6


Acordar antes do nascer do sol se tornou um hábito para mim também aqui em Tibbutz. Rapidamente, me troco e saio de casa, furtivamente, na escuridão. Assim que deposito os pés no deque úmido de madeira, tapo a boca com ambas as mãos para engolir um grito.

Um vulto alto e musculoso escurece a vista do lago.

Mas, não é o mesmo da gruta. Disso tenho quase imediata certeza.

Quando me dou conta de quem é, sinto o impulso para praguejar, mas me policio bem a tempo. Se quero ser uma tibbutzina, devo finalmente aprender a me comportar como uma.

Sussurro, tentando manter minhas emoções sob controle:

— O que está fazendo aqui a essa hora?

Raah olha para mim, por cima do ombro, com tranquilidade, e mantém os braços cruzados ao peito, quando retorna o olhar para um ponto fixo distante.

— Às vezes venho aqui para observar os preparativos da Singularidade.

Eu me aproximo dele na ponta dos pés e inspiro fundo, tentando convencer meu cérebro da normalidade de encontrar Raah fora do horário de treino, enquanto estamos vestidos com nossos trajes de descanso à luz da lua cheia. De onde estou, sinto o calor que exala de sua pele e contenho o instinto de me aproximar ainda mais, ao ponto de tocá-lo.  

— Você está numa localização privilegiada — ele prossegue, indicando com um aceno do rosto toda o panorama ao nosso redor.  — Daqui dá para ver o vale inteiro.

— Você ama essa festa tanto quanto a Tinker?

Ele dá de ombros tão de leve e tão rapidamente que não sei dizer se foi intencional.

— É uma tradição importante —  responde, após uma pausa.

— Por que é importante?

— É o momento de relembrarmos que todos nós fomos criados únicos, com atributos exclusivos, e, portanto, cada um de nós tem uma função e um propósito intransferíveis a cumprir — recita como a um texto decorado. — Cada um carrega uma responsabilidade.

— Mas... isso é lindo.

Raah assente com a cabeça, sem expressar opinião.

— Tinker estava tão empolgada — sorrio com a lembrança. — No jantar, ela não parava de falar que era a noite mais favorita das favoritas dela — tento imitar, contendo o riso, a voz aguda e o sotaque da garotinha saltitante.

— Sim, as crianças adoram.

Seu tom não soa convidativo para que eu continue a conversa. Então, volto meu rosto para a direção que Raah se concentra e, ao longe, do outro lado do lago, observo pontos de luz que se acendem e se apagam lentamente, num ritmo constante.

— É aquilo ali? — Ouso interromper o curto período de silêncio.

Novamente, assente com a cabeça. Resolvo tentar não incomodar mais. Imito sua postura, de braços cruzados, e observo as centenas de pontos de luz piscando, como o reflexo intermitente de ouro num horizonte escuro, até que, em poucos minutos, o céu vai se tornando opaco e as cores do amanhecer lentamente se esparramam e dispersam pela tela magnífica da paisagem de Tibbutz.

— Não é possível que algum dia essa vista deixe de tirar meu fôlego — sussurro, sentindo a umidade do deslumbre em meus olhos. Em Tibbutz há cores que eu sequer sabia que existiam. — É tão lindo que chega a ser perturbador. Não parece real.

— Seu sentimento é compreensível, considerando todas as coisas — Raah diz, finalmente descruzando os braços e olhando com o canto dos olhos para mim.

Percebo na claridade vespertina o olhar entediado em seu rosto e imediatamente me arrependo por minha confissão. Porque se eu me esforçasse, provavelmente não conseguiria soar mais como uma imigrante do que agora. Com "todas as coisas" ele quer dizer, é claro, considerando de onde eu venho, pelo que passei. Mas, não quero que me veja assim: como estrangeira, como segunda categoria, como... danificada.

Quando vou passar a me portar como uma deles?

— Onde você está hoje? — ele pergunta casualmente e tento não interpretar nada demais no interesse repentino. Certamente é apenas algo relacionado a ser um bom treinador.

— De novo nos cítricos — respondo imediatamente, tentando demonstrar minha proatividade em decorar a agenda. — Mas amanhã no lago. — Sorrio, ciente de que ele estará lá também.

