acreditar no que via. Depois deu uma volta pelo apartamento, absorvendo silenciosamente todos os detalhes que lhe foram ocultos pelos últimos anos e sentiu um entusiasmado triunfo diante do que sabia ser impossível.
Minjeong fechou os olhos e tentou se lembrar de qualquer coisa relacionada à noite anterior, qualquer coisa que pudesse servir de pista para aquele súbito e inacreditável acontecimento. Tirando a voz sussurrada cujas palavras não conseguia distinguir, não encontrou nada em que se agarrar.
Quando por fim abriu os olhos e observou seu apartamento, quase chorou. Seus olhos finalmente conseguiam ver as cores e as formas do mundo a sua volta. Todo o dano que lhe fora causado naquela noite mais do que terrível tinha se curado.
Foi até a cozinha e pegou a correspondência que estava esquecida sobre o balcão. Abriu o envelope e leu com facilidade. Seus olhos se arregalaram. Ela não deveria ter conseguido ler as palavras impressas no papel. Só que elas estavam perfeitamente nítidas.
Isso não pode estar acontecendo, pensou. Estou tendo alucinações.
Minjeong pôs a correspondência sobre a bancada e correu até o banheiro. Viu seu reflexo no espelho e ficou em silêncio.
A mulher que a olhava de volta tinha cabelos castanhos e brilhantes. Os olhos eram de um castanho marcante, e o belo rosto tinha um desenho perfeito. Assombrada, tocou o próprio rosto, as faces e a boca com o lábio inferior carnudo.
Sabia como deveria ser a sua imagem. No entanto, fazia anos que não a vislumbrava daquela forma.
Aquilo era uma alucinação. Não havia outra explicação científica.
Tentou se lembrar do que havia feito no dia anterior. Lembrava-se de ir ao teatro, mas não conseguia recordar mais nada depois disso. E se tivesse sido drogada?
Minjeong puxou a camisa do pijama por cima da cabeça e parou para examinar o tecido. A peça azul marinho tinha uma fileira de botões de pérola antigos que descia do pescoço até a cintura. Em suma, além de ser desconhecida, aquele pijama parecia ser extremamente caro. E mais uma vez ela se questionou sobre o fato de ter sido drogada.
Com medo de talvez ter sido agredida, Minjeong tirou a calça do pijama examinou a pele em busca de sinais de trauma. Suspirou de alívio quando tudo pareceu normal.
Vestiu a camisa do pijama e pegou o celular. Uma olhada para a tela lhe revelou que era segunda-feira de tarde. Não sabia como poderia ter esquecido o fim de semana inteiro, mas se quisesse estar no Teatro Nacional às cinco precisava se apressar e não poderia continuar se perdendo em devaneios.
Tomou o suco de um gole só e vestiu uma calça jeans e um moletom. Tentou encontrar os tênis prediletos, mas desistiu depois de alguns instantes e acabou calçando um par que estava jogados dentro do guarda-roupa. Mais tarde procuraria os tênis debaixo da cama.
Ao pegar o estojo do violino e trancar a porta do apartamento, Minjeong desceu a escada depressa. Em geral, ela usava apenas o elevador por julgar ser mais seguro. Naquela manhã, optou por fazer algo completamente novo.
Era libertador conseguir se mover sem nenhuma limitação visual. Sentia como se um novo mundo estivesse se abrindo diante dos seus olhos e ela precisasse explorá-lo ao máximo. Sem pensar muito, seguiu correndo do apartamento até a Ponte Bampo. Uma brisa suave acariciava suas faces e os cabelos que esvoaçavam. Sentia-se mais forte, mais ousada, mais confiante. Teve a impressão de ter ganhado uma nova chance e um novo futuro.
A cada passo, ia ficando menos e menos preocupada com o motivo por trás de tão dramática reviravolta de sua má sorte.
Consequentemente, não reparou na misteriosa figura que a seguia desde que saíra do prédio.
Aquele era o dia mais feliz da sua vida.
\[...]
Quando finalmente chegou ao Teatro Nacional, Minjeong cumprimentou alguns colegas com um aceno tenso e seguiu até os bastidores. Deixou-se cair em uma das cadeiras presentes ali e correu os olhos pelo recinto sem janelas. Mesmo com o ruído das pessoas trabalhando nos bastidores e no palco, o lugar estava calmo em comparação com a atmosfera animada que existia na hora dos espetáculos.
No entanto, um burburinho de conversas ecoava pela sala, e de vez em quando um instrumento era afinado; seus colegas não tiravam os olhos dela. Mais de uma pessoa foi até ela querendo saber o que tinha acontecido no fim de semana e porque ela estava enxergando. Minjeong teve que inventar algo sobre um tratamento milagroso para se livrar das perguntas. Depois disso, os colegas continuaram a olhar na sua direção com expressões que iam de surpresa a censura.
