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Nota da Noemi:
Não, o bebê não nasceu ainda. Meu motivo para os dois dias de sumiço foi algo muito mais prosaico :(( Não estava bem. Dor de cabeça, cansaço extremo, dores no corpo. Coisas normais de 9 meses de gravidez. A boa notícia (boa?) é que Humano está acabando e, portanto, vocês não vão ficar sem o fim. (De qualquer forma, dei acesso pra co-autora Camila-Antunes terminar de postar caso acontecesse do bebê vir antes do tempo).
Amo vocês. Espero que estejam gostando da história.
Demorei para entender completamente a motivação de Sander. E ainda não consigo compreender totalmente como um Kravz acabou se mostrando o ser humano mais altruísta de uma nação inteira.
Meu cérebro tampouco é capaz de processar que eu realmente tenha sido tão idiota ao ponto de não perceber que estava mentindo só para que eu fugisse. Confessando as minhas acusações infundadas só para me proteger.
Sem esforço, ainda sou capaz de sentir o gosto da boca dele na minha e agora... agora preciso rolar o rosto no travesseiro para secar mais uma lágrima.
Inicialmente sou colocada para dormir no quarto que pertencera à Tink. Mas como eu seria capaz de descansar ali? Mesmo que eu nunca a tivesse presenciado viva nesse lugar, é impossível viver com a consciência de que a menininha que despertara todos os dias aqui, com o sorriso e os olhos esperançosos que sempre tinha no rosto, nunca mais voltaria. Nas poucas vezes que consigo adormecer, ela me visita como um fantasma e acordo gritando e em prantos.
Por fim, Raah me transfere para o único outro cômodo que tinha disponível na casa: uma espécie de depósito, não muito diferente do que eu utilizava para dormir na casa dos Kravz. É apertado e desproporcional, mas estranhamente me dá a sensação mais próxima de um lar que eu poderia ter.
De qualquer forma, durante dias, não sou capaz de me alimentar ou beber absolutamente nada. Mesmo que eu tivesse forças para ir até o refeitório, minha faringe reage num reflexo à mera ideia de ingerir alguma coisa. Não faz sentido.
No espelho, as maçãs do meu rosto estão cada vez mais despontadas, minhas olheiras mais profundas, e isso faz com que o Raah aperte a mandíbula gerando aquela proeminência toda vez que nos encontramos para treinar. Ao menos, não preciso me preocupar em trazerem algo para mim. Isso seria demonstrar compaixão. E todos sabemos que esse é o recurso natural mais escasso em todo o país.
A cada dia que passa, quanto mais convivo com Raah, mais estranho ele se torna para mim. Depois de toda aquela coisa de cancelamento ele se parece cada vez menos como um humano e muito mais como uma... coisa. Um monstro.
E aí tenho medo de estar desumanizando-o como fiz com Sander e tenho a esperança de que ao menos essa seja uma lição aprendida.
Os dias passam, todos iguais, sem razão. Raah grita. O tempo todo.
Sua voz soa distante como um burburinho no fundo da minha mente.
— É hora de tomar uma atitude, Hadassa.
— Você precisa lutar, precisa viver!
— Não posso protegê-la para sempre!
— Seus pais não morreram para que você desista agora!
Isso é sua forma de ser inspirador.
E não posso dizer que não funcione totalmente. Ainda há crianças morrendo. Ainda há coisas a mudar. Talvez, eu devesse, sim, me levantar. Talvez.
A pior parte desse meu novo dia-a-dia deveria ser frequentar a Doutrinação, já que Amartia continua raivosa comigo desde que dancei com Raah na Festa da Singularidade. Às vezes, fico na expectativa de que irá me cobrar o relatório que eu prometera a respeito de tudo o que Raah faz. Mas acho que, até mesmo para ela, parece que tudo se passou há tantos séculos e tantas coisas aconteceram desde então que todo o resto acaba parecendo banal e inútil. De qualquer forma, observar o rosto amargo da ruiva é o tipo de auto-flagelação que acho que preciso.
