Capítulo 7 - AC/DC

Foi preciso uma semana e exatamente sete encontros para que o tão esperado beijo acontecesse. Santiago estava de tal modo empenhado, que me convidava todos os dias para sair. De toda a vez, era um cronograma diferente. Criatividade não lhe faltava! Como era médico e tinha uma agenda apertada, alguns dos encontros não duraram nem trinta minutos, mas já estava valendo. E ele se estava a mostrar bastante paciente para esperar pelo momento certo, o que fez que subisse mais alguns pontos na minha consideração.

No sétimo dia, em um sábado, Santiago convidou-me para assistir a um concerto da Orquestra Gulbenkian, o que não era muito a "minha cena", mas lá lhe fiz a vontade depois de alguma insistência.

Ficámos num lugar bem central e próximo do palco o que animou as coisas nos primeiros 30 minutos de concerto. Os instrumentos pareciam vivos, falando uns com os outros de uma forma muito particular e intensa. Mas aquilo apenas continuava e continuava e continuava... Não culpo a orquestra, mas antes meu ouvido pouco treinado para o gênero clássico. Se fosse um Shawn Mendes ou um Ed Sheeran em cima do palco, bem que poderia durar uma eternidade, que ainda assim não me iria cansar.

Ao sentir o meu celular vibrar, vi ali uma oportunidade para fugir ao tédio que me corroía por dentro. Não estar a aproveitar um encontro que meu príncipe me havia proporcionado, me deixava um pouco culpada. Principalmente, quando espreitava seu rosto completamente emerso no espetáculo diante de nós. Os seus olhos até brilhavam.

Tirei, discretamente, o celular da bolsa que tinha sobre o colo e suspirei ao ver o nome do emissor da mensagem: "AC/DC". Aproveitei para saborear minha genialidade ao guardar o número do Arrumador de Carros/ Destruidor de Celulares com o nome da banda australiana de rock. Ainda não lhe sabendo o nome, já que fiz questão de não abrir as mais de 50 mensagens que ele me havia enviado durante toda a semana, aquele parecia o rótulo ideal, já que a alternativa era demasiado extensa.

Ergui de novo o rosto para o palco e meu pé começou a agitar (e não era pela música). Quando eu tomava uma decisão, era difícil de voltar atrás nela. Mas as condições adversas daquela situação não estavam a ajudar. Estava extremamente aborrecida, meu potencial futuro namorado não me estava a ligar nenhuma e ainda devia de ter uma hora de concerto pela frente.

Para todos os efeitos, estava encurralada em um beco com uma luz a piscar bem à minha frente, não seria humana se nem sequer desse uma espreitadela na mensagem.

Desabafo nº 60

Só para dizer que continuo aqui. E estou, ansiosamente, à espera do "ai".

"Mas que raio?" Aproximei um pouco mais o ecrã, para ter certeza de que estava a ler bem. "O que é que ele quer dizer com isto?"

Não perdia nada em recuar nas mensagens para ver o que ele tinha andado para ali a dizer. Fiz scroll até à última mensagem lida e olhei para a seguinte.

Senhorita, pode marcar aí meu contato como "gostoso", mesmo. É que a alcunha que me arranjou é um pouco grande. A não ser que esteja interessada em saber meu nome.

Ele se achava mesmo! "Como ele reagiria se soubesse que eu tinha definido o contato como AC/DC?"

Vamos a um desafio? Se você adivinhar meu nome, eu passo a enviar uma mensagem por dia. Se errar, envio cinco. Mas se nem tentar, serão dez mensagens por dia! Você escolhe a tortura que mais lhe agradar.

Estava explicada a determinação do homem! Ele via aquilo como um jogo. Um jogo em que eu tinha entrado, sem sequer saber.

Não consegui evitar me questionar sobre o nome dele. Quando era criança tinha um menino chato que sempre andava atrás de mim para falar sobre sua coleção de borboletas mortas. Eu achava aquilo bem sinistro e o evitava o tempo todo. Se chamava António e decidi que esse seria um bom nome para o AC/DC. Sorri para o celular.

Estou a ver que isto vai ser interessante! Assumo o silêncio como uma vontade imensa de ler minhas palavras. "Gostoso", então, ficará. Quando experimentar, vai ver que a palavra não me poderia definir melhor.

"Continua sonhando", protestei internamente ao revirar os olhos.

Desabafo nº1

Vontade de matar o funcionário lento da caixa do supermercado, conta como errado? Porque se sim, eu faço com cuidado para deixá-lo apenas inconsciente.

Abafei meu riso com a mão. Errado era eu rir com aquela parvoíce. Espreitei Santiago que continuava completamente vidrado no palco. Respirei aliviada e desci algumas mensagens sem ler.

