9
Sander Kravz me encara, do outro lado do poço, de baixo para cima, com linhas profundas gravadas na testa.
Não consigo discernir sua expressão.
Está sorrindo? Está entediado? É um desafio?
Uma ameaça?
Sander empurrou Tink?
Por que faria isso?
Tento coletar todos os pequenos encontros que tivemos, todas as suas frases e inclinações. O sorriso de zombaria que constantemente carrega como um troféu. Seu desapego com aparências e a opinião dos outros.
O que há com esse garoto? Ele não é só estranho. Ele é... sombrio.
Mas que tipo de monstro psicopata empurraria uma garotinha?
Por que Sander empurraria Tink?
Obcecado por mim?
Obcecado... pelo Raah?
Havia uma tensão palpável quando se cumprimentaram. Há um passado entre eles?
Tardiamente, desligam qualquer que seja o mecanismo que metamorfoseava o ambiente e tudo se transforma numa paisagem noturna comum de chão de terra batida pontuada por retalhos de gramado. É só nesse momento que Sander finalmente desvia o olhar do meu, coloca as mãos nos bolsos e se afasta, tranquilamente, os ombros relaxados, os passos molengas.
Contenho o instinto de segui-lo e confrontá-lo. Não apenas porque há pessoas aqui bem mais qualificadas para fazer isso do que eu, mas porque preciso primeiro perguntar para Tink o que aconteceu exatamente. E, dependendo de sua resposta, arrancar do Raah qualquer informação sobre os Kravz que estejam escondendo de mim.
E então... não sei o que vou fazer.
Dou uma volta e caminho às pressas para o Centro Hospitalar.
Mas, o Destino me ajude, se eu descobrir que Sander fez isso de propósito... Não sei.
Eu seria expulsa.
O que provavelmente significaria meu fim.
Não. Não creio que seria necessário chegar a esse ponto. Justiça seria feita, com minha ajuda ou sem. Afinal, Tibbutz jamais seria o lugar que é se não houvesse justiça.
* * *
As portas do Centro automaticamente deslizam com minha aproximação. Quando elas se fecham, os sons e aromas externos são completamente bloqueados. O ambiente azulado é de uma neutralidade esmagadora e insuportável. O corredor é longo e estreito e cada um dos meus passos ecoa à distância.
Só consigo seguir adiante, em vez de fugir e meter os pés descalços no gramado como gostaria, porque, logo de cara, me deparo pela primeira vez na vida, mesmo que de longe, com a mãe da Tink e do Raah. Ou, ao menos, só pode ser a mãe deles, porque, mesmo daqui, percebo que tem exatamente as mesmas bochechas e queixo da menina e os mesmos olhos e boca cerrada sisuda do rapaz. Está com os braços cruzados e conversa com uma mulher, ambas vestidas exatamente com as mesmas cores do resto do Centro. Aquele azul "não existo" que mais se assemelha ao cinza.
Raah sai por uma porta que eu não percebera antes, ao lado de um homem mais velho, também vestido de azul cinzento, e a primeira coisa que o rapaz faz é envolver a mãe em seus braços. Não quero me intrometer, não quero invadir a privacidade, mas por que é que esse momento me parece tão... triste? Tink está bem, não está? Ela estava acenando e sorrindo quando a levaram na maca.
Passo a passo, me aproximo e sinto um certo alívio ao constatar que não há lágrimas em seus olhos. Então com certeza a impressão de tristeza deve ser proveniente da tensão que todos estamos sentindo.
— A fratura foi muito pior do que pensávamos — o homem mais velho, que presumo ser o médico de Tinker, começa a dizer. — O osso estilhaçou de uma forma irreparável. Na melhor das hipóteses, iria mancar pelo resto da vida.
Ninguém reage. Nenhuma palavra é pronunciada. Nenhum suspiro. Nenhuma lágrima. Todos se mantêm enclausurados num silêncio chocado e fúnebre. Os lábios da mãe do Raah tremem, mas ela inspira fundo e aquiesce com a cabeça, apenas levemente.
— Não se preocupem — o homem prossegue. — Como já sabem, o procedimento é praticamente indolor.