Ela ignorou todos e abaixou a cabeça entre as mãos.
Estava encrencada.
Não fosse o fato de sentir dor ao se beliscar, teria pensado que estava tendo um pesadelo. Os acontecimentos eram inacreditáveis demais para que pudesse explicar. Em primeiro lugar, a súbita e espontânea cura de sua deficiência. Em segundo, seu sumiço e a perda de memória.
Havia também a possibilidade de sua personalidade estar levemente mais forte.
Sem dizer nada, colocou o estojo do violino sobre uma mesa e saiu. Apesar de ter que se apresentar no palco para ensaiar, andou na direção oposta, até as escadas que davam acesso aos escritórios. Com um suspiro, se preparou mentalmente para a conversa que teria com o diretor do espetáculo e seu chefe. Foi então que viu Sunghoon andando na sua direção.
– O que aconteceu com você? – Seu rosto estava tomado pela preocupação.
– Isso que eu gostaria de saber.
Sunghoon soltou um palavrão.
– Venha. – Ele segurou Minjeong pelo braço. – Cadê sua bengala?
– Não preciso mais.
– Isso não tem graça. – Sunghoon olhou para ela, furioso.
Ela apontou para os olhos e demonstrou rapidamente que podia visualizar tudo a sua volta.
– Caralho – disse Sunghoon entre dentes, arqueando as sobrancelhas. – O que está acontecendo?
Antes de Minjeong ter tempo para arriscar uma resposta, ele segurou-a pela mão e conduziu-a até um canto tranquilo.
Sunghoon soltou sua mão e cruzou os braços em frente ao peito, mantendo-se bem perto dela.
– Se você estivesse envolvida em algum problema, me diria, não diria?
– Não estou envolvida em problema nenhum.
– Como assim? Sou seu amigo e não faço a menor ideia do que aconteceu. Droga, você não precisa mais de bengala e desapareceu o fim de semana inteiro. Pensamos que estivesse doente. O diretor Kim ligou para o seu celular, mas você não atendeu. Fiquei bem preocupado, então Chaewon e eu passamos na sua casa no domingo. Um dos seus vizinhos disse que não via você há dias.
– Desde que eu cheguei ao teatro já me fizeram várias perguntas. Estão confusos, claro, e como eu não consigo responder às perguntas deles fico parecendo que estou mesmo escondendo algo. – Ela esfregou os olhos. – Não tenho a menor ideia de onde estava no fim de semana passado. Minha memória desapareceu.
– Você não se lembra de nada do fim de semana passado? – A voz dele soou preocupada.
– Nada desde o ensaio de sexta-feira a noite. Talvez alguém tenha me feito tomar alguma coisa depois que finalizamos. – Ela evitou seu olhar e observou os próprios pés.
– Isso é impossível. – Sunghoon disse em tom firme. – Quem estava servindo as bebidas era eu, lembra? E conhecemos todo mundo aqui. Ninguém poderia ter te dado nada.
– Então por que não consigo me lembrar?
– Não faço a menor ideia. – A expressão dele ficou ainda mais tensa. – O diretor Kim quer falar com você.
Kim Namjoon era um renomado compositor musical e atual diretor de *Possuído*, espetáculo que iria entrar em cartaz na próxima estação. O Teatro Nacional com certeza estava mais do que satisfeito em exibi-lo. Podia cobrar um preço adequado para os convidados apreciarem o evento e usar o dinheiro para financiar alguns dos espetáculos futuros que aconteceriam ali.
– Eu já imaginava. – Disse ela, resoluta.
Sunghoon indicou com a cabeça a sala do diretor.
– Eu disse a ele que você tinha voltado, mas não falei nada sobre o seu sumiço.
– Preferia quando ninguém prestava atenção em mim.
Sunghoon deu um passo mais para perto e se inclinou até seus olhos ficarem na mesma altura que os dela.
– Olhe aqui: estou preocupado com você, e o diretor Kim também. Faz dias que estamos estressados pensando que fim você tinha levado. – Ele deu um apertão encorajador no seu braço. – É melhor você ir. Ele quer vê-la agora mesmo.
– Ele vai me suspender, não vai?
Sunghoon tornou a apertar seu braço.
– Não sei. Mas deve haver alguma explicação razoável para o que aconteceu. E tenho certeza que ele não vai querer dispensar uma musicista talentosa como você.
Ela lhe deu um sorriso desanimado antes de percorrer a curta distância até a sala do diretor Kim.
