Capítulo 9 - Proibido entrar

O vento embatia determinado contra o meu corpo, fazendo os cabelos soltos, que se alongavam para além do capacete, voarem selvagens e desnorteados. Eu me agarrava firmemente na cintura do AC/DC de olhos completamente fechados com medo de cair.

Ele fez uma curva apertada, sem nem abrandar, e eu colei meu corpo ao dele, que nem uma lapa. "Se a ideia dele é matar-me, eu vou arrastá-lo comigo!"

Senti seu corpo vibrar com o riso que emanava. O som me chegou fresco e selvagem, com alguma dificuldade, por causa do barulho forte do motor da mota. Eu sabia que ele se estava a divertir pela minha reação exagerada.

− Abre os olhos – gritou ele sobre o ruído.

− Não!

− Abre os olhos – voltou a insistir. – Confia!

Como ele me podia pedir para confiar? Eu sabia muito pouco sobre ele. Para todos os efeitos, ainda era um estranho para mim. Mas me lembrei que aquilo era uma simples experiência. Uma fuga de quem eu era e de todas as pressões de meus sonhos e objetivos. E para isso teria de me entregar por completo, me deixar levar.

Abri os olhos, bem lentamente, e me espantei com a imagem da cidade de Lisboa bem lá em baixo. Estávamos a subir uma montanha repleta de árvores, nos aproximando do céu e nos afastando cada vez mais da confusão da cidade. Aquele pedaço de céu, que parecia tão diferente, tão único, tinha mais estrelas do que eu conseguiria contar e o seu brilho era tão mais real e verdadeiro.

A brisa que senti, naquele momento, me desafiava a soltar os braços e a experimentar a sensação de liberdade, e eu não estava capaz de recusar nada daquela natureza tão bela que me recebia de braços abertos.

Contei até três e soltei meus braços da cintura dele.

Gritei com a adrenalina a correr loucamente pelas minhas veias. Era um grito livre, solto de todas as amarras sociais. Eu me sentia voar, de braços abertos e de cabeça erguida para o céu estrelado.

O AC gritou a seguir, entusiasmado. E isso bastou para começarmos os dois a gritar feitos loucos numa estrada completamente vazia, a tentar vencer os sons artificiais que emanavam da mota. Nossas vozes estavam na mesma sintonia e, sem dizer nada, diziam o mesmo.

Quando um carro passou por nós, em sentido contrário, desábamos num riso incontrolável. As gargalhadas eram incessantes e mostravam que nós não estávamos nem aí para o que o condutor do veículo estava a pensar de nós naquela altura.

Meus braços se ampararam em torno do homem forte que me conduzia rumo ao desconhecido. Agarrava-me a ele, movida, não por medo, mas por segurança. Estranhamente, consegui me sentir segura com ele.



− Um aterro de carros? – questionei boquiaberta. – Que romântico!

− Não sabia que este encontro era do tipo romântico – espicaçou, com um sorriso de troça. – Senhorita, lamento se não é um local à altura dos restaurantes à beira rio a que está habituada. Mas sempre pode ficar esperando aqui fora.

− E vou mesmo ficar! – Cruzei os braços teimosa. − Não vou entrar em um aterro cheio de metal e ferrugem! Mas é que não vou mesmo!

− Ok. – Ele passou por baixo da trave com um sinal de proibido a passagem. − Boa sorte com os lobos da serra! – gritou, sem nem se voltar para trás.

− O quê? Você está mentindo! – Fiquei esperando que ele dissesse alguma coisa, mas ele apenas continuou a avançar em absoluto silêncio. – Raios!

Estava escuro e eu não estava com a mínima disposição de ficar sozinha numa serra à merce de eventuais lobos esfomeados ou coisa pior! Respirando fundo, passei por debaixo da trave, e corri para apanhar a única criatura a que eu confiava minimamente a minha segurança naquele amontoado de nada.

− Só para que conste, isto é totalmente errado – argumentei, enquanto seguia ao lado dele. À nossa volta só se viam carros totalmente destruídos, alguns já nem se reconheciam como tal.

Ele virou o rosto para mim e sorriu, agitando a cabeça.