Voltando-se para mim, Raah me dá um sorriso que me parece um tanto irônico e deposita as mãos pesadas e quentes nos meus ombros, aplicando pressão com os polegares bem de leve nos ossos da minha clavícula.

— Muita calma. É sua primeira Singularidade. Vamos ver como você vai estar pela manhã — diz num tom quase condescendente, enquanto afunila os olhos. — E aí, conversaremos.

E sai, dando dois tapinhas nas laterais dos meus ombros como despedida.

Sério, essa festa está começado a me assustar.

Passamos a manhã toda na plantação, colhendo laranjas até a hora do almoço. Tinker não dá as caras em nenhum momento, então não tenho a oportunidade de retomar a conversa sobre seu pai. Provavelmente, está ocupada aprontando o que quer que seja para que eu leve na Festa da Singularidade.

Depois da refeição, somos todos liberados para os preparativos finais.

Quando chego em casa, a garota está ali, bem na entrada, ao lado de uma caixa praticamente com a mesma altura que a minha, o dobro da dela.

— O que é isso? — pergunto, dando voltas ao redor da caixa.

— Oras, o que é isso! — Tinker diz, me cutucando. —  É seu traje. Eu falei que ia preparar. E ficou tão demais! — Ela dá um gritinho de empolgação, enquanto saltita de um pé para o outro.

Antes mesmo de vê-lo, já estou horrorizada. Um traje que necessita de uma caixa desse tamanho?

Isso só pode ser uma piada.

* * *

— Eu pareço um pavão — reclamo para a loira refletida no espelho, bem atrás de mim, vestida exatamente como eu, só que numa versão miniatura.

— Não, não parece — ela ralha, batendo um pé no chão.

— Tink! Essas são penas de pavão — começo a rir e me contorço num angulo bizarro para tocar nas penas. — E estão saindo do meu traseiro. Como, adivinha, um pavão.

— Não são de um pavão de verdade, é claro. — Ela revira os olhos. — E você não parece um pavão, você parece uma pessoa vestida de pavão.

Ela sorri satisfeita.

Não tenho forças para discutir, então me deixo arrastar para a célebre festa da Singularidade, ciente de que vou passar pelo maior vexame da vida. E olha que já passei por muitos. Quanta humilhação!

Isso que dá permitir que uma criança de oito anos escolha seu vestuário.

Bem, não dá para dizer que não é singular.

— Você está incrível, Hadassa. Acredite em mim. Eu entendo dessas coisas e fiz de tudo pra conseguir isso pra você de última hora — diz, ajustando um chapéu de penas multicoloridas em sua cabeça, enquanto se observa no meu espelho. — Não sei como é no lugar de onde você vem, mas aqui em Tibbutz, o normal é você confiar em mim e dizer obrigada.

Ai. Doeu. Quem prendeu uma adulta no corpo dessa criança?

— Você tem razão, Tink — respondo, com pesar. A imagem no espelho continua ridícula para mim, mas preciso olhar pelo ponto de vista dela. — Sinto muito. Em qualquer lugar do mundo, eu deveria ser mais grata. Obrigada.

— De nada! — Ela abre um grande sorriso e dá uma voltinha, saltitando. Em seguida, segura na minha mão esquerda e me lança grandes olhos de cachorrinho molhado. — Dassinha, me promete uma coisa?

Penso que não posso cair mais fundo do que ir para a festa com essa roupa, então assinto com a cabeça.

— O que você quiser — digo, com divertimento.

— Por favor, não sai do meu lado? — Seus olhinhos implorantes são extremamente eficientes. — Todas as vezes, acabo passando tempo só com as crianças nessas festas. — Continua, em tom de nojo.

Não resisto rir.

— E qual é o problema com isso?

Mais uma vez ela me dá aquele olhar, como se a resposta para a minha pergunta fosse absurdamente óbvia.

— Oi? Crianças são chatas!

— Faz sentido — respondo, ironicamente, e ela sorri.

Nossa, estou soando até como uma tibbutzina.

— Menos eu, é claro.

— Menos você, é claro — confirmo, inclinando-me em reverência a ela.

Não tenho problema nenhum em prometer a ela o que pediu. Estou até aliviada de que terei a garantia da companhia de Tinker por toda a noite. Menos uma preocupação no meu prato.