Quando se aproximou, percebeu que a porta estava aberta. Um homem que não reconheceu falava bem alto, e sua voz vazava para o corredor.
– Como assim não tem nenhuma informação, Namjoon?
– Seokjin, tente manter a calma. – O diretor Kim disse.
– Olha, desculpe. – A voz do homem, Seokjin, soou mais contida. Ele passou uma das mãos sobre os cabelos. – Mas eu tenho prazos para cumprir e essa situação está sendo estressante.
– E agir dessa forma não melhora muita coisa. – O diretor Kim deu de ombros.
– Quer dizer que todos os patrocinadores do Teatro confirmaram presença na estreia do espetáculo no próximo mês. Isso inclui Yu Jimin?
– Quem? – O diretor Kim não pareceu entender.
– A jovem que falou comigo no último evento para patrocinadores. Eu a indiquei e você disse que era uma reclusa da região que tinha feito uma doação significativa ao Teatro para ser convidada.
– Não conheço ninguém com esse nome.
Tomando cuidado para não ser vista, Minjeong se aproximou mais da porta.
– Namjoon, você reconheceu a mulher e pediu para a sua assistente verificar como ela se chamava. Lembra? É mais baixa do que eu, deve ter 1,70 metro, morena. Coreana, de Gyeonggi, acho. Você disse alguma coisa sobre ela ter financiado a última restauração do Teatro.
– Seokjin, amigo, não conheço ninguém chamada Yu Jimin.
Minjeong ouviu um farfalhar de papéis.
– Aqui está a lista de patrocinadores. O nome dela não aparece. Eu com certeza não sei de nenhuma ligação entre essa coreana e a reforma do Teatro. O Teatro Nacional é propriedade pública, pertence ao distrito. Foi o governo quem financiou a restauração em parceria com um grupo seleto de patrocinadores coreanos.
Frustrado, Seokjin soltou um palavrão e Minjeong ouviu o barulho de uma cadeira sendo arrastada.
Sem pensar no que estava fazendo, avançou até a soleira da porta.
– Com licença.
Aflita, olhou para o administrador do Tetaro e em seguida para seu visitante, que estava em pé junto à cadeira caída com os punhos cerrados.
Ele era mais jovem do que muitos dos patrocinadores e doadores importantes que de vez em quando visitavam o Teatro. Era um homem alto e bonito, de cabelos negros e olhos castanhos penetrantes. Estava de blazer preto e calça jeans, e usava sapatos de couro marrom.
Sua postura era tudo, menos casual.
– Pois não? – Assim como a expressão, seu tom não foi nada amigável.
– Bom dia. O diretor Kim pediu para falar comigo – respondeu Minjeong em um coreano formal. O homem deu um passo para o lado, e Minjeong viu, atrás dele, Namjoon sentado diante de sua mesa.
– Minjeong. – Namjoon fez um gesto para que ela entrasse e voltou a atenção para seu visitante. – Amigo, por favor, mantenha a calma. Aproveite essa semana de folga e deixe que eu me preocupo com esse assunto.
– Estou me preocupando com esse assunto, Namjoon, porque faz parte do meu trabalho como publicitário. – Seokijin falou entredentes. – Juro que conheci Yu Jimin. Ela se comportou de um jeito muito estranho no evento, e você e eu conversamos a respeito depois. Parecia deslocada em relação aos outros convidados, e, embora seja jovem, é uma mulher com muito dinheiro. Alguém precisa verificar os registros de doações e encontrar a contribuição dela. Você me disse que ela doou vários milhares de wons ao Teatro.
Seokjin pôs os punhos sobre a mesa de Namjoon e se inclinou na sua direção.
– E se nem você nem os administradores cuidarem desse assunto, eu vou ter que lidar com o fato se que uma das principais patricinadoras não vai comparecer à estreia do espetáculo.
Os dois amigos trocaram um olhar demorado.
Minjeong se remexeu, pouco à vontade, e olhou para trás na direção da porta aberta. Sua vontade era desaparecer.
– Tudo bem – disse Namjoon por fim, acenando para o amigo. – Fale com Park Jihyo. É ela quem cuida do setor administrativo do Teatro.
– Obrigado. – Seokjin se empertigou e, sem dizer mais nada, saiu da sala.
Minjeong aguardou enquanto o diretor Kim fechava os olhos e se curvava para a frente, quase como se estivesse fazendo uma oração.
Por fim, ele abriu os olhos e indicou uma cadeira com um gesto.
– Kim Minjeong. Explique a súbita mudança na sua condição. E me diga onde esteve no fim de semana passada.
Minjeong se sentou, respirou fundo e começou a contar sua história.
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