∞ 2 - O RYOKAN


"MERDA."

A palavra veio acompanhada de diversos outros palavrões tão logo Kensei se viu sem álcool. Duas garrafas de saquê jaziam vazias no chão. E ele havia acabado de terminar a terceira.

Ele podia muito bem pedir ao serviço de quarto uma outra garrafa, mas achava que depois que Mashiro havia salvado sua pele, era melhor não atrair muita atenção. Tão logo deixara o edifício decrépito, fugindo como um animal acuado — mais pelo choque do que pelo medo de ser capturado —, o Vizard avistara um hotel nas proximidades e se instalara nele.

Diferentemente do prédio em que Mashiro morava, o hotel era comandado por uma espécie de holograma — inteligência artificial, precisava se lembrar. Era um tanto quanto difícil se adaptar ao nome das coisas quando ele tinha acabado de despertar de um coma de quase meio milênio e era bombardeado por sensações e pensamentos tão distintos.

Havia a dor de cabeça que não passava.

Havia a sensação praticamente extra corpórea que o assolava.

E por fim a ereção que ele não conseguira subjugar.

Mesmo após o banho de água frio metafórico que tomara de Mashiro.

A inteligência artificial que compunha o pequeno e à primeira vista abandonado hotel não era ninguém menos do que o antigo Capitão da Décima Terceira Divisão, Ukitake Juushirou. Quando ele se materializou na sua frente, trajando um quimono de cores sóbrias, um haori branco e aquele irritante sorriso de efeito calmante, por um minuto Kensei se sentiu de volta na Soul Society, no outro quis socá-lo — exceto que não era possível, não até onde sabia, destruir e machucar uma projeção.

Com isso, ele se atirou numa das poltronas e correu as mãos pelo rosto.

Precisava de um banho.

Precisava dormir.

Precisava se livrar daquela maldita — e dolorosa — ereção.

"Seja bem-vindo ao Ugendou Ryokan. Operamos desde 2003. Como posso servi-lo?"

Sem abrir os olhos, Kensei prontamente respondeu, "Saquê e um quarto."

No mesmo momento, uma bandeja com o tradicional conjunto de serviço de saquê aquecido foi materializada na mão de seu antigo companheiro dos Treze Esquadrões. Kensei ignorou por completo o pequeno guinomi pegou o tokkuri levando o gargalo à boca.

Havia tanto tempo que ele não bebia, que por um momento, ele quase se engasgou com o gosto forte do saquê quente. Ignorando a sensação de queimação, ele finalizou todo o conteúdo presente na garrafa tradicional e voltou a encarar o hotel... ou o que quer que que aquela coisa que lembrava Ukitake fosse.

Endireitando-se na poltrona, ele esticou os dedos para pegar o guinomi e acabar com o resto de álcool presente no copo tradicional.

"Mais. Gelado." Levantou a mão e apontou para o tokkuri. "A garrafa normal dessa vez. Pode trazer umas três."

Já podia sentir que o saquê só pioraria sua dor de cabeça. Mas ele não se importava. Seus planos incluíam apenas encher a cara e depois desmaiar em qualquer lugar.

"Dia difícil?"

Ah não.

Era bem típico de Ukitake — em qualquer realidade — tentar ser um excelente anfitrião. Mas Kensei não era o tipo de pessoa que se abria facilmente, nem mesmo para o simpático Capitão da Décima Terceira Divisão. Ele não queria, tampouco precisava de uma inteligência artificial com consciência tentando atuar como seu terapeuta.

Levantando-se da poltrona, ele pressionou o chip contra uma tela, vendo os detalhes de pagamento e o saldo na conta praticamente zerar. Ótimo. Tinha dinheiro para mais uma noite apenas — ao que parecia, tanto na Soul Society quando na Força Policial deste mundo, oficiais sem destaque continuavam ganhando mal —, se quisesse permanecer no Ugendou, teria que arrumar um emprego.

"Pode levar o saquê pro meu quarto."

"Certamente," Ukitake respondeu com um sorriso gentil. "Mais alguma coisa, Rin-sama?"

Por um momento, ele quase travou. A correção automática do nome quase lhe escapou por entre os lábios, mas no último segundo ele se lembrou de que aquele chip pertencia a outra pessoa e que ele não passava de um foragido. Então, contentou-se em apenas ficar quieto. Quanto menos falasse, melhor seria para sua dor de cabeça.