− Depende da perspetiva.

− Nem que entrássemos de pernas para o ar, aquele sinal de proibido à entrada continuaria a significar exatamente o mesmo: proibido entrar!

− Para a próxima, experimento essa entrada triunfal – comentou entre risos, fazendo pouco de minhas palavras.

Ao fim de mais alguns minutos, ele parou diante do que parecia uma gruta artificial feita com os restos dos carros amontoados. Me perguntei se tinha sido de propósito ou se, naturalmente, os carros haviam caído assim e formado aquela estrutura aparentemente rígida e estável.

− Vamos? – me perguntou de olhos fixos nos meus. Ele parecia estudar a minha reação ao que estava à minha frente.

− Espera aí. Você não mora aí não, né?

− Isso é tudo desejo de conhecer a minha casa?

Revirei os olhos à insinuação dele. Ele continuava se achando o pacote de bolachas inteiro, mesmo!

Atirei os meus cabelos para trás dos ombros e avancei que nem uma lady, à frente dele. Eu o ouvi rir nas minhas costas, mas não lhe ia dar a satisfação de uma resposta.

Lá dentro me vi cercada por uma enorme e espaçosa redoma de espelhos, quase completa, não fosse a entrada apertada porque havia entrado. Algumas frestas no metal deixavam entrar a luz do luar que se refletia em todas as direções, graças aos inúmeros espelhos colados nas paredes. Um amontoado de retrovisores que ganhava ordem, sentido e beleza, guardado naquele local, escondido do mundo.

− Uau! – Foi apenas o que consegui dizer ao fitar o meu reflexo propagado em cada espelho de forma diferente.

− Como a senhorita dizia, é apenas um monte de metal e ferrugem, não? – provocou irónico.

Olhei para o reflexo dele à minha frente. Seus olhos negros brilhavam através dos espelhos e seu corpo parecia mais pequeno e frágil. Eu sentia que aquela era uma entrada direta para a alma dele e eu não poderia sair dali a mesma.

Me sentei na terra batida, sem me preocupar em sujar o meu vestido de verão, verde como eu tanto amava. Na verdade, o contato com a terra me fazia sentir mais perto de minha verdadeira essência. Talvez um pouco como ele, naquela estranha e bela sala de espelhos.

Bati no lugar ao meu lado, o chamando para se juntar a mim. E ele assim o fez, sem qualquer reservas.

− Foi você quem construiu isto tudo?

− Sim – respondeu timidamente, o que me causou uma certa estranheza. Não a resposta em si, que já esperava, mas antes aquela introversão que eu não sabia de onde vinha. – Existem várias versões de você, sabe? Lá fora, todos criam suas próprias expetativas sobre quem você é e sobre quem você deveria ser. Você mesma projeta imagens ilusórias baseadas em sonhos, e espera que, um dia, você seja aquela pessoa lá bem na frente. – Os olhos dele se fixaram no meu reflexo à nossa frente. Eu me encolhi um pouco no lugar ao sentir que ele me estava vendo a alma. − Mas nos esquecemos que aqui, no centro, tem a imagem mais importante. Aquela que não tem distorções, nem embelezamentos.

Ele fez uma pausa e eu não soube o que falar. Me sentia um daqueles espelhos que se achava no direito de pegar numa parte dele e a distorcer a meu belo prazer. Eu nem o conhecia direito e já o chamava de um monte de nomes feios. Eu que tinha errado com ele.

− Criei este espaço para nunca me esquecer de mim – acrescentou, me olhando nos olhos. − De viver o presente. De saciar os desejos do meu verdadeiro eu. Não daquele que eu ainda nem conheço, nem sei se gosto. Por isso que para mim não há certo ou errado. Se eu viver com medo, vou viver pela metade. Não vou experimentar todos os outros caminhos que existem para mim, se me agarrar a uma imagem ilusória. Eu erro. Erro muito! Mas é no erro que eu descubro quem eu realmente sou.

Me arrepiei toda com aquelas palavras e tudo só ficava mais intenso com ele me olhando daquele jeito... Daquele jeito que um homem olha para uma mulher.

