27
Quando já estão todos relativamente satisfeitos e a lua cheia paira alta no céu, a atmosfera entre os Imperdoáveis pouco a pouco muda. Tochas são acesas ao nosso redor e a exaustão lentamente dá lugar a uma espécie de relaxamento preguiçoso. Alguns se sentam ao chão, apoiando as costas contra troncos e pedras; outros deitam em esteiras de palha. Um grupo começa a tocar no palco uma melodia num instrumento improvisado, enquanto alguém começa a recitar versos que se alinham perfeitamente à cadência e ritmo da música. Alguns grupos trocam confidências sussurradas e, vez por outra, de lá e de cá, irrompem risadas.
Não sei ao certo se estou sob o efeito do que sobrara do Mashkeoth vomitado, mas de repente, surge em mim um sentimento raro de que possuo o direito de desfrutar desse momento. Fecho os olhos, saboreando a sensação de ser aquecida pelas chamas que trepidam sobre as tochas entre nós. As risadas ao fundo, a poesia melodiosamente declamada com tanta emoção e sinceridade... Eu me sinto talvez mais confortável, mais à vontade do que nunca estive entre a sociedade de Laguna.
— Essa é a versão que mais gosto de você — Sander sussurra próximo ao meu ouvido.
Instintivamente, me encolho.
— Eu deveria saber do que você está falando? — falo, franzindo a sobrancelha, ligeiramente irritada com a interrupção do meu momento de paz.
Sander se afasta e faz um beiço irônico, tentando conter um sorriso.
— Ela foge sempre que eu me aproximo — diz.
— Ela quem?
— Essa versão de você. Diferente da que costuma andar rodeada de mil escudos e armada com trinta mil lanças, prestes a atacar quem cruzar o seu caminho ou a ofender. Nestes raros momentos em que ela baixa as defesas... Esta é a versão de você que mais gosto.
— Talvez ela tenha motivos para andar armada e protegida — explico, ainda mais irritada. — Talvez ela tenha tido que fazer isso para sobreviver durante toda a vida.
— Uma ovelhinha que criou garras — diz, ainda tentando conter o sorriso.
Não deixo escapar a referência ao comentário que fizera ao me ver pela primeira vez em sua casa.
Solto um suspiro pelo nariz contendo o impulso de revirar os olhos. Mas decido, talvez pela primeira vez na vida, não ceder a uma provocação de Sander Kravz.
— Inevitável quando se vive cercada de lobos — retruco.
Sander ergue as sobrancelhas e ri, encarando o céu estrelado. Quando ele volta a olhar para mim, diz num tom gozador:
— Acha que está cercada de lobos agora?
Observo os grupos de pessoas ao meu redor.
Seus rostos simples e relaxados, a diversificada paleta de emoções que os cobre enquanto conversam, descansam e desfrutam da noite.
— Não sei. — Por que tenho tanta dificuldade de dar o braço a torcer? — Às vezes é difícil dizer.
Sander se inclina na minha direção, depositando os antebraços nos joelhos.
— Pareço um lobo para você?
— Sim — respondo sem pensar duas vezes. Mas, em seguida, rio, demonstrando que estou falando só parcialmente sério. — Você é totalmente lobo.
— Por quê? — Sander força uma expressão ingênua. Não consegue, no entanto, controlar o erguer malicioso de um canto dos lábios, numa antítese da inocência pretendida. — Lobos são assim tão atraentes no seu país?
— Não — tento responder num tom leve e despreocupado, embora eu me sinta inexplicavelmente tensa. — Eles... os lobos... ahm... — gaguejo.
Sander aproxima o rosto do meu e não consigo evitar que minhas bochechas queimem. Seus olhos tão concentrados, sondam o meu rosto como se me fizessem uma espécie de pedido. Só não consigo entender qual.
Não sei por quê repentinamente me vem à cabeça a frase que Doutor Salz me dissera mais cedo. "A vida é longa e ser um Imperdoável pode se tornar bem solitário..."
Nem sei por quanto tempo mais serei uma Imperdoável.