"Antes de partir, deixe-me adverti-lo de que o álcool talvez não seja a melhor solução para seu problema."

O holograma do antigo Capitão surgiu diante dele e Kensei se viu obrigado a dar dois passos para trás. Aquele sorriso aparentemente gentil e tão sapiente era tão irritante quanto enervante.

"Que problema?" perguntou. Não sabia se era melhor fingir que não tinha nenhum problema, ou se realmente queria saber a qual problema Ukitake se referia. Porque ele podia contar mais problemas do que tinha dedos na palma de uma mão.

Diante de seu rosto surgiu um holograma que explodia em cores neon. Homens e mulheres seminus dançavam em posições tão sugestivas que não fosse pela irritação crescente que sentia borbulhar dentro de si, Kensei teria ficado envergonhado.

Em qualquer outra realidade — na realidade que conhecia, na Soul Society de quase quinhentos anos prévios, o gentil e bondoso Capitão da Décima Terceira Divisão nunca aludiria que ele procurasse o Distrito da Luz Vermelha —, tal sugestão certamente viria de Kyoraku Shunsui. Perguntava-se se os papeis haviam sido trocados neste universo, mas resolveu que sua cabeça doía muito para se preocupar com quão pervertido uma inteligência artificial podia ser.

Talvez fosse a expressão em seu rosto — de cansaço, mau humor e irritação crescentes — ou talvez o Ukitake desta realidade fosse tão perceptivo quanto o Ukitake que conhecera e com quem convivera por diversos séculos, mas o holograma sugestivo se apagou e um novo surgiu. Dessa vez, havia algo parecido com um ringue, com homens lutando de forma violenta e animalesca.

Ainda que a opção de bater em alguém lhe parecesse tentadora, ele não tinha a menor condição de exercer tamanho esforço físico naquele momento.

"Não." comentou, atravessando o holograma e rumando para um quarto — qualquer um deles serviria.

"Rin-sama, eu devo adverti-lo de—

Kensei o encarou por sobre o ombro. Olhos parcialmente enegrecidos e lábios retorcidos numa careta de irritação. Caso Ukitake continuasse a falar, o monstro dentro de si não teria problemas em assumir o controle mais uma vez e destruir aquele lugar. Talvez, com alguma sorte, a policial responsável por vistoriar a destruição daquele Ryokan fosse Mashiro. "Eu acho que posso cuidar do meu problema sozinho."

"Claro, claro." Ukitake comentou, levantando as mãos como quem decide se render. "O Ugendou Ryokan lhe deseja uma excelente estadia."

Um sorriso torto e completamente sem humor curvou o canto direito de seu lábio.

Pouco se importava com uma excelente ou péssima estadia. Só queria beber e dormir. E tudo o que não precisava naquele momento era de uma inteligência artificial senil para lhe dizer como tomar conta de uma ereção insistente.


"Podemos parar?"

A voz cansada de Shuuhei fez com que Mashiro interrompesse o movimento e parasse com a perna no ar, a poucos centímetros do rosto dele. No momento em que ele se deitou no tatame, ela resolveu finalizar o movimento sem a assistência de seu companheiro de treinos e pegar a toalha e uma garrafa de água.

Atirado no meio do tatame, ele respirava pesadamente. Mesmo acostumado a treinar praticamente todos os dias com Mashiro, ainda se surpreendia com a estamina dela.

Ainda de pé, ela secou o pescoço e o rosto com a toalha antes de abrir a garrafa de água e acabar com metade do conteúdo em uma só golada. De sua posição, ele conseguia ver perfeitamente como uma gota de suor deslizou por sobre a garganta alvíssima até se desaparecer no vale entre seus seios.

Embora trajasse calças hakama e um kosode pretos, ela não tinha o costume de usar o costumeiro shitagi branco por baixo. Para evitar que seu rosto corasse — ou ainda que seu nariz sangrasse —, ele preferiu fechar os olhos. Mashiro não fazia ideia de seus sentimentos por ela e, por enquanto, Shuuhei preferia mantê-la na ignorância.

Tinha medo de arriscar se confessar — como fizera em outras oportunidades, para outras pessoas — e ser ignorado. Pior: tinha medo de acabar com a amizade e camaradagem construída ao longo de anos de trabalho conjunto.

