28
— Preciso sair daqui — sussurro com uma a voz trêmula e Sander se volta para mim, atento.
— Você está bem?
Eu me levanto abruptamente e mal dá tempo para que me afaste alguns passos trôpegos da multidão antes que caia de joelhos no chão e coloque para fora o resto do pouco que comera esta noite.
Os dedos que passam pela minha nuca e seguram meu cabelo na segunda onda de náusea são o indicador de que Sander me seguira até aqui. No chão de barro resta agora uma poça amarelo-esverdeada com um cheiro râncido.
Sinto os olhos do rapaz sobre mim.
— Eu sei que deveria ter dito algo... — começa.
Ergo uma mão, pedindo para que pare o discurso, enquanto mantenho a outra no chão para me apoiar. Inspiro fundo algumas vezes, tentando bloquear uma terceira onda de vômito.
— Eu entendo — me ouço pronunciar e estou surpresa comigo mesma com o fato de que estou sendo sincera. — Na verdade, eu faria o mesmo. Mesmo que eu soubesse, não haveria nada que eu pudesse fazer a respeito e não me ajudaria de forma alguma a me adaptar em Tibbutz e lutar pela cidadania.
Sander permanece em silêncio, o polegar da mão que ainda segura meu cabelo inconscientemente acaricia minha nuca.
— Mas... — continuo. — Eu não posso entender como vocês podem fazer teatro e extrair risos de algo assim. É doentio.
— O objetivo não é fazer graça por fazer. O fator de entretenimento está aí só para desarmar e ferir. E ferir para despertar — diz, os olhos sombrios e uma curva saliente no canto dos lábios.
Aparentemente, Sander quase sempre está tentando conter um sorriso, mesmo quando fala de coisas tão sérias.
Expiro e relaxo. Com um impulso, me empurro para trás, fazendo com que eu sente no chão de barro ao lado da poça de vômito.
— É assim que lobos conseguem dormir tranquilos e sem culpa à noite? — falo, tentando forçar uma leveza que não sinto. — Justificam pra si mesmos que ferem os outros por bons motivos?
A expressão repentinamente grave no rosto de Sander revela ao que ele acha que estou me referindo. E aí lembro disso também.
Do que eu jamais deveria ter esquecido.
E o pior é que, se fosse a isso que eu estava me referindo, eu provavelmente teria sido certeira como uma flecha.
— É isso, não é? É assim que vocês conseguem conviver com qualquer barbaridade que fazem? — Insisto na nova direção que a conversa inadvertidamente tomou. — Vocês falam de mudar a cultura, custe o que custar. Machucando quem machucar. Mesmo que seja uma pessoa inocente? Tudo é justificável quando os motivos são nobres?
Sander desvia os olhos para o chão e seus lábios se contraem numa expressão evidente de culpa.
— Você já tinha falado alguma vez com ela? — pergunto, de repente tomada por uma curiosidade genuína. — Brincado com ela? Perguntado sobre o que ela gosta ou não gosta, quais seus medos e sonhos?
Não preciso dizer quem é "ela". Sander sabe.
Ele mantém os olhos fitos no chão e não diz nada.
— Você pensou em perguntar se ela por acaso gostaria de fazer parte do seu plano? Deu a ela uma escolha?
— Não acho que essa seja uma boa hora para conversarmos sobre isso...
— Qual seria para você uma boa hora para falar sobre isso, Sander Kravz?
Sander se coloca de pé e bate as mãos nos joelhos para remover a camada de barro que se acumulara ali.
— Talvez uma em que não estejamos tão exaustos, depois de um dia tão longo, e que não estejamos ainda francamente sob o efeito emocional de termos sido banidos da sociedade. O que precisamos agora é de descanso — conclui.
Olho ao meu redor, como se para conferir que o rapaz está falando sério. Com dificuldade e pernas trêmulas, me coloco de pé também.
— Descansar? Você só pode estar brincando. Não, eu não posso passar a noite aqui. Não depois de tudo.
Assim que me ergo, minha visão escurece um pouco, me relembrando que a única coisa que consegui ingerir durante todo o dia repousa numa poça próximo a nós. E o esforço físico fora bem intenso.
— E o que pretende fazer, Hadassa? Você mal consegue ficar de pé, que dirá arquitetar uma forma de "escapar" daqui — diz, fazendo sinal de aspas com as mãos ao pronunciar a palavra escapar.
Cruzo os braços e tento transferir o peso do meu corpo para a perna direita, mas, ao fazer isso, quase me desequilibro e caio.
Sei que Sander tem razão.
Mas cada segundo perdido é um segundo incerto para Tinker. E é um segundo a mais ao lado do responsável por tudo isso.
— Vou dar um jeito. — Ergo o queixo, tentando parecer convicta. — É o que sempre fiz.
Sander franze os olhos e me encara por alguns segundos. Depois dá de ombros e gira nos calcanhares, dando as costas para mim.
— Está bem. Então vamos — diz por cima dos ombros.
