Capítulo 1 - O Dia S

Aquele dia, o dia que eu, mais tarde, vim a denominar de dia S, não estava a correr muito bem. Bom, para mim não estava a correr nem bem, nem mal. Apenas corria normalmente. Um dia como outro qualquer.

Já era a terceira vez que Ema passava a mão pelo avental verde. A cor nunca lhe assentou bem (mas a mim fica um arraso, devo acrescentar), porém não era esse o motivo do incómodo da garçonete.

Ela estava de costas para mim, junto à mesa do canto, onde um homem delgado franzia as sobrancelhas em desagrado. A garota quase enfiou o papel da ementa na cara do cliente, depois deste insistir, mais uma vez, que pretendia uma refeição de prato.

"Será que ele não percebe que está num café?"

Está certo que não era um café qualquer, mas ainda assim, a filosofia do lugar é bastante percetível para qualquer um. E não é que faltem restaurantes pela zona. Àquela hora, todos certamente apinhados de gente, enquanto o requintado Starbucks do Oriente oferecia oxigénio em abundância.

Lisboa tem essa coisa estranha de atrair pessoas. Sejamos sinceros, Portugal resume-se à capital e pouco mais. Se não vejamos, onde encontramos mais Starbucks por metro quadrado no país? Isso mesmo, em Lisboa! Não há prova maior do que essa! E eu não consegui escapar desse magnetismo. Aliás, para o meu plano funcionar melhor e eu não ir à falência em viagens recorrentes, tive que me render ao inevitável.

O homem de nariz empinado se levantou em um salto, colocou seu ipad debaixo do braço e saiu porta fora, em meio a impropérios que eu preferi fingir não ter ouvido. Eu e Ema trocámos um olhar cúmplice, quando ela se virou para retornar ao lugar sereno e tranquilo que a esperava atrás do balcão. Apesar de não sermos amigas, e de a nossa relação se resumir a cliente/empregada, nos vemos quase todos os dias (a não ser Sábado e Domingo, que é quando ela está de folga), e isso, parecendo que não, acaba criando um pequeno laço de confiança. É quase como se eu a conhecesse. Na minha cabeça, a personalidade da Ema está mais do que bem definida, quase um ano de observação me dá segurança o suficiente para eu saber quem, e como, ela é. Certamente, que ela também terá chegado às suas próprias conclusões sobre mim.

− Estava quase para saltar sobre o balcão para ir dizer poucas e boas ao cara – explicou Miguel exaltado. Não trabalhava nem há dois meses ali, mas fazia de tudo para transparecer a melhor imagem possível à subgerente, no caso, a Ema. Eu só ainda não estava absolutamente certa do tipo de interesse que marcava aquela sua posição tão vincada.

− Deixa-te mas é estar aí quietinho. – Ema começou a trocar a ordem das pilhas de copos. Fazia-o sempre que estava mais nervosa. − Eu não sou uma donzela indefesa e você, muito menos, o homem-aranha!

Miguel baixou a cabeça como uma criança que acabava de ser repreendida. Os olhos dele fugiam a medo, vez ou outra, para a sua chefe, que se concentrava na tarefa que tinha, literalmente, entre as mãos. Talvez ele gostasse que, pelo menos por uma vez, ela fosse mesmo uma donzela indefesa à espera dele. No entanto, Ema não estava procurando por um super-herói que a agarrasse pela cintura e a levasse a sobrevoar a cidade. Já eu...

Suspirei com a ideia de ter um Peter Parker ou um Clark Kent na minha vida, até um Wade Wilson estava valendo. Mas eles deviam andar todos ocupados, salvando uma outra donzela qualquer que não eu!

Qualquer pessoa que me conheça, diria que eu sou uma "Ema" na vida. Me acham distante e fria, o exato oposto de uma pessoa romântica. A culpa foi dos desenhos animados que via em criança, depois dos filmes e séries, as músicas pop melosas não ajudaram muito à história também, e tudo terminou com os livros românticos bem clichês que amo.

