Betina: Parte IV
- Atenção, esse capítulo contém uma cena não explícita de assédio moral. Se você se sente desconfortável com esse tipo de conteúdo, pule as partes em negrito! -
A semana seguinte acaba se revelando o que se poderia chamar de "uma semana de cão". Já na segunda-feira, as notas finais de matemática são afixadas no mural, e a minha é vermelha. Raspo o papel com uma lapiseira sem grafite, pra que as outras pessoas não consigam contemplar minha ruína. Nicolas vem andando e me pega no flagra.
— Nota ruim? — Pergunta.
— A pior das piores. — Respondo.
— Por que você não vem pra minha casa estudar, à tarde?
Mais uma vez, minhas suposições sobre ele me traem. Nicolas nunca me deu motivo algum para duvidar de sua capacidade escolar, mas, ainda assim, um pequeno diabinho sussurrava em meu ouvido, sem que eu me desse conta, que um menino que não tem o apoio dos pais, que é rejeitado por boa parte da escola, e que tem um visual um tanto desleixado não pode ser um gênio, certo?
Errado! Grito com esse diabinho. Passo cinco minutos me odiando por fazer com ele o que sempre detestei que fizessem comigo: assumissem coisas só pelas aparências, ou pelos boatos. Uma perfeita hipócrita, senhoras e senhores.
— Seria ótimo. — Respondo, por fim. — Se você não estiver ocupado.
— Não estou.
Dois dias depois, passamos a tarde estudando. E, pra ser totalmente honesta, não entendo pelo menos a metade do que o Nic me explica. Uma coisa fica clara, porém: ele sabe do que está falando.
— Não pensei que você fosse tão bom com números — acabo deixando escapar.
— As pessoas e seus achismos — responde ele.
— Desculpa. Não foi minha intenção.
— Eu sei — ele diz, arranhando, com uma das unhas compridas, a quina da escrivaninha.
Pelo olhar de tristeza em seu rosto, sei que meu comentário foi ofensivo. E sei também que pedir desculpas não vai resolver nada. Tenho medo de tentar consertar e acabar causando mais dano ainda, por isso, dou uma desculpa qualquer, como "já está ficando tarde", ou qualquer coisa assim, me despeço e vou embora.
Faltam quatro quadras para chegar na minha rua, quando vejo um cara se aproximando. Demoro a distinguir quem é, mas os movimentos dele ao longe já me deixam incomodada. O sujeito anda gingando, como se fosse o dono e proprietário da rua, e, quem sabe, do mundo inteiro. Meu cérebro dispara um alerta. Forço as vistas e confirmo: aquele é ninguém menos que Lucas, a pessoa mais detestável da escola.
A Micaela já me contou todo tipo de coisas envolvendo o dito cujo. Eu mesma tive minha cota de experiências desagradáveis com ele e o que posso resumir é que ele é fofoqueiro, inventa coisas sobre as pessoas – sobre as meninas – e sempre é agente de situações embaraçosas. No fundo, quero acreditar que ele não seja realmente perigoso, só inconveniente. Alguém que gosta de chamar atenção. Mas a linha entre esses dois tipos é tênue demais.
A poucos metros de mim, ele atravessa a rua, e começa a andar frente a frente comigo. Penso em correr, mas consigo ouvi-lo gritando em minha mente "o que foi, tá com medo de mim?", enquanto ri, debochado. E eu estou. Mas não vou dar a ele o prazer de saber disso. Ergo o queixo e continuo pisando firme. Conforme nos aproximamos, percebo que ele é bem maior do que eu lembrava. Bem maior visto de perto.
Quando o inevitável encontro entre nós acontece, balanço a cabeça muito de leve, cumprimentando-o. Olho bem nos olhos dele.
— Oi, Betina — ele fala, e estaca na minha frente.
— Oi. — Respondo. Ainda não estou apavorada, somente um tanto quanto desconfortável.
— A gente nunca se falou, né? — Ele pergunta.
— Acho que não.
— É uma pena. Me falaram que você é facinha.
Isso é o que basta pra me deixar puta da vida. Começo a tremer. Já passei por situações assim antes, e nunca sei como reagir. Quero dar um soco na cara desse otário, mas tenho medo dele devolver. Apenas vá embora, digo para mim mesma. Tento contorná-lo e ir. Ele é mais rápido e me fecha contra o muro atrás de mim. Penso em gritar, xingar. Acabo não fazendo nada. Ele leva a mão na alça da minha mochila, a centímetros de distância do meu peito.
— Você tem andado com aquele merdinha Nicolas, não é?
— Cala a boca! — Grito. Era para soar firme, intimidante, contudo, minha voz sai como o grito de um cachorro que levou um chute.
— Seus pais sabem que vocês dormem juntos? — Ele pergunta. Mal consigo ver seu rosto, estou cega de raiva.
— Isso não é da sua conta! Vai se foder. — Continuo gritando, com a mesma voz esganiçada.
— Eu vi ele indo pra sua casa no sábado, com a mochilinha nas costas — conta, entrelaçando os dedos na alça da minha mochila e apertando-a entre os dedos. Como ele viu isso? Será que estava me espionando, ou algo do tipo? — Daqui a nove meses a gente vê o resultado.
Lanço para ele meu olhar mais mortal. Já tendo se divertido o suficiente, ele solta minha mochila, relaxa o corpo, e diz, soprando aquele bafo nojento na minha cara:
— Me liga qualquer dia. — E vai embora.
Estou tremendo, quero chorar, e nunca me senti tão humilhada na vida. Eu nem conheço esse cara, quem ele pensa que é? Passo os próximos minutos o odiando com todas as minhas forças. Odiando que uma pessoa se ache no direito de abordar uma desconhecida na rua desse jeito.
Mais tarde, no banho, quando já estou mais calma, recrio a situação na minha cabeça. Imagino que meto um chute nas bolas dele. Ou cuspo na cara dele. Eu não sei. Na vida real, sei que a fiz a coisa mais prudente: nada. Poderia ter apanhado, ter sido abusada, vai saber. Mas sou a rainha da minha imaginação, e o torturo de todas as maneiras que consigo criar.
Não consigo afastar o terrível pensamento de que eu não tinha como ganhar naquela situação. Se ficasse quieta, ele saberia que sua investida estava funcionando. Se tentasse revidar, talvez só tornasse tudo mais divertido, sob aquela lógica distorcida. Não importa o que eu fizesse, ele sabia que tinha exatamente a arma necessária para me ferir, e a usaria sem piedade, enquanto que eu não tinha nada contra ele.
Na manhã seguinte, nos cruzamos na escola. Pega de surpresa, não consigo refletir sobre a melhor atitude, e, por instinto, abaixo a cabeça. Meu dia acaba ali mesmo. Não vi a expressão em seu rosto, mas apostaria num sorriso debochado, de quem foi bem sucedido em mais um dia perpetuando seu reino de terror.
Nic me encontra um pouco antes da aula começar. Estou tensa, com os dentes e os punhos cerrados. Ele me pergunta o que aconteceu. Se eu contar, provavelmente vou desmoronar, e minha fraqueza será exposta. Fico na dúvida entre a vulnerabilidade e fingir que o que vem de baixo não me atinge. Não deveria me atingir, certo?
Fico tanto tempo calada, que o Nic me abraça e diz, baixinho:
— Tudo bem. Não precisa me contar se não quiser.
O abraço de volta. E fico calada.
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