∞ 4 - O POLÍTICO
ERA COMO SE HORAS TIVESSEM SE PASSADO. Mas, na realidade, o relógio contara apenas alguns poucos — e extremamente tensos — segundos. Ainda pressionados um contra o outro, com as respirações misturadas, Kensei e Mashiro se encaravam intensamente.
Ele pensou — talvez num misto de desespero e esperança, nascida de uma fé cega de que nada nem ninguém poderia separá-los — ter visto um relampejo de reconhecimento nos olhos amendoados dela.
Mas provavelmente era só um delírio.
Novamente, ele levou a mão ao rosto dela. Mas parou antes que pudesse, de fato, tocá-la. Como da última vez, seus dedos estavam sujos de sangue. Kensei se viu fechando as mãos em punhos e deixando os braços penderem ao lado de seu corpo.
Um segundo depois ela se afastava e ele precisava se defender, com o antebraço, do golpe que ela lhe desferira com o pé. O impacto do chute o fez se desequilibrar por um momento — mas talvez o problema tenha sido a forma como ele fora pego de surpresa.
Suas interações com Mashiro não costumavam passar de bate-boca e algumas ofensas mais grosseiras e mesmo que ela sempre testasse sua paciência e ele ameaçasse matá-la, tudo sempre fora da boca para fora.
O Hollow recuou, voltando para as profundezas de seu ser. A cor de suas escleras voltou ao costumeiro tom esbranquiçado e as íris adquiriram sua natural tonalidade castanha. A sede de sangue ainda era intensa e seu corpo ainda vibrava com a adrenalina, mas o monstro temia, acima de tudo, machucá-la.
E ainda que Mashiro fosse uma oponente capaz, ela não era páreo para seu Hollow.
Os dois se encararam por um momento, movendo-se em círculos, analisando a postura um do outro e tentando antever os movimentos — e mesmo no escuro do vestiário, era possível perceber a irritação crescente de Mashiro ao não encontrar abertura em sua postura.
Kensei agia como um espelho, mudando sua movimentação de acordo com a dela, pronto para se proteger de um possível golpe e para desarmá-la em seguida. Nem mesmo por um segundo, passava por sua cabeça atacá-la.
E com a adrenalina correndo rápido em suas veias, ele sabia que necessitaria ser extremamente preciso em seus movimentos e acabar aquela luta sem sentido antes que alguém se machucasse. De sua parte, ele não tinha problemas em sair dali com uma costela ou outra quebrada, mas ele jamais se perdoaria caso deixasse o controle lhe escapar por entre os dedos e acabasse por machucá-la.
"Quem é você?" ela perguntou, desferindo outro chute contra o plexo solar dele. Kensei posicionou os braços cruzados sobre a área, absorvendo o golpe. O impacto o fez dar dois passos para trás. Mashiro avançou sobre ele, atacando-o sem dó, com uma velocidade e precisão em seus movimentos que o fez se questionar se estava diante da mesma mulher preguiçosa com quem convivera por séculos e que só treinava quando era assim obrigada por ele. A cada golpe, ela fazia uma pergunta diferente.
Como você sabe meu nome?
De onde você me conhece?
Como você sabe onde eu moro?
Quem te deu meu endereço?
Kensei teve certa dificuldade para interceptar todos os golpes sem feri-la no processo. Era sempre muito difícil lidar com um oponente furioso como ela estava naquele momento. Mas ao mesmo tempo em que a fúria conferia uma força extra a um lutador, ela também o roubava da capacidade de análise crítica da situação. No último movimento, em um soco cujo destino era seus rins, ele viu uma abertura em sua postura e usou aquele mísero segundo para contra-atacar.
Adiantando-se, ele envolveu o pulso dela com uma mão e torceu o braço dela atrás de suas costas. A ação rápida fez com que ela perdesse o equilíbrio. Com um guincho de raiva e frustração — e provável desconforto —, ela tentou acertá-lo com uma das pernas, mas ele já havia antevisto tal tentativa e deslizara uma coxa entre as dela, prendendo-a efetivamente no lugar.
Kensei a pressionou contra um dos pilares de madeira e empurrou os pés dela a uma distância que a manteria desequilibrada e completamente à mercê dele.
