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Como quase todos os dias, logo após a ceia vespertina, enquanto a paisagem está começando a envergar sob o peso dos tons de dourado, rosa e laranja, me escondo atrás de um conjunto de oliveiras carregadas e retiro meus sapatos.
Depois, nas pontas dos pés, me esgueiro pelo deque até a porta lateral do edifício retangular, por onde espero passar discretamente. Secretamente.
Quero ser grata à família que voluntariamente me acolheu em sua casa até que o período de provas se encerre, mas algo nesses irmãos me perturba. Apenas prefiro me manter à distância.
Durante toda a noite, me mantenho trancada no quarto improvisado, um cubículo retangular, com espaço para pouco mais do que minha cama e a haste onde penduro meus trajes. Antes da minha chegada era uma espécie de depósito. Verticalmente, é gigantesco, como um túnel para o céu. O teto deve estar a uns doze metros de altura. Isso me faz sentir como se o mundo ao meu redor pudesse desabar a qualquer momento.
Mais bizarro do que isso é apenas dormir todas as noites num mesmo lugar. Mas acho que posso me acostumar, se for necessário. Esses três meses não foram ainda o suficiente para isso.
Sento na cama e tento repassar mentalmente tudo que aprendi e treinei no dia. É uma técnica que meu pai usava com seus alunos. Ele dizia que todo aprendizado é tanto físico quanto mental. E minhas maiores barreiras não estão nos meus membros e, sim, na minha cabeça. Em minha imaginação, meu salto não me faz rolar montanha abaixo, caindo aos pés de Raah de um jeito tão humilhante e, sim, recupero meu equilíbrio e praticamente voo o resto do trajeto, na frequência e na velocidade correta. Depois de algumas horas, eu me preparo para dormir e, devidamente aninhada, repito a cena centenas e centenas de vezes até que se torne parte de mim, até que meus músculos se contraiam e distendam no ritmo adequado sem esforço consciente, até que o trajeto se projete em meus olhos internos como um filme e eu escorregue para a inconsciência ofegante e pronta para a próxima tentativa.
Tremendo, ao despertar, a primeira coisa que faço é procurar discernir na profundidade da escuridão o teto acima de mim. Não lembro mais imediatamente de onde estou. Então, minha pele sente o roçar suave do lençol ao mesmo tempo que detecto o silêncio ao meu redor e meu coração retoma aos poucos seu ritmo.
Minha garganta está tão seca que me pergunto se gritei em meu sono e quão alto o teria feito. A última coisa que quero é perturbar a família. Eles podem ser estranhos, mesmo para padrões tibbutzinos, mas não posso me dar ao luxo de cometer erros aqui.
Estendo a mão para o meu lado esquerdo onde sei que encontrarei um interruptor circular. Deslizo o indicador por ele e uma luz progressivamente se acende como o nascer de um sol.
Eu me sento na cama e coloco os pés no tapete felpudo azulado. É tudo monocromático do lado de dentro das casas. É quase como se os tibbutzinos estivessem mentalmente sobrecarregados com as variedades e intensidades de cores e perfumes da natureza lá fora e tentassem compensar com uma total neutralidade dos ambientes artificiais internos. Aspiro fundo e, por mais que me esforce, o único aroma que detecto é o que só poderia definir como um cheiro de "nada". Mas esse nada é proposital, tenho certeza. Nem nada tem tão cheiro de nada quanto isso.
Abro a porta do meu quarto e me deparo com a espaçosa sala delineada pelos tons azulados da iluminação noturna. Então, desço dois degraus e me encaminho de pés descalços até a ampla porta de vidro, de onde vem o brilho da lua cheia refletido no lago lá fora. A porta desliza ante minha aproximação e o ar morno carregado de perfumes da natureza me recebe.