Só arriscou abrir os olhos quando uma sombra foi projetada sobre seu rosto. Mashiro estava posicionada acima dele, estendendo uma mão para ajudá-lo a se levantar e na outra uma garrafa de água para ele.

"Já descansou?"

Shuuhei grunhiu alguma coisa incompreensível. Ao invés de usar a mão estendida para se levantar, ele resolveu puxá-la para o chão. Antes que ela pudesse cair em cima de si e gerar uma situação desconfortável para ambos, ele preferiu rolar para o lado.

O som da risada de ambos explodiu no dojo do centro de treinamento da Polícia da Cidade de Edo.

"Você me enganou, Hisagi-kun malvado."

Um sorriso se delineou nos lábios dele e um silêncio confortável se estabeleceu entre ambos. Deitada ao seu lado, Mashiro olhava para o teto com uma expressão a princípio serena, mas que logo se tornou anuviada. Quando ela mordeu o lábio inferior e franziu as sobrancelhas, ele não pode evitar perguntar, "No que você está pensando?"

"Eu?" respondeu, sacudindo a cabeça. "Nadinha."

Shuuhei suspirou.

Era muito difícil conversar com Mashiro seriamente sobre algo, sem que ela assim o desejasse. O que acontecia muito raramente. Não pode evitar se lembrar das histórias que circulavam a divisão de narcotráfico quando ele primeiramente começara a trabalhar com ela.

Muitos diziam que o comportamento sem noção, que beirava à infantilidade e a mais completa displicência, era resultante do tempo que ela passara internada no Hospital Psiquiátrico do Rukongai. Ninguém sabe quanto tempo ela fora uma paciente da médica e pesquisadora Unohana Retsu, mas muitos apostavam suas fichas que passava de décadas. Talvez algo próximo de um século.

Que ela tenha se juntado à força policial era um milagre, mas aparentemente na mesma medida em que Kuna Mashiro atraíra a ira do Primeiro Ministro Planetário, ela também conquistara um amigo poderoso.

Restava saber quem seria maluco ou brilhante o suficiente para apostar suas fichas em Mashiro.

Por mais que tivesse tentado, nunca conseguira fazê-la falar desse tempo. Ela sempre mudava de assunto, muitas vezes se comportando de forma infantil, e poucas vezes agindo como a adulta que era e encerrando o assunto de forma quase ríspida, ainda que sempre procurasse adicionar um sorriso em sua face.

"Kuna-san..."

Mashiro sacudiu a cabeça.

Não queria falar de nada.

Não queria falar do estranho em seu apartamento na noite anterior.

Não queria falar dos cartuchos queimados que encontraram dias atrás.

Não queria falar sério.

Detestava quando Shuuhei tentava iniciar uma conversa de adultos.

Perdia toda a graça.

Mas não queria discutir.

Ao invés disso, ela se sentou no tatame e alongou os braços. Com o movimento, o kosode saiu parcialmente do lugar e a expansão de sua barriga e a parte inferior de suas costas ficaram à mostra. Por um breve momento, ele pensou em esticar a mão e puxar o tecido para baixo, colocando-o no devido lugar. Mas preferiu se conter.

Mashiro não se importava nenhum pouco com sua nudez, o que ele achava por vezes perigoso; sendo tão desatenta não era difícil que outros homens menos respeitosos tentassem se aproveitar dela, como o homem da noite anterior.

Dessa vez, a pergunta escapou seus lábios antes que pudesse se controlar.

"Você conhece o homem de ontem? O foragido?"

Por um momento, os ombros dela pareceram se tensionar. Interrompendo o alongamento despretensioso, Mashiro se levantou e correu a toalha por sobre o rosto mais uma vez.

"Kuna-san?"

"Aaaaaah, tô com fome." Inclinou a cabeça para encará-lo de soslaio. "Vamos almoçar?"

As sobrancelhas de Shuuhei praticamente se uniram diante da careta de confusão.

"Ainda não é nem 11 horas."

Ela apenas sacudiu os ombros. "Nunca é muito cedo pra comer." No próximo segundo, o rosto dela se iluminou e um sorriso curvou seus lábios. "Quem chegar por último no restaurante paga a conta."