Seu rosto está visível apenas o suficiente para que eu veja o canto de seus lábios se erguendo novamente.
— A-agora?
— Sim, ué. Se você acha que dá conta e não precisa descansar, então vamos.
Dou uma arfada incrédula.
— Você acha que não consigo? — questiono.
— Por que você se importa com o que eu acho?
— Eu não me importo.
— Ótimo. Então vamos.
Sander começa a caminhar para mais longe do acampamento e, após uns cinco segundos de hesitação, eu o sigo.
Devo estar realmente no limite das minhas forças, porque demoro vários minutos para conseguir alcançá-lo, enquanto subimos um leve aclive. Meus pés parecem pesar toneladas e todos os meus músculos doem. É claro que eu poderia chamá-lo e pedir que me espere, mas meu orgulho ainda está vivo demais para isso.
— Para onde estamos indo? — pergunto, ofegante, logo que consigo acompanhá-lo.
O céu já começa a acinzentar no horizonte distante do outro lado da encosta, indicando que em breve devemos contemplar o início do nascer do sol.
— Para onde você acha que estamos indo?
Observo o movimento de seu vulto na penumbra, iluminado pela luz do luar poente.
— Dá para você me dar ao menos uma maldita duma resposta?
— Só quando você aprender a pedir direitinho, docinho. — Ouço o humor em sua voz, enquanto prossegue o caminho, sem desacelerar. — Quando for um pouco mais gentil.
Reviro os olhos às costas dele, e me apresso para tentar continuar acompanhando seu ritmo.
— Não acho que eu seja capaz disso.
O sorriso de Sander é tão amplo que sou capaz de distinguir seus dentes brancos mesmo na escuridão.
— Nem vem. Já vi acontecer. São momentos raros, mas acontecem.
— Ah, faça-me o favor — resmungo. — As vezes que você me espionou com o Raah não contam. Minha incapacidade se limita a você.
Detecto um retardar sutil na caminhada.
— Como assim? — pergunta, após alguns segundos.
— Só porque você me viu beijar o Raah, não quer dizer que... Enfim, foi algo do momento e ele era alguém com quem eu me importava.
Sander interrompe os passos de repente e eu o imito em reflexo.
— Ao contrário de mim.
— Exato.
Sander exala uma lufada de ar pelo nariz que se parece com uma risada.
— Isso é irônico.
Minhas sobrancelhas se unem em estranheza.
— Por quê? — pergunto, tentando controlar a pontada de raiva que me acomete com a zombaria em seu tom. Quase consigo visualizar seus lábios retorcidos no sorriso torto que esboça quando fala assim.
— Porque há meia hora você estava quase me devorando com o olhar perto da fogueira.
Não consigo premeditar a maneira como meu corpo reage a isso.
— Não estava, não! — disparo, porque é preciso dizer alguma coisa quando você escancara a boca por tanto tempo. — E... e... se estava, é porque você tentou me embebedar com aquela merda de milho cuspido.
Então viro o rosto para o lado, distante do alcance do olhar dele, somente para o caso da queimação que estou sentindo no rosto seja de alguma forma visível.
— Ei, você pode justificar para si mesma seus desejos como quiser, docinho. Se é isso que faz você dormir tranquila e sem culpa à noite.
Cerro os punhos ao lado do corpo. É possível que alguém seja mais irritante que Sander Kravz?
— Não — digo, com tanto deboche quanto posso. — Isso não me faz dormir tranquila à noite.
Estou começando a me incomodar pela perda de tempo parados com esta conversa que não nos levará a lugar nenhum, quando Sander começa a se movimentar. Ele diminui o espaço entre nós com seu gingado malandro e se inclina até que nossos rostos estejam da mesma altura. Não sei se os primeiros raios de sol já começaram a surgir no horizonte ou se meus olhos se acostumaram com a pouca iluminação, porque agora sou capaz de distinguir com mais facilidade seus traços. Da falha na sobrancelha direita, os olhos cor-de-mel flamejantes e a maçaroca preta que cobre seu nariz.
— Mais alguns goles de Mashkeoth... — sussurra sob o sorriso curvado. — E talvez essa noite você dormiria.
Pfft.
— Faça-me o favor. Nem um barril dessa porcaria me faria dormir com você.
Ele joga o corpo para trás, retomando a postura com um solavanco. No rosto, exibindo um espanto tão genuíno quanto o sorriso amigável da Dra Salz.
— Quem falou alguma coisa de você dormir comigo? Que mente suja você tem — debocha, e eu preciso controlar o impulso de desfazer o divertimento em seu rosto com as minhas próprias mãos.
— O que seja.
Quando chegamos quase à ponta de uma encosta, Sander faz uma curva repentina para a direita, nos encaminhando para um declive que leva a uma mata densa. Antes de segui-lo, tiro um segundo para examinar o extenso vale diante de nós, banhado pelos tons dourados, rosa e laranja do nascer do sol.