Até agora eu estava tão decidida a escapar o mais rápido possível. Mas numa noite assim... cálida, repleta de sons e sorrisos, cores e a atmosfera de uma reunião de família... até consigo me imaginar como parte deste povo.
Apenas imaginar, é claro. Fingir por apenas uma noite que nada disso é passageiro e esquecer o quão importante e urgente é minha escapatória. Abandonar a consciência de que somos prisioneiros, de que este é o último lugar que escolheria para mim e que tenho o assassinato de alguém que amo a impedir.
Por apenas este instante, permito deliberadamente que um a um dos meus escudos despenquem, enquanto minha respiração escapa pelos lábios de forma audível e trêmula.
— O que você quer, Kravz? — digo, me sentindo infinitamente vulnerável, inquieta e exposta.
Sander desliza um indicador pelas costas da minha mão. As labaredas das tochas refletem em seus olhos castanhos, quando ele focaliza em mim.
— Que você entenda que assim como uma ovelha pode criar garras, um lobo não precisa usar as dele.
— Soa exatamente como o tipo de coisa que um lobo diria para desarmar uma ovelha — respondo imediatamente.
A risada sonora que Sander solta reverbera entre os Imperdoáveis.
Eu teria me contagiado se duas garotas não virassem as cabeças para nós e estivessem cochichando agora mesmo.
Sander desvia os os olhos para os pés, parecendo encabulado, tentando fingir que não entendeu as insinuações das duas.
— Espero que esteja funcionando — sussurra, assim que volta a olhar para mim.
— Está admitindo que é um lobo, então?
— Só se você admitir que acha lobos extremamente sexy.
— A partir do momento em que uma ovelha acha um lobo sexy, ela está fadada à destruição, não acha?
Sander dá de ombros.
— Ou fadada às melhores noites da vida dela.
Quando os cantos dos meus lábios se esticam num sorriso é que finalmente percebo que tudo isso foi longe demais.
Um sentimento de culpa me invade.
Mas culpa, por quê? O que há de errado com flertes, brincadeiras e provocações? Com música sob o luar e risadas?
Nada. Exceto...
Como é possível desfrutar de qualquer uma dessas coisas quando se sabe que ao nosso redor crianças inocentes estão sendo assassinadas?
Nós fingimos, é claro. Vivemos num mundo de fantasia. Ignoramos o absurdo da nossa realidade, porque é desconfortável demais viver no meio dela.
— Lobos esperam o momento em que suas vítimas estão desarmadas para atacar — respondo séria, tentando encerrar os instantes de descontração entre nós e me coloco de pé para sair.
O estranho é que, desta vez, não sinto raiva ou nada das coisas que costumo sentir quando Sander me desconcerta. Desta vez, estou apenas revoltada comigo mesma. Com a rapidez em que dei as costas para tudo que me é mais importante.
De repente, ouço o alto ecoar de três batidas surdas.
Todos os olhos se voltam automaticamente para a origem do barulho: uma jovem com mangas bufantes ao centro do palco improvisado. Ela tem nas mãos uma vara de madeira e bate no chão diversas vezes para chamar a atenção de todos.
Sem que nada mais seja dito, os Imperdoáveis espontaneamente começam a aplaudir e assoviar, cada qual se reposicionando nos assentos para assistir a cena.
— Respeitável público... — ela grita. — Ou eu diria imperdoável público!
A reação do público é mista. Alguns aplaudem, outros vaiam por gozação, outros ainda apenas riem.
Sob protesto de pessoas, cuja vista para o palco aparentemente está bloqueada por mim, volto a me sentar, tentando manter uma certa distância indiferente de Sander. Confesso que estou curiosa demais para simplesmente ir embora agora.
A jovem empina o nariz e faz uma expressão de desprezo para a audiência, desfilando de um lado para o outro, com uma postura pomposa.
— Este é um momento muito especial e aguardado — anuncia, num tom afetado e agudo. — Digam que entrem!
