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Nota da Noemi:
Quem queria capítulo novo levanta a mão 🖐🏻 💕
Esse é o rotineiro momento em que me pego pensando "quem esse Kravz pensa que é?"
Ou melhor: quem eu acho que ele é, para que eu ainda me surpreenda com seus modos selvagens?
Olho em volta do ambiente frio, escuro e úmido em que estou. E com Sander fora de vista, estou completamente sozinha de verdade. Não muito diferente do que estive até aqui, é claro.
Sozinha. Por conta própria. Foi assim que estive durante todo esse tempo em que ingenuamente acreditava que se desse tudo de mim podia me tornar mais como o que eles esperavam. Mais como algo que eu realmente quisesse ser.
Mal eu sabia que havia sido condenada à solitária no momento em que cruzei aquela fronteira. Uma prisão perpétua e fria. Fria e escura.
Talvez tenha sido Tinker a única exceção. Minha única companhia. Mas agora ela se foi e cá estou eu, sozinha outra vez.
Uma sequência de cenas dos meus momentos em Tibbutz se passa pela minha cabeça enquanto estou sentada em minha própria companhia neste lugar sombrio. Cada músculo hipertrofiado em treinamentos, cada vibração às mais discretas insinuações de aprovação de Raah, cada noite sob o teto dos Kravz.
O maldito Kravz, se eu pudesse eu...
— Vamos — uma ordem seca ecoa de um lugar que não posso ver. Mas é suficiente para fazer com que eu me sobressalte.
Levanto-me de súbito, em posição de defesa, e quando meus olhos finalmente conseguem decifrar a figura que se aproxima de mim, a silhueta de Sander começa a ficar mais nítida na penumbra. Poderia jurar que há um esboço daquele irritante meio sorriso cada vez mais raro em seu rosto. Não que tenha me feito falta. Eu só... consigo me sentir ainda mais desconfortável em sua presença quando ele está assim todo sério.
— Como assim, "vamos"? Para onde acha que eu vou com você?
— De volta — resmunga ele, apertando propositalmente os passos quando passa por mim.
— Por quê?
— Precisamos voltar ao trabalho.
Ele abre uma fenda entre as Thunbergias, e a luz solar invade o recinto. Uso uma mão para aplacar a incidência dos raios sobre meus olhos enquanto tento protestar.
— Não posso acreditar que você esteja simplesmente confortável com isto! Voltar ao trabalho? E o que mais? Decorar o apartamento, matricular as crianças na Doutrinação? Você não pretende realmente entrar numa rotina aqui, pretende?
Sander se vira para mim com os olhos tão revirados que tudo o que exibe é o branco de seu globo ocular:
— Essa é a vida agora, Hadassa. Ou você trabalha ou não come. Então, facilitaria se você simplesmente aceitasse.
Ele avança pelo caminho contrário ao que fizemos há uma hora, rente à colina, sem se importar em checar se o acompanho ou não.
Então, simplesmente acelero os passos para acompanhá-lo com proximidade o suficiente para que possa murmurar ao seu ouvido:
— Você pode ir mais devagar pelo menos, querido mestre?
Ele dá de ombros.
— Se você não se importar em ter seu lindo corpo decorado com buracos simétricos de balas de fuzis, faça isso você.
Minha garganta se fecha antes que eu possa responder. Isso significa que não foram embora totalmente? Ainda estão por aqui?
Acelero meu passo ainda mais e passamos um tempo, dez ou quinze minutos, sem trocarmos qualquer palavra. O mínimo ruído é suficiente para que eu me sobressalte e, a julgar pelas vezes em que me olha pelo canto do olho, Sander parece notar.
— Por que fazem isso? — pergunto, num desses momentos de olhadas de soslaio. — Por que saem atirando?
— Às vezes para nos punir, às vezes por esporte.
Engulo em seco. De tudo o que imaginei a respeito dos tibbutzinos, nunca considerei que pudessem ser sádicos.
— Por quê?
— Porque isso faz deles moralmente superiores, oras. Ou ao menos se sentirem assim.
Começo a refletir sobre quão curioso é que nada disto jamais tenha sido mencionado durante o meu treinamento (afinal, "não andar na linha pode fazer que você seja caçada como um animal" não é uma informação importante, não é mesmo?), quando Sander completa sua frase:
— Inclusive, pensando bem, não é que você se encaixa direitinho nessa sociedade?
— Queria eu — digo, elevando o queixo. — Embora você não tenha falado isso como um elogio.
Ele semicerra os olhos para mim.
— É, você possui o mesmo senso de moral hipócrita.
— Hipócrita? — cesso os passos de repente e, curiosamente, como se o que eu tenho para dizer por algum momento lhe importasse, Sander faz o mesmo. — Meu senso de moral é hipócrita? Isso é dizer muito vindo de alguém que machuca garotinhas.