— Além do que, nunca posso ficar até tarde, porque não há nenhum adulto que se responsabilize por mim — ela continua, após alguns instantes. — Mas se você me deixar ficar com você, eu poderia ficar até a Hora-Luz!

— A Hora-Luz?

— É o meu sonho! O momento em que os nomes dos que alcançaram o Pleno Desenvolvimento são colocados em pequenos balões que são acesos e saem voando até o céu. Dizem que é tão maravilhoso, Hadassa. Você não imagina. Eu faria qualquer coisa para ver!

A expressão no rosto de Tinker me traz lembranças dolorosas. Novamente, a inocência e a esperança frágil que parecem clamar por serem quebradas. Deve haver uma forma de proteger isso. Talvez seja essa a minha singularidade. Meu propósito, minha missão.

Antes de sairmos, lembro do que eu planejara toda a noite conversar com Tinker. Mas, para isso, preciso introduzir o assunto de alguma forma.

— Tink... — Começo, caminhando até uma caixinha rústica que eu já deixara em cima da mesa. Rústica como tudo que vem de Arabah parece ser aqui em Tibbutz.

— Pois não? — ela cantarola saltitando até mim.

Abro a caixinha e retiro de lá um dos meus poucos tesouros do passado.

— Quero que você use isso essa noite.

E abro a palma revelando uma fita trançada de couro com uma pequena estrela de chumbo gravada com a letra H.

Ela arregala os olhos e parece fascinada com aquele simples artigo. É nada comparado com o luxo e o brilho de tudo que há em Tibbutz. Mas, mesmo assim, está encantada.

— Que diferente — ela sussurra.

— Gosta? — questiono, no mesmo tom, tentando não quebrar a mágica expressa em seu olhar.

Ela balança a cabeça afirmativamente, sem retirar os olhos do objeto.

— Aqui só os que alcançaram o Pleno Desenvolvimento podem usar braceletes — diz.

— Você quer dizer adultos?

Novamente, ela apenas balança a cabeça.

— E aí? O que você pode fazer com ele?

Eu a encaro confusa.

— Como assim?

— Dá para destravar portas?

Começo a rir, entendendo a associação que a garota fez do meu bracelete com os aparatos de alta tecnologia que todos parecem ter em Tibbutz. Não tem comparação.

— Ahm... — balbucio numa hesitação fingida. — Não.

— Dá para escanear o perímetro? Fazer reconhecimento facial? Casar alguém?

— O quê? — Gargalho mais ainda. Aqueles círculos fazem esse tipo de coisa? — Casar alguém? Dá para casar alguém com um bracelete?

Ela arregala os olhos.

— Como vocês carregam os votos na Nimbus Intergalática?

— Carregar os votos? — Sacudo a cabeça, tentando abstrair a confusão. — Não, Tink. Olha. — Puxo sua mão para cima, fazendo balançar o metal inerte e inútil. — Não é um bracelete como você conhece. É só... — Suspiro. — Deixa para lá. Não é nada.

Ela faz um beiço e franze as sobrancelhas, como se estivesse muito concentrada, e encara o 'H' talhado novamente.

— Nunca vi algo assim. É lindo — ela sussurra com reverência. — O que é, então?

— É simplesmente algo que meu pai fez quando eu nasci — falo baixinho, esticando a correia de forma a passá-la ao redor do pulso da garotinha. Sua pele é como cetim. — Achei que você ia gostar. Pais às vezes fazem coisas que não gostamos, mas isso não apaga as coisas boas que fizeram, não é?

Finalmente chego ao ponto que queria, mas Tinker parece não me ouvir. Em silêncio, ela chacoalha o braço algumas vezes, fazendo dançar a estrelinha no ar e depois delineia seu traçado com a pontinha de um dedo.

— Quer dizer... — insisto um pouco mais. — O que um pai poderia fazer ao ponto de que seus filhos não queiram nem sequer pensar mais nele?

De repente, ela arregala os olhos e ofega assustada.

— Estamos atrasadas! — grita. — Oh, Dassa, não podemos perder o início! 

E já sai correndo porta afora, antes que eu possa pronunciar qualquer outra coisa.

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