— Você vai me dizer, por favor, qual é o plano? Para onde está me levando? — pergunto, correndo atrás dele.
— Para um lugar seguro — é tudo o que diz.
— Deixa de palhaçada e enigmas, Sander Kravz! Para onde diabos estamos indo?
Sander suspira.
— Para um lugar onde podemos descansar em paz. E aí decidimos o que fazer quando estivermos um pouco mais despertos e racionais.
Interrompo os passos outra vez. Sander não faz o mesmo.
— Não é aonde pedi para ir! — Projeto a voz às suas costas, mas ele não se vira para mim.
Não completamente, ao menos. Seu pescoço gira o bastante apenas para que ele grite, em resposta, sobre o ombro:
— Você disse alguma coisa? Porque seus lábios se moveram, mas tudo que ouvi foi "bééé, bééé".
Acelero os passos para alcançá-lo e, quando finalmente consigo, o cutuco no ombro. Sander mantém o seu ritmo como se meu toque fosse uma extensão da brisa abafada que sopra contra nós conforme nos aproximamos do som das águas correntes de um riacho.
Cutuco-o de novo. Nada.
— Quer saber?! — Explodo de forma exageradamente dramática. Provavelmente não é a forma que eu reagiria num dia comum, mas certamente tenho meus motivos depois de todas as emoções e de todo o cansaço do dia. — Eu já sabia o tipo de pessoa que você era desde o princípio, mas realmente me esforcei para acreditar que você não era tão absurdo, e ridículo, e cruel, e...
— Mais alguma coisa? — Ele para de repente e se vira para mim com a expressão tão irritada que não há sombra de sorriso em seus lábios.
— Sim! — brado em seu rosto. Estou assustada com a ira irracional que se apodera de mim, mas estou exausta demais para combatê-la. — Se eu pudesse voltar atrás, eu jamais teria contado para você sobre a minha... — A voz embarga em minha garganta e primórdios de lágrimas começam a se formar em meus olhos. Pisco freneticamente para expulsá-las. — Minha irmã e... aberto o meu coração e aceitado sua ajuda para salvar a Tinker. A forma como deixei que você se aproximasse de mim... — Meus lábios se curvam para baixo, involuntariamente.
De repente sinto que as lágrimas que estou represando estão prestes a despencar, a qualquer momento. Preciso colocar um fim à minha fala antes que acabe desmoronando na frente do Kravz. Antes que acabe por expor toda a minha mal disfarçada vulnerabilidade.
— Esse é meu maior arrependimento desde que cheguei a Tibbutz.
Ele arqueia uma sobrancelha.
— Esse é seu maior arrependimento? Não é dar uns amassos no cara que apoia que matem a irmã dele?
Olho para o alto, metade em descrédito, metade para secar os olhos, e forço uma risada desacreditada.
— Beijar o Raah? Por que eu deveria me arrepender disso?
Sander sacode a cabeça, enquanto me encara por vários segundos, sondando minha expressão. O que quer que fosse que estivesse buscando encontrar no meu olhar, parece não obter, porque dá de ombros e responde:
— Por nada — diz ele, e então simplesmente volta a caminhar.
Fico imóvel por alguns segundos processando o que acabou de acontecer. Não, ele não vai fazer isso. Não outra vez.
— Nada disso, eu quero saber.
— Não é importante.
Cerro os dentes antes de cutucá-lo nos ombros de novo. Agora com mais força.
— Apenas diga de uma vez.
Sander responde apressado, com um evidente tom de indiferença:
— Achei que seus critérios tinham mudado. Que tinha aprendido alguma coisa. Mas claramente me enganei.
Não consigo formular nenhuma resposta. Ele se afasta, enquanto permaneço com os lábios entreabertos, esperando que sílabas saiam espontaneamente da minha garganta ordenadas de uma forma que façam sentido. Mas nada surge. Nem uma maldita palavra. A cada passo que Sander dá para mais longe, mais eu me divido entre me sentir completamente estúpida e possuída pela raiva.
Não! Ele não irá me deixar para trás novamente!
Num impulso acelero os passos até me aproximar dele de novo, mas dessa vez, em vez de tentar chamar sua atenção, puxo-o pela camisa, na altura do ombro, para virá-lo de frente para mim.
— Escute aqui, S...
Sou interrompida pelo solavanco do corpo dele ao empurrar os lábios contra os meus.
Uma mistura de urgência e suavidade. Desespero e desejo. Respiração ofegante, hálito e... doçura.
Meus lábios entreabrem quando a coisa toda se torna quase irresistível, talvez por um reflexo ou pela falta de tempo para processar como isso acabou acontecendo. Meu coração dispara. Só dura um segundo.
Sander fica imóvel enquanto me afasto de súbito e, antes que me dê conta, sinto a palma da mão estalar sobre a mandíbula dele.
Nota da Noemi:
postei e saí correndo!
(mas quero dez bilhões de reações senão vou começar a considerar entrar de greve :D)
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