— Não é algo curioso que você possa desprezar tanto alguém por empurrar uma garota, mas está perdidamente apaixonada por outro alguém que apoia o assassinato dela?
— Raah não sabe o que está fazendo. Ele é vítima da cultura em que vive, tanto quanto sua querida Naomi. Mas você não tem desculpa. Você já sabia o que estava fazendo, sabia que Tinker é uma humana tanto quanto você e mesmo assim...
Ele esfrega as mãos pelo rosto e abre seu maior sorriso desacreditado. É curioso perceber que apesar de toda estupidez e o desleixe com a própria aparência ele tenha dentes tão brancos e alinhados. São ainda mais brancos em contraste com a argamassa preta que foi usada para proteger o nariz quebrado.
— Só para entender... — Ele dá um passo em minha direção. — Então o que faz de mim o pior ser humano da face da Terra é que eu sei a diferença entre o certo e o errado e o Raah não?
— Pode-se dizer que sim — respondo, repetindo o gesto. Empino tanto o nariz para encará-lo nos olhos, que a cabeça dele se inclina no sentido da minha.
— Tudo bem. — Estamos tão próximos que tudo o ele precisa fazer é sussurrar. Meu coração arde de raiva. — Então, espero que da próxima vez que ele decidir matar alguém que você ama, você fique bem tranquila e satisfeita, ciente de que ele o faz por pura inocência de coração.
Por alguns segundos que mais me parecem horas eu não sei como retrucar. Apenas o encaro, desejando ser capaz de agredi-lo com o olhar.
— Sua argumentação é claramente desonesta. Dá para fazer qualquer coisa parecer absurda ou ilógica quando se resume tudo a poucas linhas. Inocência ou culpa, moral e intenção, certo e errado. Não dá para simplificar o debate dessa forma! Por isso, confio no meu instinto, naquilo que eu sinto.
Quero continuar argumentando, mas após uma curva ao redor de um monte rochoso, preciso segurar minha respiração. Porque de repente estamos em frente a uma área descampada de onde posso ver centenas de montes cobertos por plantações. Em todas as direções. De onde estou, identifico ao menos milho, arroz, trigo. E um formigueiro de Imperdoáveis suados entre as espigas e grãos.
— Por que estamos aqui? — pergunto, tentando não tropeçar enquanto caminhamos monte abaixo em direção à área cultivada.
— Para implorar por um espaço para trabalhar. Com sorte, podemos levar à noite algumas espigas que caírem pelo caminho e teremos pelo menos hoje jantar garantido.
Paro bruscamente e pisco confusa.
— Do que você está falando? — Abro os braços em direção aos campos. — Certamente há alimento suficiente aqui para suprir toda essa gente e mais um pouco.
Sander suspira debochado e balança a cabeça, enquanto prossegue a trilha descendente, mantendo-se alguns metros adiante de mim.
— Você ainda não entendeu — ele diz, por cima do ombro, e tenho a impressão de que seus lábios quase sorriem.
Mas não há alegria em seus olhos.
— Eu entenderia se alguém me explicasse — reclamo.
O rapaz desacelera os passos no meio do caminho e me estuda por alguns segundos. Num instante, parece que vai prosseguir a jornada sem me revelar nada, mas, de repente, interrompe o movimento e me olha novamente. Sander limpa a boca com as costas da mão e a repousa no queixo, o rosto expressando consecutivamente uma porção de emoções contraditórias.
— O que resta para os Imperdoáveis depois que abastecem os depósitos de Tibbutz mal é suficiente para a sobrevivência — diz por fim.
Meu queixo despenca e franzo as sobrancelhas, desviando o olhar para o panorama, para a grandiosidade da produção agrícola diante de mim.
— Mas... achei que Tibbutz era auto-suficiente. Que vive apenas a partir do que produz — protesto.
Ele dá de ombros, me olhando de baixo para cima.
— Segundo Doutor Salz, não existe conforto sem que alguém esteja pagando por ele. O trabalho em Tibbutz é praticamente um passatempo, algo para dar propósito para as pessoas. A garantia do bem-estar repousa nas costas de outros. É claro que eles diriam que estão apenas fazendo um favor para esses indesejados. Permitindo que se mantenham vivos e ocupados.
— Então eles esperam que nós trabalhemos como condenados para manter o nível de conforto? É isso?
— Significa que o sonho acabou. — Ele pausa e os cantos dos lábios estão erguidos para cima, como se sorrisse, mas nada mais em seu rosto expressa humor. — Tudo pelo que você lutou até hoje, docinho... Já era. Diga adeus à vida almejada. Adeus para Tibbutz.
Seu tom me soa como zombaria, mas em seus olhos vejo um brilho que quase me parece mais como... sinceridade. Vulnerabilidade. Como se não estivesse falando apenas do meu sonho.
O que diabos Sander Kravz está deixando para trás?