Tentou se virar para encará-lo, mas o movimento fez não apenas com que o lenço que usava rasgasse, mas com que ele pressionasse uma mão contra a parte inferior das costas dela, mantendo-a no lugar. Mashiro conseguiu apenas virar o rosto para encará-lo numa posição que parecia extremamente desconfortável.
Por um momento, a expressão a dominar sua face o fez se perguntar se ela gritaria naquele tom de voz agudo e ensurdecedor que só ela tinha. Não querendo atrair a atenção de ninguém — pois finalmente conseguira um minuto a sós com ela —, ele colocou uma de suas mãos sobre os lábios cheios, calando-a com sucesso.
"Mashiro, sou eu. Kensei. Você me conhece."
A forma como as costas dela se retesaram e a respiração ficou mais pesada contra sua mão o fez pensar que talvez — mesmo que não passasse de uma crença tola — ela se lembrasse dele. Que ao menos seu inconsciente se lembrasse.
Afinal, por mais que a mente se esquecesse, o corpo dificilmente se esqueceria de tantos anos de uma química fantástica. Mesmo que não pensassem conscientemente nisso, seus corpos se moviam em perfeita sincronia.
"Você sabe que me conhece," murmurou contra a orelha dela.
Os lábios dela se moveram contra sua mão, fazendo-o com que um arrepio percorresse sua espinha e o efeito da droga retornasse com total efeito. Envergonhado e enjoado com sua reação corporal diante de um gesto tão mínimo, Kensei se afastou antes que ela pudesse sentir sua ereção pressionando contra a parte inferior das costas dela.
Com a pouca distância — havia pouquíssimo espaço entre uma pilastra e outra —, ele também teve que soltar os braços dela. Mashiro se virou para encará-lo e o brilho de uma lâmina conhecida o fez arregalar os olhos.
Tachikaze.
Mas Kensei pagaria caro pelo mísero segundo de distração.
Logo, ela pressionava a lâmina contra sua garganta novamente e murmurava, "Eu não conheço ninguém com esse nome idiota."
九
Aparentemente, alguém da Polícia de Edo havia feito um acordo com Zaraki Kenpachi, um acordo que o beneficiara em demasia, pois o homem ignorara por completo o fato de que ele atirara contra um de seus subordinados.
Ikkaku apoiou o braço de Yumichika sobre seu ombro e o segurou na altura do peito, de forma a ampará-lo.
Os demais seguranças sequer se moveram.
Zaraki murmurou algo como limpem essa merda aí e saíra na companhia de Yachiru sem sequer se importar com o policial parado à sua frente.
Shuuhei pressionou os lábios numa linha reta, ciente de que aquele comportamento arrogante significava apenas uma coisa: caso encontrassem qualquer prova contra ele naquele lugar, nada poderia afetá-lo.
Resignado, ele abaixou as duas armas e partiu em busca de Mashiro.
Quando adentrou o vestiário, encontrou o foragido de cabelos brancos posicionado contra uma das pilastras e Mashiro pressionando a lâmina que ela encarara intensamente mais cedo contra a garganta dele.
A cena teria qualquer pessoa intimidada, pois sua companheira de trabalho era uma lutadora tão habilidosa com armas brancas quanto era com o próprio corpo. Ao invés disso, uma das mãos do homem estava posicionada sobre a dela e seus rostos estavam perigosamente perto.
Os olhos de Shuuhei se escureceram quando ele viu outra das mãos dele deslizarem por sobre a parte inferior das costas dela antes de puxá-la pelos quadris arredondados contra seu corpo.
Naquela posição incrivelmente íntima, era difícil dizer onde o corpo dela começava e o dele terminava. De onde estava — e com a porca iluminação do ambiente —, Shuuhei quase não conseguiu ver quando a mão dele — certamente manchada de sangue —deslizou por dentro da jaqueta e da blusa que ela usava.
Com a outra, ainda posicionada sobre a mão dela, ele pressionou a lâmina contra sua própria garganta.
"Faça." A voz saiu rouca. Se pelo fato de ter um objeto pressionando suas cordas vocais ou pelo desejo, Shuuhei não saberia dizer. "Mate-me, Mashiro."
Quando ela não conseguiu mover o braço — e ele não conseguia entender a razão pela qual ela parecia completamente paralisada —, o foragido de cabelos brancos abaixou ainda mais o rosto, fazendo com que a ponta de seus narizes se tocasse.
Ele parecia prestes a beijá-la. E ela — para seu profundo desespero — parecia prestes a deixá-lo.