Há cerca de dois anos atrás, comecei a navegar pelo mundo literário imenso que o wattpad oferece e cheguei a uma conclusão: "Os Starbucks são imanes de histórias de amor". Elas parecem se gerar instantaneamente aí, como um lugar mágico que traz Shawn Mendes para os seus braços em cinco dias. Bom, já se passaram um pouco mais de 5 dias e nada de estrelas pop à vista. Mas eu nem sou tão exigente assim, eu só pretendo um homem lindo, sedutor, fiel, responsável e cavalheiro que fique perdidamente apaixonado por mim. Acho que não é pedir muito.

Ao menos não poderiam me jogar à cara que não me estava esforçando para isso. Vivia em Coimbra e vinha todos os dias a Lisboa, ao final do dia, para tentar encontrar minha alma gémea. Eram quatro horas de viagem por dia e metade do meu salário no final do mês só em viagens, cafés, sandes (ou, por vezes, bolos). Mas eu sabia que ia levar tempo e se continuasse assim, chegaria rapidamente à falência, já para não falar da quantidade de horas desperdiçadas. Por cada um dos longos minutos que passava dentro do comboio, só me conseguia sentir cada vez mais agoniar com a ideia de meu homem de sonho estar no Starbucks do Oriente naquele exato momento. Era uma viagem dos infernos! Uma verdadeira tortura, principalmente para alguém que prefere estar com os pés bem assentes em terra.

Foi aí que decidi mudar tudo só para ficar mais próxima de atingir o meu tão desejado objetivo. Mudei de cidade, casa e emprego. Não conhecia ninguém em Lisboa, e minha família vive toda em Coimbra, então tive de me virar sozinha. Algo que não me incomodou nem um pouco. Sempre prezei bastante pela minha independência e minha organização e dedicação são suficientes suportes para mim. Com apenas 22 anos, já trabalho em um grande departamento Informático de uma multinacional bem renomada e em progressão exponencial. Não tenho um salário de encher os olhos, mas o que importa é que me enche a carteira, permitindo que ela nunca fique totalmente vazia.

Uma coisa que sempre me incomodou foi meu desejo de independência ser tão incongruente com meu sonho de "menina" de ter um príncipe só para mim. Talvez eu não seja fácil de entender. Os outros certamente que não me percebem, nem mesmo os meus pais, e acho que nem eu me consigo compreender a mim própria. Minha mãe, psicóloga clínica, diria que Sigmund Freud explicaria algo do gênero como um desejo reprimido durante a infância. E, provavelmente, colocaria as culpas no meu pai. O Freud, digo. Se bem que minha mãe era capaz de concordar com essa tese aí.

Levei à boca mais uma garfada do melhor bolo de chocolate que já comi na vida. Enquanto não dava de caras com a minha grande paixão, entregava meu amor àquela delícia culinária que encontrei no Starbucks. Pelo menos, ia confortando o estômago, enquanto meu coração não se orientava.

A subtil, mas marcante presença, da canela, me fez arquejar de desejo. De olhos fechados, me rendi apenas àquela sensação pura e intensa.

O garfo subiu, numa nova investida lenta e ansiosa, e eu me inclinei para abocanhar o novo pedaço de bolo de tamanho exagerado. Ouvi o som estridente, que rapidamente reconheci como pertencente ao pequeno sino que jazia no topo da porta do café e me sobressaltei. A expetativa sempre me apanhava desprevenida. Já havia aprendido a associar aquele maldito sino a desilusão, mas continuava a detetar as claras notas de esperança que a racionalidade do meu plano me providenciava.

Abri os olhos apenas a tempo de perceber que era um homem magro de fato e gravata. A minha garganta obstruída me impedia de respirar e de processar qualquer estímulo que não envolvesse oxigénio. Tossi desalmadamente, tentando expulsar o desgraçado do bolo que já amaldiçoava por aquela altura.

Me levantei aflita, com o rosto já vermelho, deixando a cadeira cair atrás de mim, e levei as mãos ao pescoço, que já latejava do esforço exacerbado.

Senti uns braços a envolveram a minha cintura, e a me espremerem contra um corpo quente atrás de mim. Espremiam e relaxavam. Espremiam e relaxavam. Espremiam e relaxavam. Em movimentos sucessivos e bem rápidos, que me fizeram sentir como se estivesse numa montanha russa. E eu apenas conseguia tossir, cada vez mais, até que um negro pedaço húmido e disforme voou sobre a "minha mesa" e aterrou no chão.