Eu costumava correr antes do nascer do sol em Arabah, mas de um jeito diferente daqui. Lá eu podia desfrutar do prazer incômodo da textura da grama úmida nas solas dos pés descalços, os desníveis e pedregulhos. É a forma que sempre soube movimentar-me melhor, embora todos aqui tentem me convencer de seus inconvenientes e riscos. Correr protegida por sapatos pode até ser mais seguro, mas qual é a graça?
Pela altura da lua, calculo que ainda faltem cerca de duas horas até o nascer do sol. De repente, me vem a ideia. Não sei se seria a atitude mais sábia, levando em consideração que tibbutzinos realmente valorizam o tempo de descanso e todos estão constantemente me alertando da necessidade de uma boa noite de sono para um desempenho melhor a longo prazo et cetera. De qualquer forma, quebrar, pela primeira vez em semanas de disciplina, uma única regrinha, por mínima e insignificante que seja, me parece, por qualquer motivo, empolgante.
De pés descalços e roupa de dormir, oculta pela penumbra, simplesmente corro.
Custa cerca de meia hora até que eu chegue do outro lado do lago e, de lá, me encaminhe diretamente para as grutas ao leste da cidade. Eu as descobri há pouco mais de uma semana e estava ansiosa por uma oportunidade para explorá-las. Hoje a lua está cheia, o que me provê um pouco mais de luz para a jornada. Nesse trajeto, há um aclive considerável e a floresta é mais densa, mas escalo com facilidade, tomando como apoio os rugosos troncos de pinheiros jovens. Aqui o piso é acidentado, áspero e repleto de pontas de folhas e galhos, mas o esforço da velocidade faz com que eu ignore este inconveniente temporário.
Meus músculos queimam, meus pés estão sangrando e estou ensopada de suor quando finalmente chego à entrada das grutas. Ela é extremamente estreita e baixa e fica por trás de enormes arbustos de amoras pretas. Foi um acaso muito feliz que me levou a encontrá-las.
Aperto meu tronco contra as paredes da caverna e, com um esforço, passo o quadril e tombo no piso rochoso. A primeira coisa que percebo é o som torrencial e depois as milhares de gotículas de água que se espalham por minha pele e cabelo. Não preciso de muito tempo para acostumar a visão, pois há uma fresta no topo que deixa escapar um pouco da luz da lua. Então vejo a cachoeira. Seu volume de água não é muito abundante, mas calculo que tenha uma altura de uns quinze metros. Ao redor da lagoa subterrânea, na qual desagua, repousam piscinas naturais isoladas, cercadas de um fino vapor. Em Arabah há piscinas térmicas assim, mas lá, à primeira impressão, elas exalam um forte cheiro de ovo podre e são quentes demais para um banho.
Com cuidado, engatinho até a piscina mais próxima e deposito um dedo a fim de verificar a temperatura. É extremamente agradável. Então, sem pensar duas vezes, me coloco de pé e arranco o traje suado do meu corpo, deixando apenas as finas faixas de material sintético que cobrem minhas partes íntimas.
E salto.
Sou imediatamente envolvida pelo mais puro azul ciano, tão vívido e transparente que parece que estou em outro planeta. Olho ao meu redor e vejo o brilho da lua acima. Abaixo, uma profundidade insondável. A água se apega ao meu corpo de uma forma oleosa, mas relaxante. Subo à superfície para tomar fôlego, antes de mergulhar novamente e nadar por toda a circunferência da piscina. O cansaço da corrida se esvai e, em poucos minutos, quase como mágica, estou novamente energizada. É incrível. Tenho a sensação de que poderia viver nessa gigantesca banheira pelo resto da vida. Claro, que é só sensação. Eu posso até estar me aprimorando bastante em Tibbutz, mas não ao ponto de desenvolver guelras.
Quando dou um último mergulho e tento mais uma vez avaliar as profundezas, o tom do ciano de repente escurece, como se algo tivesse acobertado o brilho da lua. Instintivamente me volto para o alto e vejo os contornos nítidos de um vulto negro que me observa por trás das ondulações da superfície.