Shuuhei sacudiu a cabeça e tentou não sorrir.

Era óbvio que indiferente de quem chegasse primeiro ao restaurante, a conta sobraria para ele. Não era como se sua companheira ainda tivesse algum dinheiro sobrando no meio do mês.

E embora continuasse com uma péssima sensação a respeito do homem que adentrara o apartamento dela de forma intempestiva — algo dentro de si dizia que aquele não seria seu último encontro e que eles só se tornariam mais desagradáveis, afinal, por mais que a reação de Mashiro tivesse sido ambígua na melhor das hipóteses, o foragido deixara claro que a conhecia, ou que achava que a conhecia —, ele não tinha muita opção a não ser segui-la...

...e almoçar às 11 horas da manhã.

Kensei dormira muito mal. Sonhara a noite toda com Mashiro.

Mashiro...

...que não se lembrava dele.

Como todo mundo naquela maldita realidade, Mashiro — a única pessoa que estivera a acompanhá-lo por mais séculos do que fazia questão de contar — não fazia ideia de quem ele era.

Correu uma mão pela face e finalmente se deixou suspirar. O sono não o ajudara em nada. Ainda estava com dor de cabeça e mesmo que tivesse se masturbado na noite anterior — muito a contragosto —, era como se nunca tivesse se aliviado. A arfada de ar a deixar seus lábios parecia tão cansada quanto a expressão em seu rosto. O tão esperado reencontro fora uma legítima catástrofe.

Além de nenhum de seus tenentes se lembrar dele, aparentemente o moleque que ele salvara séculos atrás no Rukongai agora sofria de uma paixonite aguda por sua namorada. Kensei não conseguia decidir o que era mais irritante e patético, ver o nariz de Shuuhei sangrando feito um chafariz por um mero encontro com a tenente maliciosa do Décimo Esquadrão ou vê-lo corar como um adolescente tímido ao interagir com Mashiro.

Tão logo ela recuara, colocando a distância de mais de um braço entre eles, um aviso sonoro os alcançou, fazendo com que os dois quebrassem a intensa troca de olhares e voltassem a atenção para um pequeno objeto que se assemelhava a um relógio posicionado sobre a bancada da cozinha.

Dele, uma luz azulada surgiu, explodindo segundos após na sala e projetando um holograma de sua face. Em letras garrafais lia-se "PROCURADO". E a voz da Vice-Capitã da Décima Segunda Divisão dava mais detalhes acerca de sua fuga.

"Kuna-san, afaste-se dele," Shuuhei teria dito. Ou disse. Ele já não se lembrava com exatidão. A única lembrança clara que Kensei tinha daquele encontro era dos olhos castanhos de Mashiro focados nos seus, das mãos pressionadas contra a toalha, até que o sangue lhe fugisse da ponta dos dedos finos.

Do lábio cheio inferior sendo mordido por dentes alvíssimos e do franzir de sobrancelhas.

"Mashiro, sou eu." Quando ela nada respondeu, ele tentou mais uma vez. "Kensei."

Por um segundo, ele quase se apresentou como Kensei idiota — como ela o chamara tantas vezes no passado e porque era exatamente como se sentia naquele momento. No próximo, Shuuhei apontava uma arma para ele. Por puro reflexo, sua mão voou para o obi em sua cintura em busca de Tachikaze, exceto que não havia obi algum, muito menos uma Zanpakutou posicionada ali.

Ele não conhecia o Shuuhei desta nova realidade, mas algo dentro de si duvidava que o moleque que tinha medo da própria Zanpakutou — do próprio poder — fosse capaz de atirar nele — o homem que salvara sua vida. Mas Mashiro agira mais rápido do que os dois homens poderiam esperar.

Ela o empurrara para o lado e tomara seu lugar diante da arma. A boca do cano foi pressionada contra a testa dela. Por um momento, o coração de quase Kensei parou e o Hollow dentro de si rugiu, desesperado para assumir o controle.

Mas uma das mãos de Mashiro, posicionadas contra seu peito, o manteve paralisado.

"Kuna-san—

A mão de Shuuhei tremeu sobre a arma e por um momento Kensei quase a puxou para seus braços. Mas no próximo segundo ele abaixou a mão e a encarou como se estivesse arrependido de um dia ter apontado uma arma para ela.