Quando ele roçou os lábios contra os dela, Shuuhei sentiu o sangue ferver em suas veias.
Chutou uma das lixeiras e apontou a arma contra a cabeça do foragido, certo de que dessa vez não hesitaria. Mas suas mãos tremeram e — com o barulho praticamente ensurdecedor do eco gerado pela colisão de seu coturno contra a lixeira —, os dois se afastaram.
"Hisagi-kun."
Mashiro o encarou, completamente atônita.
O momento foi o suficiente para que o foragido a desarmasse e a empurrasse contra ele, fazendo com que Shuuhei tivesse que abaixar a arma e estender uma mão para ajudá-la a se equilibrar — ajuda que ela prontamente recusou. Nesse intervalo brevíssimo de tempo, o foragido cruzou o vestiário e se posicionou para escapar pela janela. Antes de fazê-lo, no entanto, ele se voltou para Mashiro e comentou num tom que fez com o corpo de Shuuhei gelasse.
"Quando se lembrar, você saberá onde me procurar, Mashiro."
九
O sangue de Kensei corria rápido por suas veias, aquecendo seu corpo de tal maneira que ele sequer sentiu o vento gelado contra sua pele. E ainda que tivesse colocado o capuz sobre os cabelos brancos, ele não estava, de forma alguma, incomodado pelos pingos de chuva grossos que caiam do céu e o encharcavam.
Seu corpo ainda cantava com a melodia entorpecente da adrenalina e da excitação.
Não fosse por Shuuhei — aquele fedelho estava sempre a atrapalhá-lo —, teria feito Mashiro encarar a verdade.
Sua mente lhe dizia estava enganado.
Que ela não poderia se lembrar dele.
Ninguém mais se lembrava.
Mas seu corpo — seu Hollow, seu âmago, seus instintos, seu coração — lhe contava outra história.
O fato de que ela possuía Tachikaze selada na forma de sua shikai...
O fato de que ele lhe dera carta branca para cortar suas cordas vocais e ainda assim ela hesitara...
O fato de ele roçara seus lábios contra os dela e ela lhe correspondera...
Tudo isso o enchia de esperança.
Estava tão imerso nas possibilidades que quase não percebeu que estava sendo seguido novamente.
Estralou os dedos, pronto para se envolver em outra briga. Sua primeira havia sido interrompida prematuramente e era desnecessário dizer que sua interação com Mashiro o deixara com uma ereção dolorosa. E ainda que bater em seu stalker não fosse lhe dar tanto prazer quanto fazer amor com Mashiro, ele esperava que a surra fosse suficiente para aliviar um pouco dos sintomas da droga que ainda corria em suas veias.
Entretanto, tão logo se voltara para encarar Kira, ele acenara com a cabeça, finalmente reconhecendo que, sim, estivera a segui-lo e lhe dera as costas, caminhando no sentido oposto do Ryokan.
Com o sangue bombeando de forma quase ensurdecedora em seus ouvidos, Kensei resolveu segui-lo. Até se deparar com um carro de luxo. A porta jazia aberta e ele podia ver duas figuras sentadas no banco de trás, ainda que não pudesse identificá-las.
Enfiou as mãos ainda manchadas de sangue nos bolsos da jaqueta e se aproximou, parando com espaço suficiente entre eles.
Kira fez uma mesura com a cabeça antes de apontar para o carro.
Ele o encarou com os olhos semicerrados, sem tentar esconder a desconfiança que sentia. Quando o antigo tenente da Terceira Divisão finalmente abriu a boca, ele sentiu o sangue gelar em suas veias.
"O Primeiro Ministro Planetário Aizen Sousuke gostaria de trocar algumas palavras, Muguruma Kensei."
九
"Ai! Tá doendo!" Ela o encarou sobre o ombro, fazendo biquinho. "Mais cuidado, Hisagi-kun!"
Shuuhei afastou a agulha-laser da nuca de Mashiro e observou a linha esbranquiçada que se formava sobre a pele. Mais uma cicatriz. Não era a primeira vez que sobrava para ele a tarefa de remendar sua colega de trabalho. Mas ela fizera o mesmo por ele, incontáveis vezes.
Sua profissão estava longe de ser segura. E mais frequentemente do que gostaria, acabavam um na casa do outro tratando ferimentos e contando cicatrizes.