O susto faz com que eu deixe escapar um tanto do oxigênio armazenado nos pulmões e, num reflexo de recuperação, meu corpo aspira. Imediatamente dou um impulso para cima. Retorno à tona, sorvendo desesperadamente o ar e tossindo a água ácida que engoli, ao mesmo tempo que olho ao meu redor buscando o espia.
Mas não há ninguém ali.
Dou a volta completa, para a direita, depois para a esquerda e não encontro sinal de uma alma viva. Apenas meu traje largado na beira da lagoa.
Meto o rosto sob a superfície, mais uma vez, para ajeitar meu cabelo desgrenhado e, ao subir de volta, cuspo água, da porção que abocanhei, como o jato de uma pequena cachoeira.
Quando escalo a parede rochosa para sair, estou tremendo de frio, embora não esteja tecnicamente frio. O contraste com a temperatura elevada da água que me causa essa sensação.
Ou o medo. Mas não posso admitir isso, nem para mim mesma.
Havia alguém ali.
Não sei qual é o material que eles utilizam para essas vestimentas, mas minhas faixas de proteção já estão secas logo que saio da água. Uso meu traje para secar apressadamente o resto do corpo e o visto a seguir, constantemente dando uma olhada ao meu redor a fim de detectar algum movimento.
Tibbutz ou não, com certeza não deve ser uma boa ideia sair sozinha de madrugada para um lugar tão isolado. Mas quem eu deveria chamar? Um dos irmãos Kravz? Até mesmo para eles, acho que isso seria ir um pouco longe demais.
O sol logo irá nascer, há um longo dia pela frente.
E estou ansiosa para cair fora daqui.
Quando espremo meu caminho para fora da gruta, o sol já está nascendo. Recolho algumas amoras e vou degustando-as no trajeto para a plantação. Este é meu café da manhã, já que perdi o toque matutino.
Meu estômago ronca ao lembrar dos pães quentinhos cobertos de grãos e sementes, úmidos por dentro, crocantes por fora; a manteiga com sal marinho deslizando por cima das espigas de milho fumegantes; as cores e os aromas das frutas suculentas cortadas e sempre surpreendentemente doces. Para coroar tudo isso, uma bebida de aroma agradável e energizante, extraída a partir de sementes torradas e moídas e que, como tudo nesse lugar, tem um sabor intenso e incrível.
Bem, essas amoras tampouco são desagradáveis.
Antes de correr para o meu destino, entro escondida na casa e troco meus trajes de dormir por uma roupa esportiva. Calço os sapatos que deixei escondidos por trás de uma árvore a alguns metros de casa e saio.
Ao alcançar a plantação, o sol já surgiu completamente e percebo, mesmo de longe, que os outros trabalhadores estão se ajuntando em grupos na planície para as instruções diárias. É época de laranjas, o que significa que o treino terá que ficar para o fim da tarde.
* * *
Tinker é a primeira a me ver e vem saltitando com uma trouxa de pano nas mãos. Ao se aproximar um pouco mais, ela começa a andar morosamente, com passos arrastados, como se tivesse acabado de lembrar que não deveria estar contente.
— O que tem aí hoje? — pergunto.
Às vezes ela me assusta com a semelhança com o irmão, especialmente quando está séria como agora.
— O equipamento, luvas e trajes de trabalho do seu tamanho e do meu, mas mamãe falou que eu não devo ainda servir a comunidade dessa forma — ela murmura, fazendo um beiço magoado.
— Por que não? — Ergo uma sobrancelha e retiro o fardo das mãos dela.
— Porque eu sou criança — ela responde, como se fosse óbvio.
— E o que isso tem a ver com alguma coisa? — questiono, enquanto visto o macacão de trabalho por cima da roupa de esporte.
Tinker primeiro me encara de olhos arregalados e depois começa a rir.