− Sente-se bem? – questionou uma voz grossa que me fez congelar no lugar. "Porque é que não conheço esta voz? Não foi nem o Miguel nem a Ema a salvar-me da morte certa?", pensei abismada.

O homem me circundou e parou mesmo à minha frente, olhando fundo nos meus olhos.

− Sente-se bem? – repetiu ele, agarrando a minha mão.

"Porque é que ele está a agarrar a minha mão?".

Olhando para seus curtos cabelos negros bem penteados, para o brilho do azul dos seus olhos e para o queixo retangular e másculo, setas (que apenas eu via) se desenharam em volta daquela cabeça perfeita. Eram setas enormes e bem vermelhas! Ele estava bem vestido, era educado e atencioso e ainda parecia daqueles galãs de TV, por que todas suspiramos. Minha bússola interior firmava posição na direção daquele homem esplendoroso. E, convenhamos, a forma como nos conhecemos parecia digna de um típico romance clichê. Naquele momento, poderia jurar que a história porque tanto havia procurado, estava prestes a acontecer!

Sorri orgulhosa de minha teoria estar mais do que certa. Não cabia em mim de tão radiante que estava.

− Eu... a... que... − gaguejei, vendo que ele esperava que eu dissesse algo. O problema é que eu não sabia o que dizer. Tinha acabado de chegar à constatação que aquele homem era a minha alma gêmea. Ele não poderia esperar que eu fosse capaz de estar na minha total sanidade e controle, não é mesmo?

Ruborizei pela figura triste que fazia diante de meu príncipe encantado. Lembrei que poderia ter vestígios de saliva no rosto e esfreguei a mão disfarçadamente (talvez não tanto assim) por baixo da boca. Senti vontade de me enfiar num buraco quando minha mão ficou húmida, comprovando minhas suspeitas.

"Raios! Eu aqui achando ele um Deus grego, e ele sentindo zero atração por uma mulher que acaba de cuspir uma bola nojenta pelo ar. Quem o poderia julgar?"

Ele sorriu e eu enruguei o rosto confusa.

− Se estiver engasgando de novo, eu posso voltar a usar a estratégia de há pouco.

A mão dele afagou a minha e eu só consegui pensar que aquele homem era perfeito.

Me senti tentada a confirmar a necessidade de ele envolver minha cintura com seus braços fortes, mas achei melhor me conter. Eu tinha que me comportar como uma verdadeira princesa para conseguir atingir meu objetivo de fisgar aquele achado.

− Estou bem. Obrigada. – Pestanejei um pouco as minhas curtas pestanas, me arrependendo de seguida. Devia de estar a fazer figura de totó ou de desesperada. Uma das duas, claramente. Talvez as duas em simultâneo.

− Santiago. – Ele me piscou o olho direito e firmou a mão em volta da minha. Aquele nome parecia feito para ele. "Meu santo salvador!" − Qual a sua graça, bela donzela?

Eu estava a ponto de desfalecer aos pés daquele homem.

"Como ele podia ser tão perfeito?"

− Flora.

− Encantado.

− Agradeço mesmo muito ter-me salvado a vida – lembrei de reforçar. Eu estava em dívida para com ele e isso me podia vir a dar jeito. Minha cabeça já fervilhava a segunda etapa de um plano que tinha tudo para dar certo. Ajeitei meu coque frouxo e coloquei minha melhor pose clichê, que incluía obviamente os joelhos trémulos. – Tem que me deixar recompensá-lo.

− Não. Não é preciso. Sou médico, meu trabalho é isto.

Me senti desmotivar. "Ele acabou de me equiparar a trabalho? Pensava que estávamos a partilhar uma conexão especial..."

− Mas se fizer muita questão... − Meus olhos voltaram a levantar esperançados ao ouvir aquela voz grave a ceder à minha insinuação de há pouco. – Talvez um jantar hoje à noite?

"Jantar? Esta noite?" Ele não só queria jantar comigo, como parecia estar com pressa. Isso tinha que ser bom sinal, certo?

Mergulhei na certeza de que éramos feitos um para o outro e, contendo ao máximo meu entusiasmo, aceitei o convite.

Starbucks. Santiago. Sensacional! Aquele era mesmo meu dia S!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top