Betina: Parte I

Meus olhos estão fechados. Enxaguo com calma a segunda camada de shampoo usada, na tentativa de tirar o cloro que grudava meus cabelos. Uso os dedos para tirar o excesso de água escorrendo sobre meus cílios, e abro os olhos. Levo a mão para onde um pote grande deveria estar, mas só encontro o vazio.

Cadê o creme? Droga. Devo ter esquecido lá fora. Encosto os dedos na toalha, com a intenção me enrolar e sair atrás do creme, quando noto, no compartimento em frente ao meu, um rosto semiescondido. Reconheço as sobrancelhas, é aquele cara Nicolas. Não o vi muitas vezes, mas por algum motivo inexplicável, um lance instintivo, gosto dele.

Deixo a toalha para trás e saio, espalhando água por todo o chão. Abro o pote de creme, abandonado ao lado da minha mochila, e pego uma generosa porção, que esfrego nos cabelos, teatralmente. Viro de frente outra vez, e aquele par de olhinhos ainda me observa. Olho diretamente para ele.

— Se você queria me ver pelada, bastava pedir. — Digo, levantando uma das sobrancelhas. Logo em seguida, volto para minha cabine e continuo a me ensaboar. Por cima do som da água do chuveiro, consigo ouvir o trinco da cabine em frente destravando. Não ouço mais nada, mas o imagino, na minha cabeça, andando na pontinha dos pés em minha direção. Depois, duas batidinhas ressoam na minha porta. Abro.

A expressão no rosto dele é de pura perplexidade. No meu, de puro divertimento. Ele tira a bermuda e a sunga ao mesmo tempo, tão rápido, que vejo apenas um lampejo de tecido preto voando até a parede da cabine, ao lado da minha toalha. Chego alguns passos pra trás, e nos esprememos no espaço limitado.

A água cai sobre os dois, molhando o cabelo comprido e escuro dele. Nicolas me lembra um corvo. Talvez pela combinação de seu longo cabelo preto-azulado e do nariz pontudo. De toda forma, é um visual que me agrada. Uma coisa meio "integrante de banda de rock antigo", ou sei lá. Penso em perguntar se ele toca algum instrumento, mas esse não é o momento apropriado para falar. Quem sabe depois.

Ele se aproxima, e entrelaça os braços na minha cintura. Faço o mesmo. Encosto os lábios nos dele, deixando a água acariciar nossos corpos. É uma sensação muito melhor do que eu esperava. Entrelaço os dedos em seus cabelos e puxo, de modo firme e delicado, e nosso abraço se aperta um pouco mais. Começo a sentir um "algo" se levantando contra a minha perna, mas, ao mesmo tempo, através do som da água caindo, escuto a porta do vestiário se abrindo de uma vez.

Me afasto e desligo o chuveiro. Ouço chinelos batendo contra o chão, e reconheço imediatamente aquele andado.

— Se veste — falo para o Nicolas, que sem pensar duas vezes, pesca a bermuda e veste com a mesma rapidez que a tinha tirado.

Dois segundos depois, ouço batidas fortes contra a porta. Não respondo.

— Betina, abre essa porta. — Continuo sem responder, e também não abro. — Eu sei o que você está fazendo aí. Consigo ver os pés de vocês. — Eu também consigo ver os dela. — Se enrola na toalha e abre, agora!

Faço o que ela mandou, ou ficaríamos aqui o dia todo. Ela olha de mim para Nicolas por alguns instantes. Está vestindo um short e a parte de cima do biquíni, tudo perfeitamente seco.

— Que necessidade é essa que você tem de se meter em encrenca? — Pergunta para mim. E como, diabos, eu poderia responder a uma coisa dessas? — Não é pra você andar por aí com esse cara! — Ela continua, frente ao meu silêncio.

— Quem falou? Eu gosto do Nic. — Respondo, lançando um breve olhar na direção dele.

— Gosta nada! Você nem conhece ele.

Essa é a deixa de Nicolas, que se aperta para passar entre nós duas, discreto como um gatuno, e quando dou por mim, ele desapareceu. Por um lado, fico com raiva dele me deixar aqui sozinha levando bronca. Por outro, se tivesse a oportunidade, teria feito o mesmo, sem tirar nem por.

— Vem — Micaela fala, segurando meu pulso e me puxando. — Você me disse, me prometeu, que queria criar uma imagem melhor aqui em Recanto das Pedras. Quando eu pisco, lá vai você, atrás de alguém como ele.

Essa última parte me desestabiliza. Até então, estava deixando Micaela me arrastar por aí e me dar sermão. Mas aí já é demais. Finco os pés no chão, fazendo-a parar também. Agora eu entendi tudo.

— Então... O Nicolas não é bom o suficiente para pessoas como nós? É isso? — Não sabia muito sobre ele, é verdade. Nem sobre essa cidade. Mas pelo que sabia, ele morava só com o irmão mais velho. Não sei o que tinha acontecido com os pais deles. E eu sabia que o Nic tinha fama de ser moleque piranha, mas eu até que gostava disso nele. Quero dizer, era meio bizarro que ele estivesse me olhando tomar banho... Mas, por outro lado, ele estava lá sozinho, parado. Ou seja, talvez a fama dele fosse um pouco exagerada, como a minha.

— O problema aqui não é o Nicolas. Ele não é meu primo, e eu não ligo a mínima pro que ele faz da vida. O problema é você, que...

Não espero ela completar a frase. A simples menção à expressão "o problema é você" já traz à tona meu pior lado. Com a mão livre, aperto o pulso de Micaela, o que segura o meu, e aperto com força, até os dedos dela se abrirem e me soltarem. Uma pequena aglomeração se formou na porta, de pessoas querendo ver do que se tratava a gritaria.

Devo estar com sangue nos olhos, porque Micaela puxa o braço que eu segurava com força e sai pisando alto, quase correndo. A conheço tão bem, que consigo até ver a garganta inchada, segurando o choro. Com o fim do acontecimento possivelmente interessante, o resto das pessoas se dispersam também. Sozinha no vestiário, me ocorre que talvez Micaela tenha uma pontinha de razão. De alguma forma eu consegui causar uma cena no vestiário do clube, no meu primeiro evento de socialização.

Mas me acalmo durante o processo de me vestir e recolher minhas coisas. Passo a alça da mochila em um dos ombros e saio, com a toalha jogada no outro. Estou quase na saída, quando noto que a água escorrendo do meu cabelo está formando grandes manchas molhadas na minha camiseta. Coloco a mochila no chão, me dobro ao meio jogando o cabelo pra frente, e dou a primeira volta na toalha ao redor da cabeça. Uma perna esbarra em mim, e quase caio de bunda.

Levanto, indignada, dando a volta que faltava e ao mesmo tempo falando:

— Ei, otário, olha por onde anda!

Quando termino de levantar, vejo que o otário é ninguém mais, ninguém menos, do que o próprio Nicolas. Agora ele não me olha mais com surpresa, mas sim com um sorriso escancarado. Eu seguro uma risada também. Nicolas se aproxima, desenrola a toalha, que coloca de novo sobre meu ombro, e massageia meu couro cabeludo algumas vezes, fazendo os fios voltarem para o lugar. Depois, sussurra em meu ouvido:

— Deixa assim. Você fica mais bonita molhada.

Os pelos da minha nuca arrepiam. Eu respondo:

— Talvez a gente devesse se encontrar em outro chuveiro, qualquer dia desses.

— É só chamar — ele diz. 

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