"Desculpa, mas falta só mais um pouco, Kuna-san. Aguente firme."
A verdade é que ele poderia ter terminado minutos antes caso Mashiro ficasse quieta — parecia uma impossibilidade — e caso ele conseguisse se concentrar.
Os ombros dela se retesaram diante de suas palavras sérias. Geralmente, sempre que ela fizesse biquinho, ele até tentaria manter uma face séria, mas invariavelmente acabaria sorrindo.
Achava-a charmosa.
Era difícil manter uma face impassível diante das costumeiras reclamações de sua companheira.
Mas tudo que Shuuhei conseguia pensar agora era na cena que encontrara no vestiário da casa de lutas no Distrito 80. Nem mesmo a voz manhosa de Mashiro conseguia apagar a imagem das mãos daquele foragido — criminoso, o homem era um criminoso, não importava que não tivesse infligido morte real aos seus companheiros de trabalho; companheiros que ele sequer gostava, é verdade, mas ainda assim colegas policiais — sobre ela, dentro de suas roupas...
...tocando-a de uma forma que ele sonhava há décadas.
Mas que nunca tivera coragem.
Aquele roçar de lábios — beijo, quase beijo, não saberia precisar — ficaria para sempre guardado em sua memória. Repetindo-se infinitamente.
Shuuhei sacudiu a cabeça.
O ciúme era um sentimento mesquinho e ingrato. Vergonhoso. E estava abaixo dele. Kuna Mashiro era antes de tudo sua amiga e ele não pretendia estragar sua amizade por um sentimento que não deveria ter lugar entre amigos e companheiros de longa data.
Entretanto, era difícil para ele aceitar a ideia de que a mulher que lhe parecia tão alheia aos seus sentimentos e à intensidade deles parecesse tão confortável com um completo desconhecido.
Por que o foragido não passava de um desconhecido, certo?
Com um suspiro cansado, ele terminou de correr a agulha-laser pelo corte, fechando-o com sucesso. Shuuhei teve que se conter antes que pudesse passar um dedo sobre a nova cicatriz, contornando-a.
Talvez fosse melhor voltar para casa.
Estava de cabeça cheia. Passar a noite na casa de Mashiro era uma má ideia.
Ficar perto de Mashiro quando estava tão confuso sobre seus sentimentos era uma péssima ideia.
Honestamente, ficar perto de Mashiro era uma péssima ideia quase sempre.
Ainda assim...
Ainda assim ele insistia.
E sequer sabia bem o porquê.
"Pronto," comentou, com a voz deveras cansada. A fadiga daquele dia — do medo que o tomara quando vira a ponta daquela katana pressionada contra a nuca dela, da raiva e da inveja que o invadira ao vê-la nos braços daquele criminoso e, por fim, da profunda depressão que se abatera sobre si ao refletir sobre a natureza de seus sentimentos por ela — se abateu sobre ele como dois asteroides colidindo a uma velocidade imperceptível a olhos humanos. "Kuna-san, você precisa ser mais cuidadosa."
Mashiro se virou para encará-lo, um sorriso matreiro a delinear seus lábios cheios. O tom de sua voz foi extremamente jocoso.
"Awww você ficou preocupado?"
Shuuhei não conseguiu encontrar forças em si para sorrir. Quando respondeu, seu tom foi sério.
"Sim. Eu..." Suspirou. Não custava ser honesto e direto ao menos uma vez na vida. "Eu fiquei preocupado, Kuna-san."
O sorriso de Mashiro só aumentou, o que fez com que ele temesse, por um segundo, o que viria a seguir. Os dedos dela tocaram sua bochecha, antes que ela o apertasse e murmurasse num tom ainda jocoso, mas igualmente feliz.
"Awwww como você é fofo, Hisagi-kun!!!"
Shuuhei sentia que sua bochecha seria arrancada de sua face se ela não parasse de puxar sua pele daquela forma.
Mas mesmo através do leve incômodo, ele se viu sorrindo.
Logo, a mão dela estacionava sobre seu rosto e sua própria mão pousava sobre a dela. Seus dedos se entrelaçaram. E Shuuhei se viu inclinando o próprio rosto para beijar a palma dela.
Antes que isso ocorresse, no entanto, ela deu dois tapinhas em seu rosto e perguntou, agora num tom mais sério.