— Eu não sei — diz num tom agudo de surpresa em meio às risadas.
Dou de ombros e, depois de colocar as espessas luvas de plástico e passar a trouxa por cima dos ombros formando uma sacola para depósito, Tinker e eu caminhamos em direção às árvores.
Tento não caminhar depressa demais para ela conseguir me acompanhar. Conforme nos aproximamos, sou sobrepujada pelo perfume fresco de laranjas maduras. Céus, é maravilhoso demais. Quero abraçar essas laranjeiras. Mas acho que isso iria denunciar ainda mais que não sou realmente daqui e o que mais quero é tentar começar a agir como uma legítima tibbutzina.
— Então, como faço? — pergunto, puxando as luvas para cima a fim de ajustá-las mais firmemente aos meus dedos.
— Ué. — Tinker franze as sobrancelhas. — Você pega as laranjas, puxa e coloca na sacola.
Tento não rir com a confusão na expressão da menininha e falo bem séria:
— Nossa, não sei como é isso. Mostra para mim, vai.
Tinker arregala os olhos e, em seguida, olha ao redor em busca de testemunhas.
— De verdade? — ela pergunta com um olhar ao mesmo tempo culpado e desejoso.
— Por favor — imploro exageradamente. — Como vou colher laranjas se ninguém me ensinar?
Tinker olha ao redor mais uma vez e, sem hesitar, envolve uma laranja com as mãos e gira o pulso para torcê-la, até que a fruta escapa sem dificuldades do ramo. A garotinha a lança dentro da sacola que carrego à tiracolo. Sem incentivo, ela apanha mais outra e mais outra e mais outra, com uma velocidade incrível.
Rio com sua empolgação e me sinto incentivada a fazer disso um jogo de quem colhe mais rápido. Acompanho o movimento, agarrando os frutos maduros e imediatamente lançando-os à sacola, um após o outro, com ambas as mãos, o mais depressa que consigo. Quando vejo que ela está ficando cansada, pergunto:
— E aí? Acha que aprendi direitinho?
Ela balança a cabeça, ofegante, e coloca as mãos na cintura enquanto descansa.
— Aprendeu muito bem — diz, depois de uns instantes. — Está fazendo direitinho.
A partir daí, começo a fazer o trabalho com mais calma e tranquilidade, como as coisas geralmente são feitas por aqui entre os adultos, enquanto Tinker me observa e aguarda. Com o canto dos olhos, vejo que, de vez em quando, ela puxa laranjas imaginárias no ar, como se estivesse brincando de colheita. Mas não ousa tocar em laranjas verdadeiras, agora que já "aprendi".
Estranhei, ao chegar em Tibbutz, perceber que tantas profissões por aqui envolvem atividades manuais e rudimentares como plantar e colher frutos.
Antes mesmo de irromper a última Grande Guerra, nós já tínhamos em Arabah tecnologia e equipamentos suficientes para tornar a mão-de-obra humana nessas áreas totalmente desnecessária. Raah me explicou, no entanto, que Tibbutz escolheuesse estilo de vida. Além dos benefícios óbvios do exercício físico, o contato com a natureza e o senso de comunidade que estas atividades fomentam, foi também a maneira que encontraram para viver da forma mais natural e sustentável possível.
— O trabalho também fornece um certo senso de propósito, essencial para a manutenção da vida. A vida seria extremamente tediosa se não fizéssemos algo — disse, na ocasião.
Acho que entendi. O trabalho é para eles como um hobby.
Sim, esse é um povo estranho.
Próximo ao meio-dia, o efeito das poucas horas dormidas me atinge e minhas pálpebras, ombros e braços começam a pesar.
— Por que está tão cansada? — Tinker me pergunta, quando não consigo conter um bocejo enquanto desço uma escada bambeante apoiada na copa da árvore.
— Eu não sei... — respondo, constrangida. — Apenas estou.
Não posso admitir para uma criança que fiz coisa errada, posso?