"Hisagi-kun, capturar esse homem não é nossa obrigação," ela respondeu, como se não pudesse se importar menos com o fato de Kensei ser um foragido — e menos ainda de ter uma arma apontada para sua cabeça. A mão deslizou do centro do peito dele de forma hesitante e ela, ainda sem se preocupar com sua nudez, caminhou até o fogão e abriu a tampa da panela. "Hmmm chanko nabe, meu favorito. Como você adivinhou, Hisagi-kun?"

Shuuhei sacudiu a cabeça, como se não conseguisse acreditar nas palavras de sua companheira.

Só Mashiro para se preocupar com comida quando um foragido estava no centro de sua sala, clamando conhecê-la.

"Kuna-san, esse homem é perigoso," Shuuhei comentou, indicando com a cabeça para ele, mas sem, contudo, olhá-lo nos olhos. E no segundo em que o olhou, havia uma expressão acusatória na íris acinzentada. "Ele matou nossos companheiros de trabalho. É nosso dever—

O olhar que ela lhe lançou foi suficiente para fazer com que ele se calasse. Para Kensei, era mais do que claro o que ela estava fazendo. Mashiro era proficiente na arte de distrair quem quer que fosse — ele próprio fora sua vítima preferida por diversos anos. E ele não seria estúpido o suficiente de ficar mais tempo ali para ser capturado e enclausurado de novo sob a tutela do Capitão Kurotsuchi.

Arriscando um último olhar para ela, ele saiu pela janela aberta da sala, no mesmo momento em que ela dizia:

"Não seja tolo, Hisagi-kun. Ninguém morreu. Se nenhum cartucho foi destruído então não houve nenhuma morte. Você destruiu o cartucho de alguém?"

Ele não pode ver o rosto de seu antigo vice-capitão, mas ainda pode ouvi-la falar.

"Hm? Cadê ele?"

Quando Kensei alcançou o solo novamente, ele ainda olhou para cima e encarou aos dois. Seus olhos se estreitaram ao ver Shuuhei colocar as mãos sobre os ombros nus de Mashiro e guiá-la de volta para dentro do apartamento.

De frente para o espelho, já vestido com as mesmas roupas do dia anterior, ele observou seu rosto e correu os dedos por sobre os fios brancos, desembaraçando-os.

Não bastasse o problema com Mashiro, com este universo, com o fato de ser um foragido e basicamente com tudo em sua vida, pra ser bem sincero, ele não tinha mais dinheiro — quer dizer, Rin não tinha mais dinheiro, porque nesta realidade ele nunca tivera. Precisava encarar a inteligência artificial com a cara do Capitão Ukitake e perguntar sobre empregos.

O que ele poderia fazer, Kensei não fazia ideia. Mas, preferencialmente, algo que lhe rendesse grana suficiente para se sustentar e algo que fosse braçal. Gostaria de evitar um trabalho que exigisse pensar.

Havia um problema, porém.

Precisava encarar Ukitake.

E admitir que ele estava, infelizmente, correto.

Não conseguira dar conta do seu próprio problema sozinho.

Era vergonhoso que, do alto de sua vivência e experiência, não pudesse dar conta de uma simples ereção. Mas tudo que ele não precisava, no momento, era de procurar o Distrito da Luz Vermelha e se envolver com mulheres completamente desconhecidas. Talvez a inteligência artificial intrometida tivesse alguma solução que não envolvesse pagar por sexo ou bater em alguém.

Para seu completo desgosto, tão logo deixara o quarto, foi abordado pela inteligência artificial com aquele sorriso insuportavelmente amigável.

"Bom dia, Rin-dono. Espero que o quarto tenha sido do seu agrado."

Kensei não tinha o que criticar no quarto, mas queria desesperadamente reclamar de algo. O que quer que fosse.

Ao invés disso, continuou caminhando — sabe-se lá para onde. Ukitake se juntou a ele, com os braços posicionados atrás de suas costas, e ainda sorrindo daquela forma irritante, tentou comentar algo, mas ele não estava disposto a ouvir nenhuma pergunta sobre sua estadia, sobre sua aparência ou sobre o seu problema.

"O que tem de café da manhã?"

Ukitake sorriu novamente.

