Capítulo 8 - Não quero morrer hoje

− Juro que vou mandar a patroa despedir o garoto dos panfletos! – reclamou a Ema ao voltar para trás do balcão.

− Você não pode ser tão inflexível – defendeu Miguel, tentando tocar-lhe, mas logo levando um chega para lá. – Ele não tarda está aí. Talvez tenha ficado retido no trânsito.

Ema expirou pesadamente. Como eu a compreendia! Pessoas que não respeitam horários, me deixam completamente enfurecida. É necessário disciplina, rigor e comprometimento.

Suspirei tristemente ao pensar que meu príncipe seguia à risca esses valores. Claro que isso indicava o bom caráter que tinha, mas também fazia que eu ficasse pendurada, algumas vezes, por causa de pacientes de última hora de extrema urgência. Namorávamos já há duas semanas e eu sentia que a nossa relação não avançava mais pelo trabalho esgotante no Hospital.

Levei à boca uma garfada do bolo de chocolate que já não comia há tanto tempo, mais precisamente desde o dia em que havia conhecido o Santiago. Desde aquele dia, o dia que designei de dia S, que não voltava ali, ao sítio onde tudo começara.

O Starbucks do Oriente estava tal e qual como eu o recordava, isso apazigou-me o coração. Era como se ele tivesse ficado ali, parado no tempo, só esperando o meu retorno.

Sinceramente, não estava nos meus planos regressar. Aquele café era apenas um ponto de partida de um caminho que eu não queria, de todo, que fosse circular.

"Se já tinha achado o meu príncipe o que estou eu fazendo aqui?". Talvez fossem apenas saudades de um local que se tinha tornado tão familiar para mim. Era a minha segunda casa em Lisboa.

− Peço desculpa pelo atraso – ouvi um homem dizer depois do som do sino a que eu sempre ficava alerta (outrora, claro, já não havia razão para isso naquele momento).

Olhei, ainda assim, para cima. Apenas por força do hábito. Ou talvez por falta de melhor para fazer. Observar pessoas poderia ser mais interessante do que fitar um estático pedaço de bolo meio comido.

Qual não foi meu espanto quando percebi que era ele. O AC/DC estava ali, a avançar que nem um carro descontrolado até ao balcão. Coloquei as minhas mãos a segurar a cabeça, como duas palas, para que não fosse reconhecida por ele. Por sorte, ele estava tão apressado que nem olhou para os lados.

Ele tinha acabado por se cansar de me enviar as dez mensagens diárias. Demorou, mas há uma semana que meu celular já não vibrava constantemente. Estranhei a ausência das piadas inconvenientes e dos absurdos sem lógica, mas me senti mais descansada e tranquila. Santiago não iria ficar nada satisfeito se lesse alguma delas, mesmo vendo que eu não dava resposta a nenhuma, ele poderia ficar magoado por eu ter alimentado, de alguma forma inconsciente, toda aquela história sem nexo.

− Nem há um mês trabalha aqui e já é a terceira vez que chega atrasado – disparou a Ema de voz carregada de autoridade.

− Isso significa que consegui algum tipo de record?

− Claro. Nunca aconteceu antes, não sob minha coordenação e eu já trabalho aqui há dois anos!

− Bacana! Qual meu prêmio?

Abafei o riso e tapei o nariz para que ele cessasse o mais brevemente possível. Não poderia deixar que o AC/DC me visse. Mas aquele homem era mesmo impressionante! Ele só tinha um jeito de lidar com as coisas: com humor. Algo que não era muito favorável naquele tipo de situações.

− Uma carta de despedimento, se continuar com essas gracinhas – cortou Ema. Ela tinha pulso firme, não havia dúvida. O perfil de líder dela era inquestionável. – A sua sorte é a clientela ter aumentado em 20% depois de ter começado a distribuir os panfletos.

− Clientela feminina – acrescentou o Miguel tossindo entre as palavras.

− Mulherada fica louca comigo. – Revirei os olhos. Minha vontade era me levantar e o puxar para terra, que o voo já ia alto demais para o meu gosto, mas me contive. – Pena que fiz um voto de abstinência.

− Não estou interessada em saber de sua vida íntima, rapaz. – O tom enojado da voz de Ema quase que me fez perder o controlo de vez. Meu nariz já doía de tanto ser apertado. – Mãos à obra!