Bem, pelo menos uma boa notícia.
Procuro me manter afastada para não invadir esse momento tão delicado familiar, mas sinto uma necessidade de conversar com o Raah. Por algum motivo, quer por ele ser meu treinador ou por ser um dos meus poucos amigos, acho que ele é o único que pode me consolar nesse instante. Só quero ouvir dele que está tudo bem e que, sim, se for o caso, o maldito do Sander irá pagar pelo que fez.
Observo-os durante um bom tempo enquanto conversam baixinho entre si, trocam cumprimentos e abraços, até, finalmente, darem sinais de despedida. O rapaz vem andando na minha direção, com passos arrastados.
— Está tudo bem? — pergunto, ousando um pequeno sorriso cansado e logo me arrependo. Não me parece apropriado para algo assim.
Quer dizer: isto é horrível!
Tink adora dançar e correr. Mancar pelo resto da vida vai ser bem triste. Por outro lado... não quero dizer isso em voz alta... mas ainda estou aliviada, porque ao menos é melhor do que o que eu achava que tinha acontecido ao vê-la estatelada no fundo do poço.
Raah dá de ombros e suspira.
— Você ouviu, não ouviu? Doutor Mraz disse que a fratura foi pior do que pensávamos.
— Mas... fora isso, ela está bem, não está? — pergunto, tentando soar um pouco encorajadora.
Raah me encara com um olhar que me deixa confusa, um misto de choque e revolta.
— Eu não sei se você realmente é assim tão insensível e está se fazendo de boba ou qual é a outra opção — ele sibila, o rosto vermelho.
Retorno o olhar, sem saber o que dizer. De que forma fui insensível? Por que está falando assim comigo? O que fiz dessa vez?
— A outra opção — respondo, enrijecendo o queixo para que ele não trema e acabe por demonstrar que o tom me afetou.
Raah continua me encarando, seus olhos perfurando meu rosto com a intensidade de sua ira.
— Você me ouviu — ele sussurra e desvia o olhar, talvez um pouco mais convencido da minha sinceridade. — Ela provavelmente mancaria pelo resto da vida...
O Futuro do Pretérito na frase finalmente me atinge. E, com ele, o sentimento horrível de que há algo terrivelmente errado. Não quero interpretar do jeito que minha mente está sugerindo, porque seria loucura. Não seria possível. Seria absurdo. Pavoroso.
— Ela mancaria? O que isso quer dizer? Vocês vão consertá-la? — tento contrapor com uma alternativa mais positiva.
Por que sinto que é demais sequer esperar por isso? A proposta otimista me parece infinitamente distante do tom dessa conversa. Nós estamos em Tibbutz, o lugar onde tudo é possível! O lugar onde erradicaram quase todos os tipos de doença e a fome e o sofrimento e tudo mais de ruim que existe nesse mundo. Por que uma perna quebrada causaria tanta comoção?
Raah abre a boca, mas hesita. Seu olhar se torna lentamente um pouco mais cauteloso, amigável, mas profundamente, desesperadamente, infinitamente triste.
— Eles vão cancelá-la, Hadassa.
Ao mesmo tempo que sua voz falha e sai meio aguda no final da frase, ele dá de ombros, o que me leva a entender que o que quer que "cancelar alguém" implique, não pode ser algo assim tão significativo. Porque o verbo e a emoção em sua voz não se encaixam. Não faz nenhum sentido.
— Cancelar? Como se cancela uma pessoa? — questiono, tentando calcular outros significados possíveis para essa expressão.
Não soa como algo bom. Mas o que poderia ser? Quer dizer, não pode ser o que soa, certo?
Raah suspira, mas não diz nada, apenas dá de ombros novamente. E eu me sinto a mais estúpida das criaturas. Por que não estou conseguindo entender isso? O que é óbvio aqui que não estou captando?
— Raah? — Minha voz sai mais trêmula e ofegante do que eu esperava. Meu estômago está se revolvendo dentro de mim, com o instinto crescente de que nada disso parece normal. Algo está muito errado. — Tink está bem, certo? Você a viu. Ela está bem.
