30
As portas do apartamento de Raah deslizam com a nossa aproximação. O sol está nascendo e já perdi a conta de há quantos dias não durmo. Acho que a última vez foi antes da Festa da Singularidade.
Agora, depois de tudo o que aconteceu, estou tão exausta que sinto que não me importaria de fechar os olhos e nunca mais acordar. Existe um limite para os nossos corpos. Após esse limite, toda a existência parece perder o significado.
Será que após o limite, eu deixaria de ser considerada humana?
Afasto o pensamento e sigo Raah, conforme ele adentra o pórtico anterior. Numa coluna, ele aciona algum mecanismo e um jato de água começa a jorrar a partir de uma miríade de micro-orifícios no teto, como uma espécie de cachoeira. Estico uma mão e permito que meus dedos desfrutem da deliciosa temperatura e pressão do jato d'água, tão convidativos.
— Você pode se banhar. — Eu o vejo por trás da cortina de água saltar alguns degraus e caminhar apressadamente na direção de um corredor. — Eu vou preparar, enquanto isso, o seu quarto — anuncia.
— Espera, o meu o quê? — pergunto, atônita, enquanto recolho meu braço e dou uma volta ao redor do estranho chuveiro para enxergá-lo melhor.
Raah, imediatamente, dá meia-volta e retorna, com passos lentos, exibindo um meio-sorriso culpado.
— Você não achou que ia voltar para os Kravz, depois de tudo, achou?
— Mas... aqui? — pergunto, ainda estupefata. Não só fui liberta da prisão, irei morar com... Raah? — O que sua mãe acha disso?
— Foi ideia dela. — Ele sorri amplamente e cruza os braços. — Ela acha que você será uma boa influência para mim.
— Você quer dizer que ela acha que vai ser mais fácil vocês me manterem sob controle se eu morar aqui — concluo e reviro os olhos.
— É uma forma de interpretar os fatos — Raah diz e pisca com um olho, antes de girar para ir embora novamente. — Aproveite bem o banho.
Não consigo evitar esboçar um leve sorriso, embora não seja a melhor sensação saber que você será espionada o tempo todo. Estarei segura, ao menos. Com alguém que conheço. Alguém que amo.
Alguém que amo. Repito isso compulsivamente em meu cérebro, tentando me relembrar desse fato. Eu o amo. Eu estou em casa.
Entro na água, com meus trajes imundos, e me deixo purificar, renovar, para essa nova vida que me aguarda. O mero toque da água nos meus músculos enrijecidos dói como se eu estivesse coberta de hematomas. Quero relaxar, mas quando fecho os olhos, revivo a cena em que Sander é depositado com força de joelhos no chão.
Com um susto, abro os olhos e encaro a sala vazia, me relembrando que estou na casa de Raah. Vim para cá com um objetivo e isso é motivo suficiente para que eu não fique olhando para trás com arrependimentos.
Não é como se houvesse uma escolha quando as opções eram me sacrificar inutilmente para libertá-lo, morrer com ele ou salvar a Tinker.
Menos ainda quando até mesmo o próprio Sander escolheu a última opção. Que eu corrigisse a maior burrada que fez na vida. Nem eu nem ele seríamos capazes de vivermos se não fizéssemos algo para mudar a situação.
Um sentimento incômodo me domina ao perceber que, apesar de tudo, sinto um certo alívio. No fundo, no fundo, não se trata apenas da Tink. É incrível a sensação de ter um teto sobre a minha cabeça novamente. De poder tomar um banho. De saber que terei uma cama confortável para dormir, paredes para me abrigar, comida para me alimentar, algo mais para beber do que milho mastigado.
Fecho os olhos, deixando a água morna lavar meu rosto e minhas lágrimas e o rosto de Sander, enquanto fazia sua confissão, retorna à minha mente.
É o rosto de um assassino. Lembre-se disso.
Por mais que me doa admitir, se alguém deveria sacrificar a própria vida para salvá-la, é a pessoa que a colocou em perigo em primeiro lugar. Eu não merecia nada disso.
Mais tarde, já limpa e seca, vou pelo mesmo corredor escuro que Raah entrara antes e saio à procura dele. Subo uma escadaria. Passo por duas portas, uma à direita e uma à esquerda, fechadas, até que chego a um pedaço iluminado do corredor. A luz vem de um cômodo aberto.
Quando entro, vejo Raah terminar de envolver uma gigantesca trouxa azulada com seus braços. Pela inclinação do seu corpo, percebo que o fardo é pesado.
— É aqui que você vai ficar — ele diz, ajustando a postura para sustentar o peso um pouco melhor. — Espero que seja satisfatório.
O quarto é amplo e iluminado, com uma varanda em toda a extensão lateral, com vista para o lago. Inacreditavelmente perfeito após dormir por meses num depósito.
— É incrível — é tudo que consigo pronunciar, quase sem fôlego, enquanto entro com um sentimento de reverência no local.
— Que bom! — exclama com um tom de alívio na voz. — Bem, vou ali trazer alguma coisa para a gente comer — diz. — Você deve estar faminta.
— Não sei o que é pior: a fome ou o cansaço — respondo, com um sorriso desconfortável. — Acho que preciso de uns dias para me recuperar.
O sorriso no rosto de Raah esvanece à medida que parece, pela primeira vez, se dar conta do que passei nesses últimos dias. Ele deposita a trouxa num canto do quarto e diz:
— Então, descanse por alguns minutos. Eu já volto.
Suspiro satisfeita e me sento na cama, balançando meu corpo para cima e para baixo, como que medindo a elasticidade e densidade do colchão. Então, olho para a pequena mesinha da cabeceira e vejo algo.