Abaixei a cabeça um pouco quando senti que ele se estava a ir embora. E respirei aliviada ao ouvir de novo o sino que indicava missão cumprida. Ele nem dera pela minha presença. No entanto, não consegui deixar de me interrogar, durante a meia hora seguinte, o que teria acontecido se ele me tivesse notado.



"Ai"

Enviei a mensagem, me arrependendo logo um segundo depois.

Foi fraqueza, eu sei. Fiquei magoada, porque, mais uma vez, o Santiago cancelou nossos planos para sair. Não estava afim de ficar em casa, principalmente, por causa da vizinha do andar de cima, que resolvera fazer uma festa, enfiando 3000 pessoas num local onde nem metade cabiam! Talvez estivesse a exagerar um pouco, mas pelo som dos passos pesados que ecoavam por toda a minha sala, não deveria de andar muito longe disso.

Poderia ter saído sozinha, claro, mas aquele encontro mais cedo (ou melhor, o desencontro) deixou-me mais curiosa e agitada do que eu queria admitir para mim mesma.

Fiquei a olhar para o ecrã do celular que nem uma idiota durante um longo minuto. Cada vez mais me martirizando pelo papel a que me estava a prestar. "É mais do que óbvio que ele já se cansou deste jogo!"

Atirei o celular para a outra ponta do sofá, me recriminando mentalmente. Minha cabeça caiu na direção dos meus joelhos dobrados, usando-os como amparo.

Ao sentir o sofá vibrar, levantei a cabeça. "Será da música alta da festa do andar de cima?".

Da segunda vez, para além de sentir a vibração, ainda vi a luz se acender na tela do meu celular, junto aos meus pés. Me lancei que nem louca para o apanhar e sorri ao ver marcadas duas novas mensagens do AC/DC.

Senhorita, acabei de gritar feito um louco em pleno restaurante! Saí a correr sem dar nem explicação ao patrão. Depois convido ele para nosso casamento para compensar.

Ri histericamente sozinha no sofá do meu AP. Toda eu tremia de nervos pela antecipação. Ele estava a dar demasiado importância a uma simples saída de conhecidos. Para mim, era apenas uma experiência, nada de muito relevante, mas ele parecia ter criado algumas expectativas ilusórias a meu respeito. Não que eu achasse que ele estava falando a sério a respeito do casamento, mas largar o expediente só para sair comigo?

Preciso de morada. Mas sinais de fumo e fogo-de-artifício também estão valendo. Luzes de natal em volta da janela podem ser igualmente úteis. Te acho de qualquer jeito, agora.

A obsessão dele poderia parecer sinistra para a maioria das pessoas. Bom, talvez para todas, mas não para mim. Aquela insistência toda em me conhecer melhor estava a agradar-me sobremaneira. Enquanto Santiago priorizava sempre o trabalho, ali estava alguém que me colocava em primeiro lugar. Que largava tudo só para ter a oportunidade que tanto pretendia. Talvez eu estivesse carente. Não importava a origem daquela minha vontade, não naquele momento.

Sem racionalizar muito a questão, enviei a minha morada e esperei que ele não fosse um psicopata pronto a dar o último golpe.



Meu coração saltou descompassado quando o vi parar a mota em frente de meu prédio. Aquilo me soava tudo muito errado. "O que é que eu estava fazendo?"

Eu estava sentada nas escadas exteriores. Resolvera sair de meu apartamento para ele não saber exatamente onde eu morava. Claro que ele poderia tocar em todos os andares até descobrir qual era meu apartamento, mas, pelo menos, a tarefa sempre ficava mais complexa.

Ele tirou o capacete e lá estava aquele sorriso maroto, completamente presunçoso, que me tirava do sério.

− Senhorita – cumprimentou, me estendendo o capacete extra. Hesitei. Ainda estava a tempo de desistir daquela loucura. – Eu espero a noite toda aqui, se tal for preciso.

− Não, a noite toda é demasiado tempo – respondi sorridente. Avancei até ele e peguei no capacete. – Nada de ir demasiado rápido. Não quero morrer hoje.

− Morrer? Não, está equivocada. Eu vou, mas é, mostrar à senhorita o que é realmente viver!

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