— Não está ficando doente, está? — fala com olhos arregalados e uma expressão de angústia.
— Não. — Gargalho com a preocupação precoce. — Super saudável. — Bato no peito com um punho fechado para expressar minha força, ao mesmo tempo que pisco com um olho e deixo escapar outro bocejo.
Tinker dá de ombros, injuriada.
— Você sabe o que dizem: a melhor medicina é a prevenção.
Gargalho novamente, o que deixa a menina ainda mais irritada.
— O quê? — ela resmunga, cruzando os braços.
— Só é engraçado ouvir isso de alguém da sua idade. — Tento controlar meu ímpeto de humor, para não ofendê-la ainda mais. — É que não é o tipo de coisa que me preocupava quando eu tinha oito anos.
Novamente Tinker olha de um lado para o outro, antes de perguntar quase num sussurro:
— E com o que você se preocupava quando era criança?
É. Tá aí.
Pensar no passado.
Esse é o antídoto para qualquer vestígio de comédia e diversão.
— Sobreviver, eu acho.
Tento sorrir para que ela não perceba a mudança repentina no meu estado de espírito, mas minha resposta é recebida com um silêncio esquisito e a atmosfera leve de antes se transforma, queira eu ou não.
É como as botas de corrida. Tudo isso é confortável demais; tão agradável que às vezes me leva a esquecer o que realmente estou fazendo aqui e por quê.
Não posso perder o foco. Não posso.
Após alguns minutos de silêncio, Tinker se voluntaria para pegar nosso almoço. Um grande buffet foi montado na clareira e consigo ver, daqui de onde estou, a festa que há ali, com bandeirinhas e música e pessoas falando alto e conversando. Mas aceito a proposta. Não consigo imaginar me envolver com essas pessoas ainda, não enquanto estou tão cansada e não sei me portar adequadamente.
Depois de uns quinze minutos, Tinker retorna com duas tigelas feitas de folhagem de Figueiras-de-Bengala comprensada. Dentro há, para cada uma, uma porção de frutas e vegetais picados.
Assentamo-nos à sombra de uma laranjeira e começamos a comer em silêncio, pegando os pedaços de fruta com as mãos. De repente, os olhos da menina se iluminam.
— Há quanto tempo você está aqui? — pergunta, tentando contar algum valor nos dedos lambuzados de suco.
— Semana que vem vai fazer três meses — respondo, ligeiramente desconfiada com a animação súbita.
— Socorro! — Tinker tapa a boca com ambas as mãos e, em seguida, começa a agitá-las à sua frente, como se estivesse prestes a alçar vôo. — Essa semana será sua primeira Singularidade! Já se preparou?
— Como é? — pergunto, mastigando uma uva branca.
— Não me diga que não explicaram pra você a respeito da Celebração da Singularidade. — Ela dá um tapa melecado na própria testa e sacode a cabeça, indignada. — O que eles ensinam no seu país, pelos céus? — Em seguida ela se apressa a corrigir. — Desculpa, não queria ofender.
— Não tem problema — sorrio, sem graça. Acho que se qualquer outra pessoa fizesse esse comentário, me magoaria. Mas Tinker provavelmente pode falar qualquer coisa que ainda vou me sentir bem. — Singularidade, você disse? Raah mencionou alguma coisa a respeito.
Quão embaraçoso seria admitir que minha mente navegava para outros cenários, sempre que ele me explicava a respeito desse evento? Cenários que eu jamais poderia relatar para a irmã dele.
— Você tinha que preparar seu traje de festa, sabe? Festa da Singularidade... Ser singular?
Eu olho para ela e depois para os lados, demonstrando que não estou entendendo.
— Em oposição a ser plural?— arrisco.
— Não, né? — Ela revira os olhos impaciente e eu rio. — Singular no sentido de única, especial. — Ela balança a cabeça, como se dissesse que isso não importa e prossegue na empolgação. — De qualquer forma, é simplesmente a melhor festa do Universo! Você. Vai. Adorar.