− Qual o teu nome? – interroguei. Não poderia ter havido oportunidade melhor do que aquela, para fazer a pergunta. Estava aberta e disponível para o olhar verdadeiramente, sem qualquer julgamento ou filtro pelo meio.

− Alexandre, mas todos me chamam de Alex. Para você, pode continuar sendo "gostoso".

Não seria ele, se não aproveitasse a oportunidade para fazer piada, não é mesmo? Um ambiente pesado e sério era algo que não combinava com sua natureza selvagem e sua atitude despreocupada. Na verdade, eu conhecia-o melhor do que julgava. Ele era tudo aquilo que eu não queria. Um homem que vivia focado no presente, que se jogava de cabeça sem se preocupar com o que os outros achavam dele, e que via no humor uma forma ligeira de lidar com qualquer obstáculo que aparecesse no seu caminho. Não tinha ambição alguma, não se prendia a responsabilidades, não fazia planos, não era romântico, não se apegava nem a coisas, nem a pessoas, não estava nem aí para as normas sociais e camuflava todas as feridas que trazia na alma. Mas também era divertido e bastante persistente naquilo que verdadeiramente o interessava. Como havia sido certamente na construção daquela exigente sala de espelhos. Não era perfecionista, conseguia ver isso nos pequenos espaços irregulares e aleatórios entre o metal, que eu haveria certamente coberto. Mas aquilo que eu julgava como falhas, eram espaços belos que deixavam a luz entrar de uma forma única e particular.

− Alex − experimentei o nome em voz alta. Era estranho ele, por fim, ter um nome. Mas, no fundo, eu sabia que ele nunca deixaria de ser o "arrumador de carros" e isso me confortava. – Para que conste, você não errou como filho, ela que errou.

Ele me olhou confuso. Consegui ver nas íris negras a cascata de recordações amargas de seu passado. Quantas e quantas vezes ele não terá vindo aqui para se afogar no passado? Sabia que era, em parte, por isso que ele se agarrava com tanta força ao presente. Um brilho de entendimento surgiu depois no lugar, provavelmente com a recordação da mensagem que ele me havia enviado outrora, como mero desabafo para ninguém em específico. Só para aliviar apenas um pouco o peso dos seus ombros para um destino incerto, já que ele não poderia ter a certeza se eu alguma vez leria a mensagem.

Um meio sorriso se desenhou no seu rosto moreno.

− Eu sei. Até porque é impossível alguém não gostar de mim, não é mesmo, senhorita?

− Claro, você é uma verdadeira joia rara – respondi com ironia à presunção dele que voltava à tona.

− E ainda nem viu meu melhor ângulo ao vivo.

Ri da sugestão, me recordando na perfeição daquela foto que ele tinha feito a gentileza de colocar como fundo de ecrã no celular que me oferecera.

− Dispenso.



Na viagem de regresso a casa, fiz questão de manter os olhos sempre abertos aproveitando ao máximo aquele momento que eu não sabia se voltaria a repetir-se.

− Está entregue, senhorita. – Alex falou enquanto eu descia da mota. – Mas talvez seja melhor eu me assegurar que não tem nenhum ladrão em casa.

− Mas é muito espertinho mesmo. – Dei-lhe um tapa no braço e ele se agarrou no local como se eu lhe tivesse perfurado o músculo. A cara de exagerado dele me fez rir horrores.

− A sua conta só aumenta, senhorita. Vai ter que pagar por esta agressão, afinal isso é muito, MUITO, errado.

− Eu te dei a oportunidade de você sair comigo, Alex. A conta está mais do que quitada. Boa noite – me despedi voltando-lhe costas.

Enquanto eu avançava para o prédio, a janela do andar da minha vizinha de cima foi totalmente aberta (o que não era de estranhar, já que estava uma noite especialmente quente) e a batida distante de música se tornou totalmente audível, quase como se estivéssemos na festa.

"I love it when you call me señorita

I wish I could pretend I didn't need ya"

("Adoro quando você me chama de senhorita 

Eu gostaria de poder fingir que não precisava de você")

Eu senti meu braço a ser agarrado, ternamente.