"Fico feliz que tenha perguntado." Da palma da mão esquerda um cardápio foi projetado. A luz azul explosiva fez com que ele colocasse uma mão sobre o rosto e, novamente, atravessasse o holograma sem se dar ao trabalho de ler o que estava escrito. Sua cabeça doía muito para qualquer esforço tão cedo.

Juntos, os dois atravessaram as portas de shoji e se depararam com um típico engawa largo que ficava de frente para lago rodeado por um jardim ornamental.

"Vou querer café puro. Sem açúcar."

A ideia de colocar algo no estômago o fazia querer vomitar. Talvez, beber tanto não tivesse sido a melhor das ideias, mas não era como se estivesse tão arrependido. Tivera piores ressacas na vida.

"Rin-dono, se eu puder sug—

"Não." Kensei o interrompeu, sentando-se sobre um dos zabutons e fechando os olhos enquanto inalava o forte cheiro de grama recém-aparada. Sua audição se concentrou no barulho das carpas nadando no pequeno lago e de pássaros pousando nas árvores de cerejeira. "Só café basta."

Queria perguntar se o lago e a cerejeira eram reais, mas preferiu ficar em silêncio. Algo lhe dizia que eram, mas considerando que tudo fora do Ryokan parecia estéril e altamente tecnológico, era como conceber a ideia de um oásis no meio do deserto.

Aproveitou os minutos em silêncio para meditar. Nunca fora exatamente muito dado à meditação — sua impaciência sempre fora sua característica mais marcante —, mas achou que valeria a pena tentar se centrar. Tachikaze ainda o chamava, mas sua voz estava distante, praticamente incompreensível.

Quando estava prestes a perguntar — o que quer que fosse, se o espírito da Zanpakutou entendia o que lhe ocorrera; onde estavam os demais Vizards, por que ninguém se lembrava de serem shinigami, da Seireitei e da Soul Society em geral—, o aroma de café fresco o fez se calar. Ukitake se materializou na sua frente e depositou na frente dele a bandeja contendo uma xícara e, para sua surpresa, um maço de cigarros e um isqueiro.

Kensei arqueou uma sobrancelha.

"A nicotina pode auxiliar no seu problema."

A frase dita com o máximo de deferência e preocupação fez com que o seu humor piorasse drasticamente. A importância dada ao seu problema era inapropriada, para dizer o mínimo. E incômoda. Kensei não pode evitar se perguntar se a inteligência artificial não tinha mais o que fazer, mas, pensando bem, não parecia haver mais ninguém além dele no Ryokan, então não, pelo visto Ukitake não tinha nada melhor com o que se ocupar.

Sendo o antigo Capitão da Décima Terceira Divisão um homem tão amigável, estar, de repente, separado de tudo e de todos — ao menos seus dois tenentes não estavam sozinhos, embora ele não pudesse detestar mais a proximidade que Shuuhei parecia desejar compartilhar com Mashiro, se é que já não compartilhava — não deveria ser fácil.

Ainda assim...

Que saco.

Detestava quando tentavam se intrometer em sua vida.

E ele tivera uma vida de gente querendo lhe dizer o que fazer, como fazer e por que fazer o que quer que fosse.

Ao invés de responder, resolveu levar a xícara de café aos lábios. O sabor forte do café assaltou seus sentidos de uma só vez, fazendo-o fechar os olhos por um brevíssimo segundo. E naquele mísero momento, foi como se as pontadas em sua cabeça cessassem e ele pudesse pensar com clareza pela primeira vez desde que deixara o laboratório do antigo Capitão Kurotsuchi.

Logo, viu-se perguntando:

"O ringue de luta que você me mostrou ontem." Depositou a xícara de volta na mesa posicionada diante de seu zabuton. "Como funciona?"

Uma luz azul, surgida da palma da mão de Ukitake, brilhou no engawa. Kensei posicionou os braços nas coxas e se inclinou para observar mais de perto o holograma. Apesar da fachada de um estabelecimento aparentemente inócuo, o lugar era a casa das lutas mais violentas da cidade, de acordo com o descritivo fornecido pelo próprio lugar.

"Isso é legal?"

Não que se importasse. Precisava de dinheiro. Legalidade não era uma de suas preocupações no momento. Afinal de contas, já era um foragido da polícia.