"Hisagi-kun..." As mãos escorregaram de sua face e se entrelaçaram sobre a toalha branca que ela usara para secar os cabelos esverdeados. "Você acha que o Yamma-jii deu o caso pra Segunda Divisão?"
Por um momento, Shuuhei quase tomou a mão dela de volta entre as suas, porque qualquer contato físico — por mínimo que fosse — era como estar no paraíso.
"Não sei."
Colocou a cabeça entre as próprias mãos, pensando com um suspiro alto.
A verdade é que não fazia sentido que a Segunda Divisão, sua antiga área de atuação, responsável por lidar com o narcotráfico, assumisse o caso. Menos ainda que o Comandante Geral lhes desse um caso que claramente pertencia à Divisão de Dano Orgânico.
"Eu realmente não sei."
Mas Mashiro não mais o ouvia, sequer estava sentada no sofá ao seu lado.
Shuuhei levantou os olhos e a encontrou com a porta da geladeira aberta, vasculhando potes, em busca de algo para comer. Quando ela levantou a cabeça, com um sorriso no rosto, ele se perguntou por que não a forçava a procurar ajuda médica. Aquela incapacidade de focar em algo certamente tinha tratamento.
Quando voltou ao sofá, ela lhe estendeu um guardanapo enquanto colocava na mesa de centro um prato com incontáveis ohagi.
"É possível que alguém consiga arrancar..." Deu uma mordida no bolinho de arroz, fechando os olhos em profundo deleite, "o próprio cartucho e só depois esmagá-lo?"
Shuuhei franziu as sobrancelhas.
Não.
Casos de suicídio real eram raríssimos. O que geralmente ocorria era o suicídio da capa. Uma prática altamente popular entre adolescentes facilmente manipulados pela indústria de clones sintéticos.
Lembrava-se de ter recebido diversas propostas para se livrar de sua atual capa e adotar uma nova, sintética, que não carregasse as mesmas cicatrizes na face.
Mas Shuuhei, embora não fosse arrogante, não desgostava de sua aparência, tampouco. Estava... satisfeito. Era considerado atraente por muitas pessoas ao seu redor.
Mas admitia que estaria ainda mais satisfeito caso outra pessoa o achasse atraente.
"Não faz sentido," respondeu, esticando a mão para pegar ao menos um bolinho de arroz antes que Mashiro acabasse com todos eles.
"Sabia!" comentou de boca cheia.
Shuuhei franziu as sobrancelhas. Não conseguia entender de onde ela tirara a ideia de que fora suicídio real.
"Mas de onde você tirou que foi um suicídio?"
Antes de responder, ela encheu a boca de ainda mais bolinhos de arroz. Ele sacudiu a cabeça e pressionou o guardanapo contra os lábios dela, forçando-a a engolir primeiro e depois falar.
O olhar que ela lhe lançou teria feito qualquer um congelar, mas ele apenas sorriu, envergonhado, e deu de ombros.
"Hisagi-kun bobo. Óbvio que da autópsia preliminar, né."
"E como você conseguiu a autópsia preliminar?"
Mashiro deu de ombros.
"Talvez eu tenha pego do tenente Omaeda enquanto vocês dois discutiam?"
Shuuhei quase arregalou os olhos.
Algumas vezes Mashiro o surpreendia.
Mentira.
Mashiro sempre o surpreendia.
Como ela conseguia enganar todo mundo era um mistério para ele. Mas pensando bem, ele deveria estar acostumado aos humores dela e o que eles significavam. Não tinha como todo aquele escândalo feito na companhia de Omaeda ser natural.
Ela o encarou com os olhos semicerrados antes de se entupir com o último ohagi.
"O que você achou que eu tava fazendo?"
Shuuhei deu ombros.
"Reclamando que estava com fome."
E antes que ela pudesse reclamar ou chamá-lo de Hisagi-kun malvado num tom que provavelmente acordaria todo o prédio, ele emendou, como forma de se defender:
"É o que você sempre faz, Kuna-san."
Virou-se para encará-la, agora com o semblante sério.
"Você ainda tem a autópsia preliminar com você?"
Mashiro murmurou um uhum e minha jaqueta antes de se enfiar na geladeira atrás da sobremesa. Shuuhei não cansava de se perguntar aonde tanta comida ia parar, porque sua companheira era um verdadeiro saco sem fundo.
