Epílogo
Um sorriso.
O recobrar da minha consciência acompanha o nascer do sol. A palidez cinza da manhã que escapa pelas persianas me chama. Logo são os passarinhos. Eles amam esta nação.
E é com um sorriso que desperto. Leve, impensado, acidental. Inesperado. Jamais pensei que seria possível despertar e não desejar morrer. Acordar e não sentir dor. Sem preocupações.
Apenas grandes expectativas.
Sequer sobressalto quando vejo o rapaz sentado na beirada do meu leito, os antebraços apoiados sobre os joelhos, os ombros relaxados, uma xícara fumegante de café em suas mãos e olhos brilhantes no rosto.
— Bom dia — cantarolo com um gemido prazeroso, enquanto arrisco alongar todo o meu corpo de uma só vez. — Isso nem é assustador. Acordar com alguém me observando — gracejo.
— Achei que apreciaria começar seu dia com uma xícara de café. — Ele me estende o recipiente.
Pisco os olhos sonolentos e me assento na cama, arrastando comigo o lençol sedoso à medida que curvo as pernas e deposito os pés sobre o colchão, enquanto balanço a cabeça preguiçosamente em concordância. Aspiro o aroma dos grãos torrados e me delicio em antecipação. O primeiro gole é sempre o meu favorito.
— Você tem sorte — digo num tom brincalhão, após engolir uma porção generosa. — Quem sabe, talvez, você não me encontrasse na minha cama esta noite.
Ele cora, constrangido, como um menino, e vejo em seu olhar a pergunta: na cama de quem estaria?
Simplesmente ignoro a questão e deixo o mistério pairar.
— Qual é a ocasião? — pergunto, casualmente, limpando eventuais vestígios da bebida no lábio superior com a língua.
— Seu aniversário, oras — o garoto diz, em tom de surpresa. — Um ano, esqueceu?
Ergo as sobrancelhas e olho para a janela coberta por persianas artesanais, sem realmente enxergá-la.
— Um ano? — Estou realmente surpresa.
O tempo é tão volátil. Em todos os aspectos, ainda me parece que foi ontem que conquistei a cidadania. Nestes mesmos aspectos, parece que foi há uma vida.
Raah se arrasta e senta-se próximo ao ponto onde meus pés estão escondidos sob o lençol. Ele estende a mão e, imediatamente, retribuo o gesto. Então, ele a ergue a seus lábios e a beija.
— Está na hora, 'Dassa — ele sussurra próximo às juntas dos meus dedos. — Está pronta para o próximo passo?
Assinto com a cabeça, inspirando fundo. Estava tão ansiosa por esse momento que decidira não pensar a respeito, considerando o risco de que eu ficasse louca.
Ele o tem pendurado na ponta de seu dedo indicador e com cuidado o deposita em minha palma aberta.
Um pequeno bracelete azulado.
Pisco algumas lágrimas de emoção enquanto observo o tão esperado presente.
— Onde fica? — é minha primeira questão.
Raah ri.
— Você sabe que isso é muito mais do que apenas uma chave, né?
Reviro os olhos e rio de volta, tentando disfarçar que meu maior interesse agora é cair fora daqui.
— Bem, você vai adorar. — Ele sorri e percebo, no seu tom, que estava ansioso para me dar a notícia. — Com vista para o lago. Sei o quanto você gosta de lá.
A informação me traz minha primeira pontada de pesar do dia. Há outras casas ao redor do lago. Uma, especificamente, onde passei meus primeiros meses nessa nação como uma mera visitante. Alojada de improviso num depósito.
Raah parece ler a minha mente e logo completa:
— Fica do outro lado. — Seu olhar parece, repentinamente, quase preocupado, receoso. — Onde os banhistas costumam ficar.
Sorrio e pressiono as pálpebras por um instante, como uma piscada intencional e significativa, balançando a cabeça em negação. Quero dizer "estou bem". "Está tudo no passado agora". Em vez disso, abro os olhos, deixo escapar um suspiro semi-esperançoso, semi-melancólico, observando mais uma vez o objeto em minha mão. A expressão do rapaz se ilumina novamente e trocamos um olhar cúmplice de missão cumprida.
— Você conseguiu — digo, após um suspiro. Estou envolta em nostalgia. Não posso negar a ele a admiração que sinto, particularmente como treinador. — Você realmente conseguiu.