Eu devo ter transmitido em meu rosto um pouco da curiosidade e do pesar que se remexem dentro de mim, porque ele acrescenta logo a seguir, com um tom mais leve:
— Mas não se preocupe. — Ele aponta para os campos, sobre os quais homens e mulheres se debruçam e trabalham arduamente. — Você não estará sozinha. Milhares de sonhos perdidos e corações partidos por aqui. É a única coisa da qual não há escassez. Estamos todos juntos nessa, garota.
Algo em seu tom na última frase atiça um sentimento em mim. Algo ruim. E faz meu sangue ferver novamente. Então, desço apressadamente a trilha até ultrapassá-lo, e enquanto passo, volto meu rosto para ele e digo:
— É aí que você se engana. Eu e você somos totalmente diferentes. Meus pais não deram a vida deles para que eu cruze os braços e simplesmente aceite isso aqui. Se eu fosse como você, ainda estaria morrendo de fome em Arabah.
Ele me encara, por um segundo, parecendo refletir a respeito.
— Está bem — é tudo o que diz.
Eu paraliso desacreditada que essa seja sua resposta. A expressão incrédula congela no meu rosto e eu fico parada, olhando para o mesmo ponto em que ele estava, por alguns segundos, mesmo enquanto ele ergue as sobrancelhas e lentamente volta a caminhar. Quando finalmente alcança o vale, agarra uma espécie de ferramenta de trabalho, um cabo longo de madeira escura e uma haste de metal pendurada, e caminha em direção a um grupo de trabalhadores.
— Sander. — Meus passos hesitam por um segundo, mas me dou por vencida e corro atrás dele. — Espera — grito. — Não podemos ficar aqui. Nós precisamos voltar para Tibbutz!
Quando ele se volta para mim, seus passos não desaceleram e ele caminha de costas, com a ferramenta firme em sua mão esquerda.
— Eu não. Eu e você somos totalmente diferentes, esqueceu?
Cruzo os braços, decidindo se protesto, grito, negocio, xingo ou imploro. Mas, quando abro a boca, Sander já está mais adiante conversando com um rapaz muito bronzeado com uma bandana encardida enrolada na cabeça. O rapaz olha para mim e para o Kravz, alternadamente, e gesticula, apontando para diversas direções, dizendo algo que não posso compreender de onde estou.
— O que foi? — pergunto, assim que Sander vem caminhando de volta com passos pesados na minha direção.
Sander apoia a ferramenta no chão e as mãos na ponta do cabo. Nessa posição, me lembra um dos sábios da vila em que nasci, que sempre se apoiava sobre um cajado. Exceto que Sander não tem a pele escura nem uma barba acinzentada comprida e nem é careca. E certamente suas costelas não saltam salientes num tronco subnutrido e maltratado.
Mas, ao menos, esse olhar... Conhecedor. Exausto. Penetrante. Desafiador.
— Sente-se, fuja, xingue ou trabalhe. Faça o que quiser — ele diz. — Não sou sua babá, nem seu treinador.— Há uma pontada na última palavra, como uma indireta. — Mas, estamos há mais de vinte e quatro horas sem nos alimentar nem dormir, então eu recomendo que você faça por merecer para ter o que comer esta noite. Você tem o amanhã para qualquer plano maluco que tiver em mente.
Permaneço em silêncio. Não tenho muita alternativa. Não faço ideia de como sair daqui e meu estômago já vem me dizendo que vou mesmo precisar de combustível em algum momento. Mas o tempo é importante também. Será que há um amanhã para Tinker? Será que Sander sequer se importa?
Ele estica o braço e estende a ferramenta na minha direção. Caminho a passos largos e a seguro com força para tomá-la, demonstrando minha decisão. Ele não a solta, no entanto, e, enquanto ficamos nesse embate por uns instantes, ele olha bem nos meus olhos. Mas não faço ideia do que esteja tentando comunicar.
Se é que está tentando comunicar algo e não apenas me provocar, como tem feito desde que nos conhecemos.
— Que eles permitam ovelhinhas em Tibbutz é novidade para mim— foi o que ele me disse assim que me viu no meu primeiro dia em Tibbutz, antes mesmo que eu falasse qualquer coisa.
Ele tinha aquele olhar malicioso, me sondando de cima a baixo, as sobrancelhas erguidas e o mesmo sorriso cínico que eu veria quase permanentemente estampado nesse rosto.
Ele e Simson se entreolharam e saíram, me deixando sozinha, no meio da sala, com apenas o pacote de boas-vindas de Tibbutz nas mãos — contendo meus uniformes e alguns itens de higiene — e Sieger para me apresentar a moradia, com o jeito excessivamente entusiasmado que tem.
Eu soube naquele instante, sem que ninguém me dissesse, o quão pretensioso, estúpido e preconceituoso Sander Kravz é.
Mas eu mostraria para ele quem é a ovelhinha nessa fazenda.
Muito embora — eu relembre, a dor recobrando lágrimas aos meus olhos — ele já tenha me mostrado, da pior forma, quem é o lobo.
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