Às vezes me sinto ainda mais culpada porque há dias em que, durante segundos, até mesmo minutos, não sinto nada. Preciosos momentos de alívio. Não sei como é possível, mas se tornam cada vez mais frequentes. Instantes em que a dor no peito não é mais tão presente ou insuportável. Manhãs em que desperto sem a sensação de estar me afogando, sem o ecoar do tiro que imagino atravessar o crânio do rapaz que deixei para trás, sem a certeza de que está tudo perdido. E aí apenas vivo.
Alguns dirão que me adaptei ao status quo, me tornei uma silenciosa conformista aos moldes da cultura de Tibbutz. Ainda mais quando chega o dia e me é concedido, sob aplausos, o direito de cidadania. Eles têm razão? Isso é algo que pergunto com frequência para mim mesma. Afinal, só há dois tipos de pessoas nesse mundo.
Qual deles sou?
Escolha suas batalhas, digo para mim mesma. É impossível lutar todas elas, me reconforto.
Então, corro todas as madrugadas, descalça, como um gesto de mínima rebeldia, dizendo para mim mesma que embora eu pareça com eles, soe como eles e viva como eles, jamais serei uma tibbutzina. Não em minha alma.
Como cidadã de Tibbutz, não sinto nada. Nenhuma alegria. E não consigo deixar de me perguntar se tudo seria diferente caso eu tivesse permanecido alheia ao que acontece por trás das colinas, se toda essa coisa com Tink não tivesse me despertado da minha ignorância.
É no dia em que recebo a cidadania que descubro a que irei me dedicar. No exato momento em que avisto as duas pessoas que menos espero nos fundos do salão. Depois de meses dentro da casa de Raah, observando como ele e sua mãe conseguem viver suas vidas sem o menor vestígio de que Tinker já existiu ou que Doutor Salz já pertenceu a esta família, não posso evitar ficar presa nos olhares entristecidos dos Kravz. Especialmente o de Simsom.
Mesmo semanas depois, aquele olhar ainda me assombra. Tão parecido com o que Sander me lançara, pouco antes de eu abandoná-lo na floresta para morrer.
É por isso que estou aqui agora, em frente à fábrica de fertilizantes, mesmo às custas da reprovação absoluta de Raah a respeito da minha escolha de função. Afinal, ele não me treinou para que eu me tornasse isto.
Assim que dou o primeiro passo e sinto aquele cheiro, não tenho dúvida de que estou assinando minha sentença de repúdio.
Ótimo. As pessoas não prestam atenção em quem repudiam.
As portas correm num ranger primitivo, enquanto me aproximo, me dando a certeza de que até mesmo para os padrões de conservação de edifícios de Tibbutz essa estufa é negligenciada. Olho ao redor, observando a estrutura de vidro e ferro que compõe a construção, coberta de umidade e uma camada esverdeada de lodo. Caminhando pelas fileiras de plantas e maquinários, passo por pessoas trabalhando sem muita expressão ou qualquer sinal de contentamento ou ânimo. Não estou certa de que alguém além de mim esteja aqui por vontade própria.
Uma mão magra estende uma espécie de máscara na frente do meu rosto. Quando os meus olhos seguem o braço a qual ela pertence, deparo-me com o Kravz mais velho.
— Simsom — sussurro, sem conseguir encará-lo.
Não que eu ache que há algum modo de ele saber da minha covardia em deixar seu irmão para trás, mas o peso da minha consciência é grande demais para sustentar a cabeça erguida.
Hoje sei que devia ter ficado, ainda que isso significasse morrer com ele. Mesmo que seja tão mais fácil acreditar que teríamos coragem para fazer o necessário apenas quando olhamos para trás e essa convicção não nos custe mais nada. Ou nada além de arrependimento.
— Vai precisar disso no começo — ele diz, a sombra de um sorriso familiar que me provoca náuseas e câimbras estomacais.