O garoto se curva sobre mim e, num gesto carinhoso, abraça minha cabeça, apertando-a levemente contra si. Desvio a xícara do caminho, a risco de deixar derramar alguma gota do conteúdo precioso. Meu ouvido colado em seu peito não apenas ouve, mas, de fato, sente o movimento cardíaco acelerado sob a camiseta.
— Não, você conseguiu — pronuncia com uma voz ligeiramente corrompida pelo toque de emoção. — Você e só você. Seus pais estariam orgulhosos. — E, afastando-se novamente, deposita uma mão sob meu queixo. — Eu estou orgulhoso. Obrigado pelo privilégio de ser seu treinador.
Ergo minha xícara como num brinde e continuo balançando minha cabeça inclinada numa negativa lenta, o sorriso falso ainda estampado, negando a mim mesma os louros e a ele o direito de se sentir orgulhoso.
Ele só não sabe que é disso que se trata.
Eu acordo com sorrisos em Tibbutz. Vivo meus dias como posso.
É inacreditável as coisas que passamos a tolerar quando sentimos que não há nada a fazer para mudá-las. As monstruosidades que passamos a enxergar como "normal, parte da vida, vai fazer o quê?", se não vemos escapatória.
Fiz amigos. Tenho hobbies. Conversamos amenidades diante de cenários magníficos e adquirimos bens e produtos que não precisamos realmente só porque existe a possibilidade. Ainda lembro vagamente que há um mundo exterior agonizando, como uma ferida purulenta incurável; a ciência está aqui enterrada em alguma fresta empoeirada desta massa cinzenta trancafiada em meu crânio; soterrada no meio das tralhas de eventos e planos e expectativas eufóricas para o próximo ano. A próxima festa da Singularidade se aproxima. Dizem que vai ser belíssima. Já escolheu o seu vestido?
Acordo com sorrisos em Tibbutz.
É só para as noites que reservo as lágrimas.
O vazio insuportável.
Então, como há de acontecer, desperto às madrugadas e, muitas vezes, simplesmente caminho. Frequentemente, descalça. Em algumas destas noites, corro até mesmo. Meus pés me guiam a veredas antigas, trajetos familiares que permanecem comigo. Uma curva, uma subida, uma colina, uma gruta escondida, uma travessia, aquela árvore, o novo atalho, o riacho, o rochedo íngreme, uma encosta, a luz da lua e um grupo clandestino reunido.
A coragem adquirida.
As lições aprendidas.
A voz de um médico arrependido.
O doutor, na frente, nos relembra:
Existem dois tipos de pessoas. Dois tipos.
Que tipo de pessoas seremos?
Há momentos em que essa resposta nos custará. Um preço altíssimo.
Ao redor da fogueira, a mão de um estranho me estende uma garrafa com um aroma familiar. Enjoativamente doce. Dou uma longa golada e sinto a queimação que me deixa na garganta. Foram umas dez tentativas até meu corpo deixar de reagir com o impulso para vomitar, mas agora até que gosto.
A gente se acostuma com tudo nessa vida.
A se decepcionar com pessoas em que mais se confia. Ou até mesmo a se surpreender com as últimas pessoas que se espera. Porque há Imperdoáveis que se escondem por trás de toda fachada possível.
Aparentemente não sou a única cidadã a se esgueirar clandestinamente entre os rejeitados deste mundo. É o que constato ao reconhecer o brilho ruivo de um cabelo, em uma das nossas noites ao redor da fogueira.
Ela sorri ao me ver.
Nós não trocamos palavra alguma. Apenas um olhar que sela um pacto de confidência do segredo mútuo.
Esse único momento é suficiente para mudar totalmente a perspectiva que eu tinha sobre a promessa que eu fizera tempos atrás.
Ao nosso redor, a injustiça perdura. Pessoas são roubadas do que significa ser humano.
— De um lado, deixam de ser humanas quando se tornam cascas sem compaixão — Doutor Salz explica para o grupo, debruçado sobre seu pódio improvisado. — Mas, do outro, existem as que deixaram de ser consideradas assim e foram assassinadas por isso. E foi exatamente a humanidade que nos trouxe até aqui. — Neste instante, ele parece olhar diretamente para mim. — O melhor e o pior dela.
Sempre que me assusto com a monstruosidade dessa condição, lembro que uma vez enxerguei no rosto de um moço um monstro.
Que era, secretamente, um herói.
Então, nestas raras e deliciosas madrugadas que escapo, nós nos sentamos em círculo ao redor da fogueira e confabulamos. Às vezes, cantamos. Inventamos histórias de um mundo melhor, a interpretamos num palco e rimos sonolentos de nossos próprios erros e fracassos.