"Perfeitamente." Ukitake fechou a palma da mão e a luz desapareceu. "A existência de cartuchos corticais tornou os clubes de luta amadora comuns. Desde que alguns limites e regras sejam seguidos." Sua expressão tornou-se um tanto sóbria ao acrescentar, "Algumas casas, entretanto, estão acima da lei."

Kensei cruzou os braços.

"E você desaprova?"

Embora suas palavras tenham saído num tom de pergunta, sua intenção fora fazer um comentário neutro. Era óbvio que o magnânimo Ukitake Juushirou desaprovava violência gratuita. E ainda que ele próprio, diferentemente do Capitão da Décima Primeira Divisão, não fosse adepto da violência por violência, ele não podia se dar ao luxo de julgar um hábito que poderia, a depender da resposta para sua próxima pergunta, ajudá-lo a resolver seu problema financeiro.

"Tem ideia de quanto vale cada luta?"

Ele inclinou a cabeça levemente para o lado e seus olhos se focaram no fusuma de montanhas por um minuto. Pouco depois, a inteligência artificial se voltou para Kensei e respondeu de forma precisa o valor pago à cada lutador e a variação de apostas nas casas de luta.

"A casa mais lucrativa, localizada no Distrito 80, sob controle de Zaraki Kenpachi, é a mais perigosa de todas, no entanto."

Justo, pensou. Para enfrentar o antigo Capitão Zaraki era necessário um bom incentivo.

Estava decidido. Tentaria a sorte nessa casa de lutas. Precisava de dinheiro rápido e qual a maneira melhor de obtê-lo do que visitar o antigo Capitão do Décimo Primeiro Esquadrão?

Levantando-se do zabuton, ele pegou o maço de cigarros, e levou um à sua boca. Não era sua primeira vez fumando, mas ele certamente não conseguia se lembrar de quando fora a última. Começara justamente quando se mudaram para o Mundo Real, como uma forma de distrai-lo de todos os pensamentos e sentimentos conflitantes e intensos que o dominaram.

O cigarro servia também como uma espécie de controle de sua ansiedade e de seus impulsos violentos e carnais. Fora por meio de uma contemplação entre tragadas que ele descobrira que via em Mashiro não apenas uma tenente tagarela que o seguia aonde quer que fosse, mas a mulher que seu Hollow desejava.

A nicotina, então, ajudava a manter o monstro em cheque.

Fora com muita surpresa e certo desapontamento que ele descobrira, quase um século depois, que Hollow dentro de si apenas externava, com veemência, o que ele próprio sempre sentira.

Dessa vez, seu Hollow estava sob controle. Então não havia exatamente um motivo para que ele se sentisse como um adolescente hormonal.

"Sinamorfesterona," Ukitake comentou, tirando-o de seus pensamentos. "Acho que seja nisso que você esteja pensando."

Kensei inclinou a cabeça levemente, esperando mais explicações.

"É um tipo de droga que aumenta o nível de testosterona e adrenalina," Ukitake ofereceu uma breve explicação que fez com que seu interlocutor retirasse o cigarro da boca e o encarasse com interesse. "Acredito que você tenha recebido uma pequena dose."

Kensei exalou e umedeceu os lábios antes de voltar a colocar o cigarro na boca. Em poucas tragadas já conseguia sentir o efeito calmante da nicotina em seu organismo. Isso ou o fato de saber o que estava de errado com ele o deixara aliviado.

"Quais os outros efeitos?"

Além do óbvio.

"Se administrado em uma alta dosagem, pode causar surtos violentos e até um ataque cardíaco."

Ele correu um dedo por sobre o a coluna de seu pescoço. Na pele, havia uma pequena marca de agulha. Quem quer que o tenha dosado — a noite anterior antes do desastroso reencontro com Mashiro estava um tanto nublado em sua mente —, provavelmente não sabia o que tinha em mãos ou trocara a droga correta.

Apesar de desconhecer as reais motivações de Kurotsuchi Mayuri neste universo — certamente não poderiam ser boas; nada vindo do excêntrico Capitão era bom —, duvidava que ele tivesse a intenção de aumentar seus impulsos violentos. E além de motivos torpes, não havia motivo algum para que ele desejasse — além dos científicos, a ideia de que Mayuri tivesse desejos carnais o deixava enojado — deixá-lo, bem...

De pau duro.

E a quem interessava que ele ficasse ainda mais violento?