"But every touch is ooh la la la"

("Mas todo toque é ooh la la la") 

A pele da mão dele começou a escorregar lentamente até se deter no meu pulso.

"It's true, la la la

Ooh, I should be running"

("É verdade, la la la

Ooh, eu deveria estar fugindo") 

− Dança comigo – sussurrou Alex no meu ouvido, me fazendo arrepiar.

"Ooh, you keep me coming for you"

(Ooh, você me mantém vindo para você")

Ele me voltou na sua direção e meu corpo se colou no dele, instantaneamente. Um íman parecia me estar puxando para aquele homem. Era um magnetismo tão forte que toda a minha consciência ou controle haviam simplesmente sumido. A música não ajudava, já que me fazia lembrar da forma como apenas ele me chamava  (senhorita). E como eu amava aquela música!

Me coloquei sobre as pontas dos pés e meus braços se enlaçaram sobre seu pescoço. Ele me segurou firmemente pela cintura e começámos nos balançando ao ritmo da música. Eu fitava o chão com medo de o pisar, dançar não era propriamente minha melhor habilidade. Ou talvez meu medo fosse outro.

"Her body fit right in my hands, la la la"

("Seu corpo se encaixa bem nas minhas mãos, la la la")

Eu subi meus olhos para os dele, ganhando a coragem que me faltava para o encarar e me entreguei à sensação de estar a dançar com ELE e para ELE.

− "Ooh, you know I love it when you call me senhorita" – cantarolei com a música.

− Aí já é pedir de mais – protestou Alex com a voz rouca, o negro dos seus olhos parecia lançar labaredas.

Sem me dar tempo para entender sequer o que ele queria dizer com aquilo, sua mão subiu para a minha nuca e ele investiu nos meus lábios intempestivamente. Minha boca se abriu para receber o calor da dele. O beijo foi intenso e demorado e a nossa entrega completa. O desejo era mais do que evidente e eu percebi finalmente o que queriam dizer com "química" e corpos que eram feitos um para o outro. Todo o meu corpo entrou em combustão com apenas um beijo e ele parecia saber responder com precisão aos comandos de Alex.

"You say we're just friends

But friends don't know the way you taste, la la la"

("Você diz que somos apenas amigos

Mas os amigos não sabem qual o sabor um do outro, la la la")  

A letra da música me acordou do transe em que eu me encontrava. "O que estou fazendo? Eu tenho namorado!"

Coloquei minha mão no peito de Alex e o afastei um pouco. Nossas respirações estavam ofegantes e eu conseguia sentir o ritmo acelerado do seu coração na minha palma.

− Isto é errado – disse com meu rosto jogado na direção do chão. Estava muito envergonhada e me sentia bem culpada por estar a trair Santiago.

− Senhorita, essa razão não me basta.

Alex subiu meu rosto para ele e voltou a me beijar.

"Ooh love, your kiss is deadly

Don't stop"

("Ooh amor, seu beijo é mortal

Não pare")

O fogo entre nós era cada vez maior e a forma como a boca dele e suas mãos exploravam o meu corpo já não tinha nada de inocente. Eu sentia que estava completamente nua e exposta às suas vontades (que, pior, também eram as minhas).

− Tenho de ir. – Minha voz saiu arrastada. Eu ainda arfava exausta, física e mentalmente, por causa daqueles beijos insanos. E ainda que meu corpo gritasse para que eu me entregasse nas mãos daquele homem, minha cabeça me martelava a consciência para eu me afastar antes que fosse tarde demais.

Corri antes que ele me conseguisse demover. Não olhei para trás nem uma única vez. E, antes da porta de meu prédio se fechar, as últimas palavras da música de Shawn Mendes e Camila Cabello se agarraram a mim.

"Ooh, you keep me coming for you"

("Ooh, você me mantém vindo para você")


https://youtu.be/apqexvPlYqo

Um capítulo para o nosso arrumador de carros inconveniente, que agora já tem nome kkkkkk Espero que tenham gostado e deixo a música que dá corpo a uma parte do capítulo (com a tradução da letra).

Até ao próximo capítulo.

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