Ele se levantou do sofá e pegou uma pulseira no bolso da jaqueta laranja dela. Um segundo depois, ela se sentava ao seu lado e colocava o objeto ao lado do pulso dele, compartilhando a informação. Tão logo a barra indicando que a transmissão estava concluída ficou completa, ele pressionou dois dedos contra o objeto e seu olho direito brilhou com uma luz neon azulada.
Uma tela holográfica surgiu, contendo o relatório que ela pegara do tenente da Segunda Divisão.
Shuuhei franziu o cenho.
A menos que sua visão estivesse ruim — ou que ele estivesse muito louco — parecia haver uma falha na codificação. Quase imperceptível, mas para alguém acostumado a ler relatórios forenses e autópsias por mais anos do que se lembrava, aquele súbito desencontro de dados era facilmente identificado.
"Essa autópsia foi modificada..." comentou, enfiando a colher no pote de sorvete posicionado sobre as pernas de sua companheira. "Mas por quê?"
Mashiro deu de ombros.
"Só sei que a gente precisa de outra opinião. E de botar o cartucho intacto da outra vítima numa nova capa."
Ainda que concordasse, não via como alguém na Polícia fosse se envolver em um caso tão perfeitamente fechado, sob a acusação de uma dupla extremamente mal vista. Além disso, o relatório era claro. A outra vítima tinha o código Neo-C. Era absolutamente ilegal — quase um pecado cardinal — colocar o cartucho de alguém autodeclarado neocatólico numa nova capa, por quaisquer que fossem as razões.
Obviamente, muitos Neo-C acabavam por infringir as próprias regras de sua religião para se reunir com familiares em determinadas datas, especialmente no Natal e na Páscoa. Outros as infringiam por motivos mais egoístas, como simples festas de aniversário ou demais datas comemorativas.
Mas se a polícia ousasse pensar em agir para esclarecer um crime e encerrar um caso, o processo seria certo.
Hipocrisia?
Nah.
"Ninguém na polícia—
"E quem falou da polícia?"
Shuuhei sacudiu a cabeça.
Mashiro estava louca.
Não.
Mashiro era — sempre fora — louca.
"Isso é ilegal."
Mashiro sorriu.
Shuuhei sentiu um arrepio perpassar sua espinha.
"Que bom então que a gente não dá a mínima pra isso."
Shuuhei grunhiu.
Não sabia se era mais desesperador ver Mashiro ignorar trabalho ou vê-la empolgada ao ponto de passar por cima das leis — leis essas que eles deveriam assegurar o cumprimento — para concluir um caso.
九
Já era tarde quando Kensei adentrou o Ugendou Ryokan. Tão logo cruzou as portas, a figura holográfica de Ukitake surgiu diante de si, com um sorriso amigável no rosto.
"Seja bem-vindo de volta, Muguruma-dono."
Ele até pensou em sorrir de volta, mas além de a cortesia soar falsa em seu rosto — nunca fora bom sorrisos; Mashiro sempre costumava meter o dedo em seus lábios forçando o gesto sempre que posavam para fotos —, estava de cabeça quente.
Desnecessário dizer que tudo que ocorrera naquela noite seria suficiente para enlouquecer qualquer um. Mas além de todos os problemas, havia um novo. E ele atendia pelo nome do filho da puta desgraçado que arruinara sua vida.
Aizen Sousuke.
Obviamente, Kensei se recusara a ir até sabe-se-lá-Kami-onde para falar com ele.
Se aquele filho da puta queria trocar palavras, que viesse até ele pessoalmente. Kensei odiava gente que usava garotos de recados e odiava ainda mais se sentir coagido a fazer algo.
Se Aizen Sousuke estava à sua procura deveria saber disso.
Retirando a jaqueta, ele se dirigiu às mesmas poltronas nas quais desabara na noite anterior.
Só queria beber. Fumar. E dormir.
Precisava adicionar um banho e — novamente, para seu completo desgosto e irritação crescentes — masturbação à lista.
Mas não tinha dinheiro para pagar por nada.
Enfiou a cabeça entre as mãos.
Merda.
Saíra tão apressado daquele maldito lugar que não pegara o dinheiro que lhe era de direito.
E agora não tinha como manter sua estadia no Ryokan.
"Como posso servi-lo esta noite, Muguruma-dono?"
"Um maço de cigarros," respondeu automaticamente. Precisava fumar. Só a nicotina o faria relaxar depois daquele dia tenso.