Certamente não aos integrantes da Décima Segunda Divisão. Certamente não a Akon, cuja garganta ele havia destroçado. Certamente não a Nemu, cujo pescoço ele havia quebrado. E certamente interessava menos ainda ao Capitão Kurotsuchi, cuja coluna ele havia partido no meio.

Não.

Ou um dos cientistas havia pegado a droga errada ou alguém o queria longe daquela Divisão.

Bastava saber quem.

Kensei coçou a cabeça.

Saco.

Tudo o que não precisava era de mais complicações em sua vida. Mashiro não se lembrar dele era a única preocupação da qual já não precisava, mas tinha que lidar, querendo ou não.

"E quanto tempo o efeito demora pra passar?"

O sorriso de Ukitake era empático agora.

Kensei não sabia se detestava mais a versão do Capitão da Décima Terceira Divisão como uma inteligência artificial ou como shinigami. Ao menos, pensou com um sorriso irônico a curvar o canto de seus lábios, não precisava ouvir sua maldita crise de tosse.

"Depende."

"De quê?" devolveu num tom já irritadiço.

"De como se procura aliviar os sintomas. Se nenhuma providência for tomada, por até 72 horas."

Setenta e duas horas.

Se ele já não aguentava se sentir como um adolescente viciado em pornô barato por algumas horas, quem diria por três dias inteiros. Kensei preferia morrer antes disso.

"A forma mais rápida para eliminar a droga do sistema é por meio da atividade sexual, por isso eu sugeri uma visita ao Distrito da Luz Vermelha, que também oferece sexo virtual."

Kensei arqueou uma sobrancelha.

Pagar por sexo virtual?

Ainda que a ideia não lhe parecesse tão absurda assim — vira o pornô ganhar telas de cinemas e da televisão e, anos mais tarde, da internet, com pessoas pagando para se masturbarem diante de mulheres nuas, muitas abaixo da idade legal —, ele não pode evitar se perguntar qual era a diferença, em termos de alívio da droga em seu sistema, de se masturbar sozinho e de pagar por uma sessão de sexo virtual.

Porque no seu ponto de vista não parecia haver nenhuma diferença.

E sinceramente, ele se perguntava se queria saber se elas existiam e quais eram.

De qualquer forma, a opção sexo já estava riscada da sua lista de opções. Com Mashiro sem se lembrar de quem ele era, as chances de que os dois pudessem se envolver fisicamente nos próximos três dias eram nulas. E ele certamente não se considerava desesperado ao ponto de pagar por uma visita ao Distrito da Luz Vermelha.

"E?" demandou, já perdendo a paciência. Pensar em Mashiro fez com que sua cabeça latejasse. Para não mencionar os demais efeitos dos quais ele já vinha sofrendo desde a noite passada. Apagou o cigarro na palma da mão sem muita cerimônia e se preocupou em acender outro, "Qual a outra providência?"

"Dar vazão à violência."

Ótimo.

Exatamente o que ele planejava fazer.

"Onde fica essa casa de lutas?"

"Rin-sama, eu devo adverti-lo de—

Kensei respirou pesadamente.

Não se lembrava de Ukitake ser tão insuportável dessa forma. Ou tão intrometido.

"Eu não preciso de ouvir mais nada. O endereço. Anda logo."

Se a inteligência artificial ficou chateada por suas palavras ríspidas, nada foi demonstrado em sua face. Mas o sorriso esboçado na face holográfica certamente era parecido com o do antigo Capitão.

"Distrito 80, localizado na Zona Norte de Edo."

Na falta de qualquer lugar para anotar o endereço completo, Kensei fez questão de repetir palavra por palavra em voz alta e depois mais uma vez silenciosamente, até que o decorasse enquanto caminhava em direção à saída do Ryokan.

Ukitake o acompanhou em silêncio, braços cruzados na altura do peito e mãos escondidas sob as mangas do tradicional quimono que trajava.

"No que mais posso servi-lo, Rin-sama?"

Ele demorou para responder, observando os carros e autotáxis percorrerem a via aérea do céu nublado de Edo. Antes que um dos autotáxis alcançasse o solo e se aproximasse, Kensei encarou Ukitake por cima do ombro e comentou, "Aliás, o nome é Kensei. Muguruma Kensei."

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