Um grupo de Imperdoáveis surge na lateral do palco arrastando os pés pelos degraus da plataforma. Eles andam juntos, enfileirados, unidos por um aglomerado de sabugos que simulam correntes.
Mordo os lábios em expectativa e quando encaro Sander, ao meu lado, ele está... hesitante? O sorriso debochado se desfaz nos lábios que comprime enquanto me encara.
De alguma maneira, isso faz com que eu fique mais interessada. Pressiono os olhos para o palco, na direção da garota de mangas bufantes, que mantém a postura altiva e a expressão majestosa, dignas de uma rainha.
Dos acorrentados, cada um se apresenta diante da moça sentada no trono improvisado. O primeiro é esguio e ligeiramente magro. Isso se considerarmos os padrões de Tibbutz. Não Arabah-magro. Ele se desprende da corrente de mentirinha e então entra, mancando.
A moça estende uma mão e o rapaz contém os passos de imediato.
— Fraco demais — ela diz com um tom arrogante e aponta para um canto do palco.
Todos ao meu lado, exceto, talvez, Sander, começam a vaiar inflamadamente. A pena que sinto dos atores só dura um segundo. Tempo o bastante para que eu me dê conta de que aquelas reações acaloradas fazem parte da atuação.
— O que é isso? — sussurro para Sander. — O que estão interpretando?
Mas ele parece não me ouvir, porque não recebo nenhuma resposta.
O rapaz magricela no palco sai mancando com uma expressão exageradamente triste no rosto e se posiciona no canto que a moça apontou.
Então, o próximo, um homem de cabelos longos e pele sardenta, se apresenta:
— Ruivo demais! — brada a mulher e ele se une ao amigo anterior no canto do palco.
Os dois se abraçam, atuando um choro exagerado. As pessoas se dividem em reações tão entusiasmadas, que variam entre divertimento e vaias, que eu me sinto obrigada a encarar a Sander. Tentar analisar como ele reage a isso. Procurar descobrir o sentido oculto por trás da graça que não consigo enxergar.
O próximo prisioneiro é uma garota, não muito mais velha que eu.
— Baixa demais!
O procedimento se repete, de novo e novo, seguindo o padrão angustiante até que a fileira acorrentada seja cada vez menor, à medida que o cantinho dos rejeitados está cada vez mais cheio.
Os motivos parecem progressivamente ainda mais absurdos e arbitrários:
— Péssimo gosto para sapatos.
— Tem algo na sua aura que me incomoda. — Até mesmo Sander acaba rindo com essa.
— Um dedo do pé é maior do que o dedão! — Um rosto ofendido surge no palco.
Talvez esta Imperdoável tenha se chateado de verdade.
A pessoa seguinte finalmente me é familiar. Ainda assim, preciso de alguns segundos para me dar conta de que é o rapaz de bandana que nos recebeu na plantação. Ele coloca as mãos na cintura e se posiciona no meio do palco.
A juíza eleva as mãos à boca numa expressão efusiva de surpresa e admiração.
— Oras, oras. Observem este espécime. Que bíceps! Que postura. Que... talento!
A platéia aplaude e assovia efusivamente.
— Diga-me, espécime. Qual seu posicionamento a respeito de filhotes? Cachorrinhos, por exemplo?
— Acho que são... — Ele leva uma mão ao queixo e tamborila os dedos no maxilar, numa atuação exagerada de ponderação. — Fofos. Deveriam ser protegidos.
A moça começa a aplaudir e todos a acompanham na celebração.
— E filhotes de... deixe-me ver... gorilas?
— São seres extremamente empáticos. Não fazem mal se não forem provocados.
A garota abre um sorriso de satisfação.
— E diga-me: — prossegue ela, uma expressão sombria surgindo em seu rosto. — O que pensa a respeito de filhotes de humanos? Esses ainda não muito desenvolvidos, sabe? As tais de... — Ela faz uma expressão de nojo. — Crianças?
— Também devem ser... protegidas? — ele responde, incerto.
A mulher faz um beiço injuriado e o público vaia em apoio.