Quando Raah está tenso ou irritado ele costuma levantar a mandíbula inferior de forma que seu queixo se torna mais pronunciado. Neste momento, ele o faz de uma maneira que o faz se assemelhar a uma criança birrenta fazendo bico. A pele ao redor de suas narinas e pálpebras treme levemente e é aí que entendo que está se segurando para não chorar. Ele leva as mãos aos olhos e os cobre, inspirando fundo para controlar os soluços que começam a partir de dentro de si.
— Você quer dizer que vocês vão matá-la — concluo em voz alta e eu mesma não consigo acreditar nessa frase. — Cancelar quer dizer matar. Vocês vão matara Tinker.
Raah, com olhos vermelhos e úmidos, imediatamente agarra meu braço e faz um som chiado para que eu fique quieta. Ele olha por cima do ombro na direção das pessoas que antes lhe fizeram companhia e me puxa com certa violência para mais longe.
Seu rosto está absolutamente lívido.
— Você faria bem de ao menos ter um pouco de consideração pelos sentimentos dos outros — ele sussurra num tom grave.
— Sentimen...— começo, mas desisto no meio da palavra, enquanto ele continua me puxando, porque isso não faz sentido! — Você está dizendo que vão matar a Tinker!
— Sim, eu sei! — ele grita num sussurro e solta meu braço, quando já estamos relativamente distantes dos outros.
Deixo as lágrimas caírem nesse ponto, porque já não me importo mais de demonstrar qualquer coisa. O mundo está surreal demais para me importar.
— Raah, pensa muito bem no que você está dizendo — imploro. — Vocês vão matar a Tink só porque ela...
Ele cruza os braços e balança a cabeça negativamente múltiplas vezes, como se isso fosse apagar a realidade.
— Estou tentando imaginar como isso pode ser difícil para você entender, Hadassa, dada a sua cultura e tudo mais, mas...
— Isso não tem nada a ver com cultura, Raah! Pelo amor do Destino, por favor, escuta o que você está dizendo.
— Um dos ideais mais elevados de Tibbutz é o direito inalienável de ser feliz. — Suas palavras fluem de forma tão enfática que tenho a impressão que é um discurso ensaiado. — Dentro dessa perspectiva, seria extremamente egoísta permitir que a criança se desenvolva sabendo que é um peso para a sociedade, que nunca poderá atingir todo seu potencial. E para quê? Seria justo submeter uma mãe ao sofrimento de ter que cuidar toda a vida de uma filha defeituosa? Seria justo roubar da sociedade seu tempo e recursos para sustentar uma criatura indesejada?
— Indesej...— começo e paro no meio novamente, desacreditando do que ouço. — Indesejada?! — grito, inconformada.
Raah exala audivelmente em frustração.
— Minha mãe é uma vítima, Hadassa. Você acha que ela merece sofrer toda a vida por causa disso? É esse o seu senso torto de justiça?
Ela fala com tanta segurança e num tom tão lógico que me parece de alguma forma que a louca sou eu. Mas, por mais que eu tente, ainda não faz sentido para mim. Agarro nos braços cruzados dele e tento raciocinar desesperada.
— O direito inalienável de ser feliz, você disse. Onde está o direito da Tinker?
— Você realmente não entende? — Raah enfia as mãos entre os cabelos, os olhos ainda mais vermelhos. Todo seu rosto treme, desde o queixo às narinas, as pálpebras e as têmporas e é como se eu fosse capaz de ver seu coração se partindo bem diante de mim. — Você não entende ou...
E, de repente, a emoção some de seu rosto e sua expressão se torna completamente impenetrável, como uma estátua.
— Raah...— tento falar baixinho para que meu temperamento não entre no caminho.
Só sei que eu preciso fazê-lo enxergar. É da vida da Tinker que estamos falando! Eu me volto para ele e me foco bem naqueles olhos azuis que sempre admirei tanto. Ergo minhas mãos e encosto levemente em seu queixo e então em suas bochechas.
— Você não pode deixar isso acontecer. Isso não é normal! Você não sente que isso é errado?
— Não é minha prerrogativa. Nem sua.
