Capítulo 4 - O certo é o certo

Eu não estava acreditando no que estava a ver! Me aproximei na esperança de que fosse alguma ilusão provocada pela penumbra da noite. Inclinei a cabeça, num ângulo novo, e, apesar do carro estar do outro lado da estrada de uma via apenas, as duas formas humanas que se moviam no banco detrás eram evidentes. Voltei a espreitar o celular que trazia na mão, e ele continuava absolutamente seguro de que aquele Porsche à minha frente era o Porsche do Santiago. E toda a gente sabe que as tecnologias nunca se enganam!

Atravessei a estrada vazia e imersa em silêncio e espreitei através do vidro do carro para perceber o que se estava a passar lá dentro. Ou melhor, para confirmar minhas suspeitas, porque eu não era tão ingênua assim.

O idiota do arrumador de carros estava sobre uma vagabunda qualquer, que espetava as suas unhas de gel nas costas arquejadas do cara. A mulher tinha a blusa puxada para cima e o arrumador, de rosto enfiado algures lá por baixo, parecia determinado em achar, talvez, uma moeda que tivesse perdido no decote dela. Os corpos dos dois moviam-se de uma forma que eu não tinha a certeza se estava a assistir a pleno ato ou apenas às preliminares. De qualquer uma das formas, era nojento! E tudo só piorava ainda mais, porque tinha sido precisamente no banco de trás que eu tinha jogado a bolsa ao entrar no carro.

Meu instinto era parar com aquilo imediatamente, todavia, minha racionalidade estava bem desperta naquele momento. Se havia coisa que eu odiava era injustiça e não poderia deixar eles saírem impunes da situação. Aproveitei eles estarem completamente absorvidos no que estavam para lá a fazer e comecei a gravar com o celular do Santiago. Com provas não havia como o espertinho dar a volta à situação.

Virei o rosto para o lado enquanto o celular captava as imagens e, ao fim de uns segundos, apertei no stop. Certifiquei-me de que a qualidade do vídeo era suficiente para reconhecer o arrumador, e sorri quando na tela deu para ver ele a subir o rosto até ao pescoço da garota. Enviei o ficheiro para o meu celular, que sempre estava em modo silêncio, só para me assegurar de que tinha um backup. Agora sim, estava pronta para acabar com a festa.

Com a palma aberta, bati fortemente no vidro. Confesso que me deu um certo gosto ver a cara de pânico do cara que se tentou afastar o mais possível da mulher, deixando-a exposta ao meu olhar. Ela tinha a saia subida até à cintura, fazendo-a parecer um simples cinto, e, na aflição, a moça nem sabia qual das partes do corpo praticamente expostas haveria de proteger.

O arrumador saiu disparado do carro, segurando as calças junto à cintura, para evitar que caíssem.

− Sabe que isso é crime, não sabe? – provoquei.

O rosto dele mudou ao reconhecer-me. Já não demonstrava qualquer tipo de receio, muito pelo contrário. A presunção tinha voltado em força e o peito desnudo inchou, tornando os abdominais ainda mais salientes. Eu juro que não olhei para o "v" largo que se perdia nas calças desapertadas. Bom, talvez só um pouco, mas foi meu inconsciente a comandar-me, por isso não está valendo.

− Isso o quê? – Ele começou a apertar a breguilha descontraidamente. − Não aconteceu nada.

− O carro não é seu para sair assim usando para... essas poucas vergonhas!

− Também não é seu, senhorita. É do seu namorado, se é que ele é seu namorado.

Não gostei nada da insinuação na voz dele. Ele devia achar-me uma mal-amada, alguém que não conseguia arranjar sequer um namorado! O que não estava muito longe da verdade, mas ele não precisava de saber dessa parte. Melhor, ele não precisava de saber nada sobre a minha vida!

− Isso não vem ao caso. O que importa é que é errado.

Ele me olhou intensamente, como me desafiando, mas eu firmei minha posição. Se a intensão era me intimidar, ele iria fracassar. O arrumador começou a caminhar na minha direção como um predador pronto a dar o bote na presa.

− O...errado...por vezes...pode...ser... − pronunciou palavra a palavra lentamente e me lembrei de um encantador de serpentes lançando seu feitiço. Mas no caso a serpente era eu. Ele esticou a mão para me tocar no rosto, porém me esquivei a tempo. "Se ele acha que vai ser assim tão fácil me dar a volta, está muito enganado!" – Muito certo – concluiu sorridente, passando a mão, abandonada no ar, pelos abdominais.