Desabafo nº 6

Numa disputa entre um caracol e uma lesma quem chega primeiro na meta? Sem paciência para descobrir. Vou colocar o caracol na panela, junto com os outros.

"Eca!" Ele era daqueles portugueses que comia caracóis. Eu achava isso absolutamente repugnante. Mas não poderia negar que o homem tinha humor. Um humor duvidável, mas ainda assim humor. E ainda cozinhava. "Sim, um homem para casar, sem dúvida", pensei irónica.

Desabafo nº 7

É certo pensar errado do que já foi certo e já não é? É, acho que é, né?

Tive que ler a mensagem mais umas duas vezes e, no fim, achei apenas ridículo. Este homem não tinha nenhum entretenimento melhor do que encher meu celular com nada? Ao menos, que partilhasse algum fato científico, sempre seria mais interessante.

Desci mais algumas mensagens e parei em uma nova aleatória.

Desabafo nº 15

Quando um homem diz que não quer nada com uma mulher, e a mulher diz que quer tudo dele, é certo ficarem pela metade? Não, né? Conselho precioso! Uma noite de sexo louco apenas, anotado.

"Será que foi isso que aconteceu com a garota lá da noite anterior?" Me estava parecendo um verdadeiro mulherengo, isso, sim. E, na volta, ele estava achando que eu me iria juntar à fila. "Como era iludido!"

Desabafo nº 21

É certo ignorar as mensagens de um homem carente? Sua divida está ficando grande, senhorita.

Abafei novo riso e atirei meu celular para a bolsa aberta ao sentir Santiago se agitar ao meu lado. "Coçando apenas a perna", percebi. "Uffa!" Respirei aliviada. Me sentia uma traíra, mas eu não estava fazendo nada de mal. Estava apenas totalmente desatenta em um concerto que Santiago queria muito que eu assistisse, lendo mensagens que um outro cara qualquer me enviara. "Super inocente!", conclui, me afundando no assento almofadado.

No entanto, dei por mim a voltar a tirar o celular da bolsa.

Desabafo nº 25

Senhorita, alguma vez andou de mota? Encontro marcado! No dia que me responder com um "ai", eu vou ter com a senhorita, na hora, para subir na minha garupa. Quer dizer, na garupa da mota.

Ali estava o enigma do "ai" que ele estava, ainda hoje, esperando receber.

"Nunca que me apanhariam em cima de uma mota, muito menos da dele!".

Li o resto das mensagens que eram, na maioria, gracinhas aleatórias, que tinham um certo grau de piada, mas não exageremos, até que dei com uma mensagem que me chamou mais a atenção.

Desabafo nº 48

Senhorita, já que não vê minhas mensagens, mesmo... É justo mães que desaparecem no mundo com um cara do circo, deixando o filho a cuidado de qualquer um, voltarem passado 15 anos para recuperar os anos perdidos? Caso perdido, né? Também achei.

Aquilo era profundo. Uma parte bem real da vida dele, uma mágoa que talvez não tivesse partilhado com ninguém e só o estivesse a fazer comigo, porque pensava que eu nunca iria olhar para as mensagens. Mas olhei. Minha mãe talvez dissesse que o desapego dele com as mulheres se devesse a esse espaço deixado de forma tão abruta e mal explicada pela mãe. Trocar o próprio filho por uma paixão, não se fazia! Muito menos, sem garantir que seria bem cuidado por alguém de confiança. Me perguntei o que seria feito de seu pai. Se o teria sequer chegado a conhecer. "Que infância terá vivido? Com quem e em que condições?"

Era uma curiosidade banal, ou talvez uma vertente que tinha herdado de minha mãe, mas considerei que me preocupar com ele fazia parte. Não que aquilo desculpasse tudo, mas, abriu uma fresta algures dentro de mim de que eu não me apercebi na altura, pelo menos, não completamente.

Os aplausos me fizeram acordar de meu transe. Me levantei com o resto da audiência e bati as palmas junto com todos os outros. O tempo ao menos tinha passado mais rápido e poderia finalmente aproveitar um tempo de qualidade com Santiago. "Ele me faria esquecer desta história das mensagens", me tentei convencer.

Depois do concerto, eu e meu príncipe fomos passear à beira-rio. A noite estava preenchida com algumas estrelas no céu e uma meia lua brilhante. Quando ele me agarrou na mão e me fez parar o passo, eu soube que o momento tinha chegado. Não haveria, certamente, cenário mais romântico para um primeiro beijo.

Pouco-a-pouco, e sem nada dizer, ele foi aproximando o rosto do meu, até que nossos lábios se colaram com doçura. A ternura com que continuava a agarrar-me na mão e a forma "sem pressa" com que me beijava, me deu certeza de que ele era um verdadeiro príncipe. Não houve o "fogo-de-artifício", nem o frenesim ou magnetismo de que os livros falavam, mas me pareceu o beijo certo.

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