O garoto do sorriso torto se senta ao meu lado, sempre tão intenso e divertido, e me lembra, com seus olhares significativos, para quê ainda estou viva.
— Sander — pronuncio de forma inaudível quando seus olhos se encontram com os meus sob o brilho avermelhado das chamas. — Um dia irá me perdoar?
Sim, ainda há mágoa ali. Desconfiança. Mas, também esperança. Ou assim espero eu.
Ele, por vezes, sorri irônico ante o meu pedido. Mas às vezes se irrita de verdade.
— Impossível. A partir de hoje terá de ser minha escrava — declara nos dias de humor, ou seja, nos dias em que os carrascos se mantiveram à distância e o trabalho não foi tão árduo e não houve relatos de morte sem sentido e sentimos progresso de alguma forma e as milhares de estrelas lá no céu estão tão brilhantes e majestosas que quase conseguimos esquecer de quem nós somos.
— Pela milésima vez, eu já a perdoei — suspira, no entanto, frustrado em todos os outros dias que sobram. — Já a perdoei hoje. Já a perdoei amanhã. E continuo perdoando-a pelo resto das nossas vidas. Tão longas ou curtas estas possam ser.
E seu olhar se perde diante da fogueira que observa, mas não vê. Talvez esteja refletindo sobre seu passado difícil. Projetando o futuro incerto. Ou se ocupando com as promessas não-pronunciadas do que diabos esteja acontecendo entre nós.
— Sander. Um dia irá me perdoar? — repito, mordendo meu lábio inferior, e ele sabe imediatamente que é só por galhofa.
Seus dedos roçam nos meus. Acidentalmente, talvez. Uma próxima vez, não tão mais sutil. O tronco de árvore em que sentamos se torna mais vago em ambas as extremidades, a cada reunião. Doutor Salz tem coisas importantíssimas para falar e as está falando, sob o murmúrio de concordância dos marginais reunidos. Nós mudaremos o mundo. Amanhã. Ou depois. Eu prometo. Ele também.
Todos prometemos.
E nos erguemos, em aplausos e gritos de celebração, convencidos da importância da nossa missão.
Eu posso parecer como eles, soar como eles, mas nunca serei uma deles. Não em minha alma.
— Por que você insiste em pedir perdão? — Sander chega a perguntar, quando a frustração atinge seu limite. — Por que você... insiste?
— Porque sou exatamente como você — é a única resposta que posso dar.
— Maravilhosa? — Ele se permite gracejar. — Estonteante?
— Imperdoável — declaro com um floreio.
Ele ri e me puxa para si. Seus lábios roçam nos meus. Acidentalmente, talvez?
De qualquer forma, na manhã seguinte, sei que despertarei com um sorriso.
Nota da Camila ( Camila-Antunes ) :
Oi, pessoal!
Não poderia deixar essa história acabar sem deixar um recadinho aqui para vocês!
Obrigada por nos acompanharem até aqui.
Eu preciso dizer que sinto muito orgulho de participar desse projeto junto com minha autora favorita no mundo!
Faltou pouco, muito pouco para que estivéssemos lançando esse livro por uma editora ótima, na semana que vem, na Bienal do Rio.
Infelizmente, alguns já conhecem o final da história, e as coisas acabaram não dando certo.Vocês podem imaginar o motivo...
Mas o que queremos dizer é que essa história é muito especial para gente. E também é muito especial que vocês tenham chegado até aqui. Os que gostaram, os que não, o que concordaram com a Hadassa e os que a odiaram... os que passaram por uma experiência de transformação de opinião... Vocês estarem conosco nessa história, faz com que cada segundo de tempo que tenhamos empenhado nela tenha valido a pena.
Obrigada por tudo. Mesmo.
Mil beijos,
Camila, imperdoável no coração.
Nota da Noemi:
Pessoal, espero que vocês tenham gostado e que algumas coisas aqui os tenham levado a refletir. Adoro ouvir os pensamentos de vocês e quando quiserem conversar, eu e a Camila-Antunes estamos por aqui :)))
De qualquer forma, HUMANO acabou, mas existe algo ainda a ser contado.
Por isso, esperei até aqui para anunciar para vocês.... QUE RUFEM OS TAMBORES!!!
(Surpresinha num próximo capítulo a ser postado, se der tudo certo, ainda hoje.)
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