Aquele cara começava a irritar-me mais da conta! "Ele se acha o pacote das bolachas inteiro! Mas nem para migalha ele serve!"

− Não. O certo é o certo. E o errado é o errado. E eu vou fazer o certo com isto aqui. – Acenei com o celular no ar. Me sentia poderosa vendo a sua expressão de confusão colada no rosto.

− Vai ligar para a polícia? Senhorita, não perca seu tempo, não vão acreditar em si. E na altura em que eles chegarem, já estarei bem longe.

− Não. Já me contento com um despedimento. E seu patrão vai acreditar em mim, sim. Não tem como não acreditar quando vir o que eu tenho para mostrar.

Minha reação foi lenta demais à investida dele, e o arrumador conseguiu facilmente tirar o celular de minhas mãos.

− Isso é do Santiago! – protestei, me lançando para a frente, mas o arrumador mais uma vez saía na vantagem. A garota apareceu do nada já recomposta e se colocou na minha frente e o homem correu para um ponto mais próximo do carro, enquanto olhava para a tela do celular. – Me devolva agora!

− Eu não estou a acreditar que a senhorita gravou! – Os seus olhos negros brilhavam na distância. Seu sorriso continuava lá pendurado a desafiar-me. – Gostou do que viu, foi?

− Óbvio que não! Estava apenas a recolher as provas de que precisava.

− Ups! Precisava deste vídeo? Parece que o apaguei sem querer.

A guria oferecida gargalhou à minha frente, fazendo meu sangue ferver ainda mais. Cerrei os punhos com força, joguei meu corpo para a frente, esbarrando propositadamente nela, que lançou um queixume agudo, e avancei até ao carro determinada a ir buscar aquilo que me tinha levado até ali, na primeira instância.

Demorei algum tempo a achar a bolsa, que tinha sido, felizmente, jogada para debaixo do banco do condutor.

− Passar bem – me despedi, colocando a bolsa ao ombro e segui meu rumo.

− Espera. Espera. Espera. – O arrumador se colocou à minha frente e estendeu o celular do Santiago para mim. Já estávamos do outro lado da estrada. – Suponho que queira isto de volta. – Semicerrei os olhos e tirei-lhe o objeto, que não lhe pertencia, das mãos. – Sem ressentimentos, certo?

− Asseguro-lhe que não é algo pessoal – comentei com amargura. − Faria o mesmo fosse quem fosse. – Talvez até fosse verdade, mas estava a dar-me um gosto especial a ideia de vir a acabar com aquele sorriso presunçoso de uma vez por todas!

− "Faria o mesmo"? – indagou, se debruçando sobre as palavras que eu tinha deixado escapar.

Eu não esperava que ele fosse inteligente ao ponto de perceber que eu continuava com os mesmos planos de há pouco. Que ter apagado o vídeo tinha-lhe servido de pouco, já que eu me havia precavido.

Ele correu atrás de mim, sem que eu sequer me apercebesse, e puxou a minha bolsa para si com tanta força, que meu corpo girou e meu braço balançou fazendo a bolsa voar no ar. Como estava aberta, já que o fecho avariara há muito, quase todos os meus pertences dispersaram cada um para seu lado. Estremeci ao ouvir o som do meu celular a se esborrachar contra o asfalto.

− Idiota! – gritei. Meus passos eram de pura fúria, enquanto avançava para recuperar as minhas coisas.

Inevitável será dizer que meu celular morreu na hora, com o impacto. As peças demasiado usadas se desintegraram e aquilo mais parecia um puzzle para montar, mas dos difíceis! Já não havia como recuperar tudo o que eu tinha ali dentro. Eu não usava cartão de memória, sequer. Recolhi ainda assim as peças uma por uma e guardei-as na mala, poderia ser que um técnico especializado conseguisse operar um verdadeiro milagre com aquilo.

Não me dei ao trabalho de apanhar os meus cartões de contato da empresa, que se haviam espalhado por todo o lado na estrada. "Passa a ser publicidade acidental", decidi.

− Eu... − ele começou, mas eu nem quis ouvir. Passei por ele como se fosse completamente invisível. Que guardasse as palavras para a imbecil que tinha caído na cantada dele! Naquele momento, já nem a voz dele eu suportava. 

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top