— É da sua mãe? — Tento continuar, sem me deixar abalar pela frieza do seu tom. — Talvez se a gente falasse com ela, juntos, a respeito disso... — digo, calmamente, tentando não afugentá-lo, embora meu desejo seja de sacudi-lo e gritar e arrancar agora mesmo Tinker do local em que está.
— Se eu fosse você, eu ficaria quieta — ele diz num tom de ameaça. — É melhor você sair daqui se não quiser ser expulsa de uma vez de Tibbutz. A decisão está tomada.
Ainda não consigo acreditar que Raah está dizendo estas coisas da forma que está. Olho por cima do ombro dele e vejo que agora sua mãe está sozinha, nos encarando ao longe, de braços cruzados.
É aí que perco o controle de uma vez.
— Por favor, não matem a Tink! — grito o mais alto que posso, com a voz esganiçada. — Não—não— tento continuar, mas Raah imediatamente tapa minha boca com sua mão e me apanha pela cintura como uma boneca e me arrasta, enquanto esperneio e murmuro em sua palma, até a saída. As portas se abrem e ele me deposita brutalmente de joelhos no gramado.
— Toda pretensão de inocência sua acabou com esse seu apelo fingido — ele grita, enfiando um indicador bem no meu rosto. — Você obviamente veio até aqui com um plano secreto e você não vai usar minha família para isso — sibila entre os dentes.
Sinto vontade de vomitar, de sumir, de lutar, de gritar, tudo ao mesmo tempo. Não é possível que isso esteja acontecendo! Mas ao invés disso fico em silêncio, tremendo, as palavras aprisionadas na minha garganta. Nunca vi seu rosto tão amedrontador como nesse instante.
Ele desaparece quando as portas do hospital se fecham e é só aí que o berro agonizante e gutural escapa da minha garganta.
— Que plano? — grito, arrancando pedaços da grama abaixo de mim com as unhas, me sentindo totalmente incapaz de fazer qualquer coisa para impedir o que está para acontecer. — Que plano?! — Soluço um choro sem lágrimas e sem forças.
Avisto umas pedrinhas e num impulso irracional, engatinho até elas e as lanço em direção à porta. São tão pequenas e leves que perdem força na metade do trajeto e caem ao chão sem efeito. Deixo meu corpo despencar, apoiando-me nos cotovelos, me recusando a acreditar que isso está acontecendo
— Já tentei isso também. Mas não funciona — ouço uma voz masculina por trás de mim.
Rapidamente eu me volto, ainda de joelhos, os punhos erguidos, pronta para me defender ou atacar quem quer que seja. Minha visão está embaçada de tantas lágrimas, mas lentamente o rosto relaxado de Sander Kravz emerge das sombras. Ele tem as mãos metidas nos bolsos e um meio-sorriso irônico no rosto, os olhos semi-cerrados, uma sobrancelha erguida em superioridade.
— Ao que tudo indica, a família Salz é extremamente consistente em suas convicções — ele diz, abrindo um sorriso fechado e satisfeito, os cantos da boca curvados para baixo. — Ao menos não podemos chamá-los de hipócritas.
Eu não consigo decidir se quero pular em cima dele e matá-lo pelo que fez ou tentar arrancar respostas ou apenas continuar a chorar. Então, em vez disso, digo apenas, com uma voz rouca e derrotada:
— Quê?
— Parece que a pequena Tinker Salz não é mais um membro desejado da nossa sociedade — ele diz, dando de ombros e dando mais alguns passinhos gingados na minha direção, como se dançasse. — Pelo jeito, já descobriu o que fazem com membros indesejados da nossa sociedade?
Não consigo pronunciar palavra alguma. Não quero entrar em qualquer que seja o jogo macabro que esteja jogando e não tenho energia emocional para isso.
— E agora, Hadassa?
Sander se agacha bem diante de mim e seu sorriso lentamente se afrouxa, conforme ele me observa, até se tornar num só risco reto e apertado. Ele inclina o rosto, como se me analisasse clinicamente e tentasse chegar a alguma conclusão.
— Agora o quê? — pergunto, incerta se quero saber a resposta e enxugo a corrente de lágrimas que desce pelas minhas bochechas.
— E, agora, o que eu e você vamos fazer a respeito disso?
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