Aceito a oferta e coloco a máscara no rosto, depois caminho até uma parede com o quadro de escalas de funções. Sinto que Simsom me acompanha com os olhos.
— Hadassa, eu... — sussurra ele e meus pés interrompem o trajeto.
Não me viro em sua direção. Apenas permaneço parada até que conclua o pensamento.
— Veja bem, eu sei que você fez o que pôde.
Aperto os olhos e tento comprimir a reação instantânea dos meus dutos lacrimais. Ah, Simsom, se você apenas soubesse.
— Enquanto esteve lá, você... — Ele pigarreia e parece tão nervoso que sou tentada a virar para trás para encará-lo. — Você conheceu... — Mais uns instantes de hesitação. — Outros... Imperdoáveis?
Aperto os olhos. Ele não está sendo genérico.
— Quem exatamente?
Vejo a pele queimada de seu rosto barbudo corar tanto que chego a curvar uma sobrancelha.
— Uma mulher?
Ele assente.
— Cabelos castanhos, dessa altura...? — Ele estende uma palma perpendicular aos meus ombros.
Cruzo os braços na frente do corpo, desacreditada.
— Está falando de Naomi?
Os olhos dele acendem de imediato. Suspiro em descrença.
— Como ela está?
Fico em silêncio por um segundo, ponderando sobre como responder a essa pergunta. Sofrendo miseravelmente? Trabalhando como escrava? Martirizando-se pelo peso da própria culpa?
— Imperdoável — é tudo o que consigo dizer com os ombros encolhidos.
Ele franze os lábios e assente antes de começar a se afastar. Sou eu quem o observa desta vez, imaginando que tipo de ligação os dois poderiam ter. Se isto está relacionado, de alguma forma, com a intimidade que ela tinha com Sander.
— Ela gostava muito do seu irmão — digo, não sei por que motivo, quando ele já está a alguns metros de mim.
— É — afirma ele em um revirar de olhos. — Os dois se tornaram, convenientemente, cúmplices. Ele não me daria notícias dela. Obrigado, Hadassa — resmunga, antes de se retirar.
Não daria... notícias?
Como diabos Sander poderia dar a ele notícias?
— Simsom! — grito, enquanto ele desliza seu cartão de ponto na abertura da porta, mas o rapaz não parece ouvir.
Segundos passam para que ela se feche às suas costas.
É assim que acabo aqui, afundada entre fezes e fertilizantes, repassando nossa conversa obsessivamente em meu cérebro, questionando o quanto de esperança ouso nutrir.
De novo e de novo.
Talvez a sociedade de Tibbutz tenha razão e compaixão seja, de fato, uma doença. O sacrifício próprio, o altruísmo, nada além de um delírio humano, uma estupidez. Embora poucos sejam honestos o suficiente para declarar estas coisas nestas exatas palavras. Muitos por aqui afirmarão que lutar uns pelos outros é uma virtude e que a nação deve se sacrificar pelo bem de todos. Tibbutz faz, afinal, o que for necessário para ser o Paraíso que é. Mas, quando se trata da realidade, quando estamos dispostos a destruir indivíduos para sobreviver, para viver vidas mais confortáveis, para ser "feliz", não se trata mais de idealismo, coletivismo e pensamento em grupo e, sim, de puro instinto animal: a lei do mais forte. Uma nação de predadores que olham apenas para os próprios umbigos.
É essa a doença que levou meus pais a se sacrificarem voluntariamente por mim. A doença que me trouxe a um mar de excrementos bem no meio do Paraíso. A doença que me faz escolher de novo e de novo, todas as manhãs, ansiosa para que ela também me escolha e me contagie e me domine e nunca mais deixe de controlar uma sequer das minhas decisões.
Por quê? Para quê?
Eu não sei.
Talvez seja parte daquilo que faz de cada um de nós simplesmente humano.
Nota da Noemi 2:
Não deixem de ler o epílogo! (Faz parte da história e será postado, no mais tardar, amanhã).
Depois do epílogo, tem uma espécie de surpresinha.
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