— Será que vou? — pergunto, afunilando os olhos, semi-séria. — Não preparei nada. Não sabia que tinha que preparar.
— Pode deixar. Eu cuido disso — ela fala no tom mais grave que consegue, com um olhar determinado de uma garota numa missão muito importante. — Amanhã à tarde, vou ao seu encontro. Você está nos Kravz, não?
— Isso — confirmo, abocanhando um morango vermelho-vivo. — Nos Kravz... — repito, suspirando.
Depois disso, o silêncio esquisito retorna. Não sei ao certo se eu o causei porque a lembrança de onde moro temporariamente me relembra que não pertenço a esse lugar ou se ela, de repente, se tornou consciente desse fato e não sabe mais o que dizer.
Em dado momento, interrompo a esquisitice com um comentário aleatório, enquanto pego um cubo suculento de manga entre o polegar e o indicador.
— Você sabia que se você colocar sal na manga verde, ela parece mais doce?
— Mentira! — Tinker responde com um choque tão exagerado que fico feliz por ter compartilhado a informação.
— E não só manga — sussurro, como se revelasse um grande segredo. — Na goiaba, na melancia, no melão e em uma porção de outras frutas.
— Não! Sal deixa doce? Que loucura! — ela brada, prosseguindo em seu espanto descomunal e rio, ao mesmo tempo que me pergunto quanto disso é espontaneidade e quanto está fazendo apenas porque sabe que os adultos achariam graça.
Às vezes Tink se assemelha tanto a alguém... Alguém em quem não quero pensar agora e arriscar estragar a leveza de nossa conversa.
Então lembro de outra coisa :
— Foi meu pai que me ensinou isso, sabia? — digo, com um sorriso triste, mas ao mesmo tempo estou feliz por poder passar adiante ao menos alguma coisa do que eles me ensinaram. A sabedoria do meu povo.
— Você sente muita falta dele? — Ela pisca, ambos os olhinhos se enchendo inesperadamente de umidade.
Afunilo os olhos para examiná-la e, por fim, resolvo, ao menos uma vez, ser totalmente transparente.
— Muita. — Mordo o lábio inferior e encaro a tigela vazia, me esforçando para não deixar escapar uma lágrima. E não só dele, mas tento não refletir muito a respeito. Quando estou um pouco mais controlada, olho novamente para cima. — Mas acho que estou fazendo o que ele gostaria. Então, isso me consola.
Tinker também baixa os olhos para a tigela e o silêncio esquisito faz um bis não-requisitado.
— E o seu pai? — pergunto, com um tom forçosamente animado. — Por que é que vocês nunca falam a respeito dele?
O rosto da garota se entenebrece completamente. Ela sussurra:
— Nós não devemos falar sobre ele.
Algo em seu tom grave e hesitante me faz estremecer.
— Por que não? — pergunto baixinho, tentando ser o mais delicada possível, ao mesmo tempo que a curiosidade me sufoca e estrangula pela goela com urgência.
Ela demora tanto para responder, enquanto encara a tigela de folhas, que, por um segundo, acho que não me escutou. Mas então murmura, sem olhar para mim:
— Ele fez uma coisa má. Muito má.
— Que tipo de coisa má? — questiono imediatamente, sem a pausa solidária de delicadeza.
É neste exato momento que o alarme soa melodioso para o retorno do serviço e os trabalhadores nos cercam de todos os lados. Tinker aproveita a deixa e sai correndo. Eu permaneço, com a certeza de que preciso saber mais sobre essa família.
Nada é tão perfeito assim, afinal. Que alívio.
É quase... humano.
NOTA DA MIMA:
Hello, quem tá aí?? :)) Quem é leitor novo? Quem tá relendo?
Quanto mistério no capítulo de hoje, né? :o Teorias?
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