Tão logo seu pedido foi materializado na sua frente, Kensei se tocou de que não podia pagar por ele.
Droga.
Correu uma mão pelos cabelos esbranquiçados.
Precisava ir embora.
Levantou-se da poltrona a contragosto.
"Muguruma-dono?"
"Obrigado pela estadia, mas eu já vou indo."
Ukitake franziu o cenho.
"Algo o desagradou durante a sua estadia na noite anterior, Muguruma-dono? Há algo que este humilde Ryokan possa fazer para assegurar uma estadia confortável?"
A voz carregada de gentileza e preocupação de Ukitake o fez parar. Olhando-o por sobre o ombro, Kensei se perguntou como era possível que uma inteligência artificial se parecesse tanto com uma pessoa real. Apesar da aparência holográfica, não havia diferença em nenhum traço deste ser com o antigo Capitão da Terceira Divisão. Ele teria parado para admirar o incrível trabalho feito, se tivesse cabeça para isso.
Com um suspiro cansado, respondeu, percebendo que havia pegado o maço de cima da mesa de forma automática. Acendeu um cigarro e o levou aos lábios.
"Não tenho mais dinheiro pra pagar," respondeu, dando de ombros.
Embora simpatizasse levemente com Ukitake e sua aparente solidão, Kensei não tinha tempo — nem saco — para lidar com os problemas de outra pessoa além dos seus próprios. Era melhor ser sincero e falar a verdade de uma vez.
Não tinha mais dinheiro.
Ponto.
Na verdade, nunca tivera.
Se soubesse como funcionavam transações comerciais nessa realidade, teria arrancado o chip do Capitão Kurotsuchi. Tinha certeza de que um Capitão ganhava muito mais do que um mero oficial de relevância questionável.
O sorriso de Ukitake se tornou ainda mais destacado. De alguma forma, a inteligência artificial diante dele parecia extremamente simpática ao seu desespero.
O que fez com que Kensei arqueasse uma sobrancelha.
Não se importava de dormir na rua, só não queria ser preso e colocado de volta num tanque daqueles antes que pudesse ter a chance de saber se Mashiro se lembrava ou não dele.
Parecia-lhe que sim.
Mas, também, parecia-lhe que não.
De pé, andando de um lado para o outro, correu a mão pelos cabelos brancos e depois retirou o cigarro da boca antes de exalar profundamente.
Merda.
Se fosse preso, nunca saberia.
Se fosse preso, nunca mais a veria.
A ideia de nunca mais cruzar caminho com Mashiro lhe parecera tentadora há séculos... mas ele sabia — sempre soubera — que era melhor aceitar a morte definitiva a nunca mais vê-la.
Por mais irritante que ela fosse.
Foi distraído de seus pensamentos pelo tom de voz preocupado a chamar seu nome com aquele honorífico que ele mais do que execrava. Ou ao menos aprendera a odiar. Após tantos séculos na companhia de Mashiro, que nem diante de superiores se importava em se dirigir a ele da forma adequada, acabara se desacostumando a ser tratado de maneira tão formal.
Virou-se para encará-lo. E se lembrou do porquê o detestava tanto. Um sorriso adornava os lábios do antigo Capitão da Décima Terceira Divisão. Mais um pouco ele e estaria rindo.
"Tá rindo do quê?"
Ukitake levantou as mãos, naquele odioso gesto típico de rendição, e comentou:
"A sua estadia está paga pelo tanto de tempo você desejar ficar."
Kensei arqueou uma sobrancelha e exalou a fumaça.
E quem caralhos pagaria por sua estadia? E por quê?
Por um momento, pensou que fosse Mashiro. Mas logo abandonou a ideia — não passava de um completo disparate.
É verdade que tenentes ganhavam menos do que seus Capitães. Apesar disso, o salário das duas patentes mais altas de um escalão na Gotei Treze não era nem de longe um salário tímido. E ainda assim Mashiro sempre pegava seu dinheiro todo fim de mês porque já havia torrado toda sua grana em comida, lenços e luvas. E demais inutilidades de papelaria como post-it coloridos e canetas stabilo.
Nunca sequer passara pela cabeça daquela marmota brega poupar ao menos alguma quantia por mês.
Quando ele a questionara, Mashiro argumentara que sempre teria ele para cuidar dela quando envelhecessem ou decidissem se aposentar.