Eu a ergo com um dedo. Tiras de couro com uma estrela de chumbo, com a letra H gravada no meio.
Minha pulseira. A pulseira que dei para Tink pouco antes de...
Raah retorna com uma garrafa e uma tigela de frutas nas mãos, ele vê o que tenho e para de repente.
— Ah, você encontrou isso. — Ele se aproxima e deposita os itens em cima da cama. — Eu queria perguntar se é sua. Tem sua inicial.
Eu o encaro fixamente, lutando contra as lágrimas que se amontoam em meus olhos. Por que isso está aqui?
Raah parece despreocupado com o turbilhão de emoções que me invade agora. Ele senta ao meu lado, com um pouco de esforço abre a garrafa e me oferece um gole. O líquido tem um aroma suave, bem diferente da bebida fermentada de milho que Sander me oferecera há menos de doze horas. Desvio o olhar para a pulseira na minha mão e as lembranças que me inundam são intensas demais para suportar.
O que acho que estou fazendo? Brincando de viver feliz para sempre com Raah? Desfrutando de um banho, da comida, de uma cama confortável...
Enquanto isso, Tinker ainda precisa de mim.
— Isso... — Raah indica com o nariz para a pulseira. — As crianças admitiram que jogaram a pulseira no poço para provocar Tinker. Aparentemente, ela estava tentando recuperá-la quando caiu.
Uma única informação. E, de repente, descubro que sou eu a culpada.
A única culpada.
E não apenas pela queda da Tinker.
Deixei Sander para trás.
Não só na prisão dos Imperdoáveis, mas... aqueles soldados!
O que fizeram com ele? Não, não, não. O que eu fiz?
As lágrimas caem dos meus olhos sem constrangimentos, os soluços escapando do meu peito incontrolavelmente. Aceitar que Sander era imperdoável não foi o mesmo que cancelá-lo em minha alma? Eu o deixei para morrer. Ignorei a compaixão. Eu realmente acreditei que devia. Então, tornei-me tão cega, tão fria quanto qualquer tibbutzino.
Kravz, aquele mentiroso maldito. Acho que eu poderia levar para a vida a culpa de ter concordado que ele pagasse por um crime que cometeu. Mas à luz de sua inocência? Impossível. Inimaginável. Como eu esperaria suportar um peso como esse?
Raah me abraça com força, como aparentemente sente-se impulsionado a fazer todas as vezes que me vê fragilizada. Ele tenta enxugar minhas lágrimas com os dedos da mão. Eu o encaro, incrédula, com meu olhar anuviado. Minha voz sai trêmula e arranhada quando pergunto num tom súplice:
— Raah, e a Tink?
Ele disse que faríamos alguma coisa para mudar o que precisa ser mudado. Issoprecisa ser mudado.
O rapaz suspira e retira o braço dos meus ombros. Ele apanha uma maçã do cesto ao seu lado, joga-a algumas vezes para cima e dá uma mordida, antes de dar de ombros e falar de boca cheia:
— É. Isso já era.
Abro a boca e não consigo pronunciar nada. Não há mais ar em meus pulmões.
— Mas, olha... — Ele continua, alheio ao fato de que estou prestes a morrer ou a ter um surto psicótico.
Tudo parece querer girar ao redor de mim, as figuras que ornam o quarto tornam-se cada vez mais embaçadas. O luto, a escuridão, o arrependimento, é tudo maior, infinitamente maior do que posso suportar.
— Quero começar uma campanha para que a Cúpula diminua a idade permitida para cancelamentos. Eu estava pensando a partir dos oito anos de idade, que é quando a criança não é mais tão dependente. É um bom passo, não acha?
— Isso... já era? — É tudo o que digo, quando finalmente consigo arranjar forças suficientes para falar.
— Esses procedimentos são rápidos, Dassa. Não podíamos ficar adiando para sempre. — Ele dá de ombros outra vez, tão indiferente, e ao mesmo tempo com uma expressão lastimosa. — Mas acho que, com bastante divulgação, esse projeto pode até passar.
Meneio a cabeça em desespero. Raah faz um muxoxo.
— Esqueça isso de uma vez, Dassa. — Isso, isso outra vez. — Temos que nos concentrar no futuro agora.
Encaro o rosto perfeito e robótico do rapaz em que eu costumava depositar toda a minha admiração. Os olhos que, para mim, representavam o Paraíso, me causam o pior dos calafrios.
Enquanto minha visão escurece, minha mente é levada a Tinker, sozinha num quarto escuro, sendo sugada, esquartejada, queimada, ou quaisquer que seja a forma que escolhem para encerrar uma vida enquanto fingem que aquele ser não é alguém. Imagino seus olhos se fechando à medida que o último fôlego se esvai.
E então me vem à mente a outra imagem que tenho tentado evitar.
Penso em Sander sendo colocado de joelhos, o cano de um fuzil pressionado contra sua nuca, seus olhos cor-de-mel se fechando quando o gatilho é disparado. O tombo de seu tronco contra o chão barrento, a poça de sangue que se forma, seus lábios mornos se tornando acinzentados e sem vida.
Meus pulmões não funcionam mais e, de repente, é como se meu coração tivesse parado de bater. Em menos de um instante é isso que sinto e, no outro, já não posso pensar em mais nada.
Tudo se apaga quando meu corpo se choca contra o chão.
Nota da Noemi:
Eu sei que esse capítulo é um dos mais tristes da história, mas era necessário. A vida nem sempre é tão simples e nem sempre tudo dá certo.
Estamos juntas no luto <3 :(((
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