— Puxa, que pena. Tão bonitinho... Que desperdício. Será que eu poderia mantê-lo de estimação?
A platéia vaia novamente.
— Mas ele tem tanta massa muscular aproveitável. Que se torne um Imperdoável, então!
— Um Imperdoável? — sussurro para Sander. — Eles estão ilustrando o que acontece com os tibbutzinos quando se opõem ao sistema?
O rapaz abre a boca para responder, mas então o próximo candidato entra, desfazendo-se das amarras com um estardalhaço. Ele se exibe diante da mulher e responde a cada uma das perguntas anteriores com as respostas que ela esperava:
— E crianças?
— Parasitas! — brada.
É a primeira vez que a platéia não festeja, mesmo que as celebrações até agora tenham sido claramente satíricas. Em vez disso, um burburinho inquieto sobrepassa os diferentes grupos.
Olho para Sander e seu rosto está lívido.
— Parabéns, meu jovem — a moça no palco diz, ainda no papel de pretensa animação, enquanto faz uma reverência.
Ela pega um objeto das mãos de outro Imperdoável e o ergue ao alto para apresentá-lo ao público.
Sinto o sangue esvair do meu rosto quando percebo o que é.
— Você provou sua inteligência e superioridade moral. Agora você merece ser um de nós — ela fala, enquanto deposita um bracelete de palha ao redor do pulso do escolhido. — Tibbutz, receba seu mais novo cidadão!
A aclamação é acompanhada não só de palmas, mas a maior parte do público de mentira bate os pés no chão em celebração.
Minha garganta se fecha e lágrimas começam a se formar nos meus olhos.
— Esses não são tibbutzinos — concluo o óbvio com a voz trêmula.
Um senhor de barba grisalha é o próximo da fila. Ele tem a aparência muito parecida com a de Luka, o homem que se tornara como um avô para Lean durante todo o processo de Travessia e que desaparecera sem deixar vestígios, junto com mais algumas dúzias de sobreviventes.
— Velho demais — ela diz com uma careta e aponta novamente para a fila do canto.
Acabo piscando ao sentir o calor inesperado da mão de Sander no meu ombro. Ele a descansa ali por um breve momento, pressiona-o e então já não sinto o seu toque.
— São imigrantes lutando pela cidadania em Tibbutz — completo meu pensamento.
Pânico me invade ao me dar conta do significado de tudo isso. Luka e os outros sobreviventes não desapareceram simplesmente. Eles foram... o quê? Rejeitados?
— O que vai acontecer com aquele grupo? — aponto para a fileira de imigrantes desqualificados, apavorada com a resposta.
— Parabéns para os que foram aceitos — continua a mulher no palco. — Infelizmente, como todos sabem, nem todo mundo tem o que é necessário para ser reconhecido como um membro de sua própria espécie.
Há um instante de silêncio que, pelo que vi da apresentação até agora, seria o espaço para aplausos e outras reações do público.
Em vez disso, há apenas um silêncio sepulcral e profundo.
Isto sim é longe demais. O que eram flertes e sorrisos em comparação a esse tipo de espetáculo?
— Para o resto de vocês... — Sem demonstrar incômodo com a falta de reações, a mulher se dirige à fileira onde está o senhor semelhante a Luka. — Vocês infelizmente não se encaixaram nos critérios arbitrários que determinei para que sejam considerados humanos, adeus! É o fim da linha. Mas não se preocupem, o cancelamento é totalmente seguro e indolor... para mim, é claro.
A mulher olha para a platéia com uma expressão grave e a quietude que paira neste instante me remete aos minutos de silêncio que costumávamos tomar em respeito aos mortos.
Olho de um lado para o outro, com a vista embaçada pelas lágrimas, lutando para não urrar de dor e desespero.
Cancelados.
O resultado da desumanização atingiu, arbitrariamente, parte do meu povo. Meus amigos.
E então me dou conta de que todos os tibbutzinos com quem convivi já sabiam disso.
Incluindo o que está ao meu lado.
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