A forma como ela sempre confiara que eles estariam juntos por uma longa data o fez se odiar.
Porque ele quebrara a promessa implícita de que permaneceriam juntos. De que ele nunca a abandonaria. De que ele cuidaria dela... para sempre.
Quatrocentos anos.
Quase metade de um milênio era muito tempo.
Quase mais tempo do que eles passaram juntos.
Era por isso que precisava saber o que ocorrera. Porque ele não se perdoaria caso a tivesse abandonado por vontade própria.
Parecia-lhe improvável.
Porque mesmo que não estivessem romanticamente envolvidos, Mashiro ainda era sua companheira de vida, assim como Shinji, Hiyori, Love, Rose, Lisa e Hachi.
Mas, também, parecia-lhe improvável que Shuuhei se apaixonasse por sua namorada.
Kensei se voltou ao assunto. Não adiantava perder tempo com o que não podia ser resolvido de imediato.
Sempre fora extremamente prático e precisava dessa praticidade neste momento.
Mas Mashiro sempre encontrava uma forma de fazê-lo torrar os miolos com coisas que ele sequer queria pensar.
Que saco.
"E quem pagou?"
A resposta de Ukitake veio rápida e de forma surpreendente, "Parece que você tem amigos importantes, Muguruma-dono."
Aquele honorífico chato de novo.
"O nome é Kensei."
Ukitake resolveu ignorá-lo.
"O Primeiro Ministro Planetário Aizen Sousuke pagou pela sua estadia e pediu que eu lhe transmitisse um recado, Muguruma-dono."
E por que diabos Aizen pagaria por sua estadia? Na verdade, pagaria por quaisquer gastos que ele viesse a ter no futuro, sem uma data limite especificada.
O que sugeria que mesmo num futuro distante o traidor da Soul Society continuaria a pagar pelo que quer que Kensei desejasse adquirir.
Essa era boa.
Aizen Sousuke, o maior filho da puta que ele conhecia, queria bancá-lo.
Ele esmagou o cigarro sob a sola de seu sapato e cruzou os braços na altura do peito, ansioso por ouvir o tal recado.
Na palma da mão de Ukitake surgiu uma figura holográfica. Os olhos de Kensei se estreitaram ao ver um homem trajando um terno caro e de cores sóbrias. Seus cabelos estavam soltos e um óculos quadrado adornava seus olhos castanhos, incrivelmente astutos e desprovidos de qualquer emoção tipicamente humana, contrastando com o sorriso aparentemente suave em seus lábios.
Kensei franziu o cenho. Aquela mesma maldita aparência de séculos atrás, quando todo mundo acreditava que ele não passava do atencioso tenente do Quinto Esquadrão. A mesma aparência de quando ele enganara a todos e fodera com a sua vida e a de mais sete pessoas.
Mal havia acabado de fumar e já queria pegar outro cigarro.
Ao invés de pegar o maço, preferiu se concentrar na mensagem.
Muguruma-san, espero que este recado o encontre numa situação mais confortável.
Houve uma pausa, enquanto ele arrumava as abotoaduras em sua camisa e olhava para o lado, sorrindo para alguém que não aparecia no holograma e o agradecia com uma voz suave.
Quando o nome Hinamori-kun foi ouvido, Kensei sentiu vontade de vomitar.
Típico Aizen.
Não importasse a realidade em que vivessem, era certo de que ele arrumaria uma forma de manipular aquela tenente tola do Quinto Esquadrão.
Logo depois, os olhos gélidos se direcionavam ao seu destinatário.
Não se preocupe, todas as acusações contra você foram eliminadas e a Corporação Policial de Edo não mais o perturbará.
A forma como ele pronunciara o vocábulo eliminadas fez com que as costas de Kensei se retesassem.
A sua estadia no Ugendou Ryokan também está paga e uma soma extra que eu acredito ser confortável está atrelada ao seu DNA.
Aham.
E o que você quer em troca, filho da puta? Kensei se perguntou. Não tinha como não se perguntar.
Nada era de graça nessa vida.
Todo mundo se vendia por algo. Algumas pessoas eram mais facilmente compradas do que outras, mas todo mundo tinha um preço. Algumas se vendiam por dinheiro e outras por ideologias baratas. E Aizen acabara de lhe oferecer uma quantia pornográfica.
Em troca...
Lá vinha.
...eu preciso da sua ajuda.
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