24
Fico paralisada, observando a moça que tentou salvar minha vida e do Sander, a mulher com quem ele demonstra tanta confiança e estima, uma pessoa capaz de admitir assassinato de uma criança sem sequer pestanejar.
Quase não consigo mais ouvir os tiros lá fora e não sei dizer se é porque estão se tornando mais distantes ou se estou entrando num estado catatônico.
— Eu o matei. Matei meu filho. Matei meu bebê. — Ela balança a cabeça, o rosto impassível e sem lágrimas, confirmando mais uma vez o ato, como se, talvez, eu tivesse dúvidas em relação ao que significa cancelar alguém.
— Bem... — É tudo que consigo pronunciar, de início, engolindo em seco. Tente superar essa, Hadassa. — Imagino que você esteja no lugar certo, então.
— Ao menos, estou bem acompanhada. — Ela volta a sorrir e encara Kravz com olhos brilhantes. — Era para ser um exílio, mas acho que encontrei uma família.
— Emocionante — replico, sarcasticamente. — Uma família de marginais.
Sander me fuzila com os olhos, o rosto repentinamente vermelho.
— Somos, não somos? — ela responde, em nada afetada por meu tom irônico. — Uma família de marginais. Gostei disso. — Seu sorriso se torna ainda mais amplo. — Bem-vinda à família!
Hesito brevemente.
— Obrigada... — O agradecimento sai com um gosto amargo e desconcertante.
Sander continua com a expressão furiosa, os olhos fixados em meu rosto, enquanto seus dedos se entrelaçam com o da moça.
É até um alívio que ele me odeie. Facilita bastante as coisas para mim.
— Pode demorar algumas horas até que se vão — ela diz, seus olhos tornando-se distantes, e me recobrando a atenção aos tiros contínuos.
— Por que estão atirando? — questiono, enquanto a moça solta a mão de Sander e se senta no chão.
Não resisto e me acomodo da mesma forma também. Sander faz o mesmo.
Ela dá de ombros.
— Nunca parei para perguntar.
Os dois pombinhos riem juntos, embora não haja divertimento algum nos olhos do rapaz.
— Então, Naomi... — Volto a pronunciar o nome com exagero. — Já que estamos todos sentados aqui como uma linda família feliz, você não quer parar para explicar por que você acha legítimo assassinar membros da sua família?
Ela pisca algumas vezes, arriscando um pequeno sorriso, como se decidisse se estou tentando ser engraçada ou se valeria a pena se sentir ofendida. Eu me sinto forte por atacá-la. Eu me sinto uma verdadeira defensora das crianças assassinadas.
— Eu não suponho que você compreenderia, mas quando eu era mais jovem, eu era uma pessoa diferente da que sou hoje.
— Por que eu não compreenderia isso? — Ergo uma sobrancelha.
— Porque alguém que sabe o que é cometer erros e se arrepender não pode ser tão incisiva e dura quanto você.
Não há tom de injúria em sua voz. Parece absolutamente sincera e isso me enerva. Desvio o olhar para as minhas próprias mãos, os punhos fechados diante de mim, e não respondo. Já cometi mais erros do que gostaria de admitir. Mas matar uma criança? Não, não se compara. Ela nem deveria tentar se colocar no mesmo nível.
— Chamar um assassinato de um "erro" é o pior eufemismo já inventado. Colocar o uniforme de descanso no lugar do uniforme de trabalho é um erro. Matar o próprio filho? — Balanço a cabeça, com um olhar misto de pena e revolta.
— Eu concordo — ela diz. — Absolutamente.
— E mesmo assim você o fez.
— Você não faz ideia do que está falando — Sander interrompe com a voz grave e agressiva. — Você não faz ideia de como as coisas são por aqui.
Dou de ombros e ergo o queixo, como costumo fazer quando estou me sentindo intimidada ou acuada. São dois contra um. Mas me recuso a recuar.
— Por favor, me esclareçam então. — Contraio as sobrancelhas e estico meus lábios numa reta.
Isso não é um pedido. É um desafio.
— Como tudo aconteceu, é uma longa história... — Naomi começa e seus olhos encontram o de Sander, pedindo apoio. — Mas, o que importa é que quando Efron nasceu, eu estava completamente sozinha, lutando para cuidar dele, ao mesmo tempo tentando manter as horas de trabalho. Eu já tinha passado os últimos meses sem poder dar tudo de mim na Ópera e isso não seria tolerado por muito mais tempo.
— Certo — respondo, tentando comunicar com isso um "ah, bom" irônico. "Contanto que seja para poder trabalhar, pode matar seu filho".
— Você não precisa, Naomi — Sander intervém mais uma vez.
— Você já não dorme mais, não vive — ela continua, ignorando a obstrução. — Tudo de você é consumido por essa pequena criatura chorosa. E dos outros só recebemos olhares enviesados, comentários condescendentes, rejeição. Como se todos enxergassem, menos você, que o seu sofrimento é escolha sua. Obra sua.
— Você realmente acha que essas coisas justificam matar um bebê?
— Não, não justificam — ela responde, apressadamente. — Só a maneira como tudo é apresentado... Eles diziam, com razão, que meu bebê sequer teria consciência do que estava acontecendo. Que insistir naquele sonho bobo de ser mãe era egoísmo e um contagio do sofrimento. E o cancelamento... Bastaria um pequeno procedimento e você poderia ficar livre, como os outros. Por que está desperdiçando seu potencial? Uma pequena decisão e será como se a criaturinha nunca tivesse existido. Como se não houvesse consequências ou sequelas. Como a mera extração de um dente. Como se o procedimento apagasse não só o bebê do planeta, mas da sua alma.
A essa altura, lágrimas começam a despencar dos olhos da mulher e sua fala se torna gradualmente mais fanha e engasgada. Sander acaricia com o polegar as costas da mão que ele segura.
— Ninguém fala que a criança continua viva na sua alma, quer você queira ou não. E que ela nunca mais deixará de atormentá-la. E que você passará o resto da sua existência implorando à criaturinha por perdão, incerta se ela sequer é capaz de ouvi-la ou, mesmo que a ouça, se um dia da eternidade seria capaz de perdoá-la por isso.
Reluto em me deixar compadecer diante da demonstração dramática. De alguma forma, tentar entender ou aceitar esse suposto arrependimento me faria me sentir pequena. Quer dizer, porque se os assassinos de criança não são monstros, isso quer dizer que não são assim tão diferentes de mim. Que estamos, de fato, num mesmo nível.
Que de alguma forma é justificável ou perdoável o que querem fazer à Tinker. E não consigo imaginar isso.
— Então você foi até a Cúpula, disse que queria cancelar seu filho e no momento que o fizeram você se arrependeu, é isso? Por isso está aqui?
— Eles o colocaram numa espécie de câmara hiperbárica. Disseram que estava dormindo tranquilamente. Que não sentiria dor ou sequer tomaria ciência de sua transição. Não faço ideia se é verdade ou não. Se, de fato, ele não sofreu. O que os olhos não veem...
— É mais fácil de matar — completo.
— Exato — ela concorda, um pouco mais controlada. — Só sei que, horas mais tarde, quando me disseram que o procedimento estava concluído, confesso que só senti... alívio. Puro alívio. Não havia culpa ou lamento. Eu poderia descansar e me concentrar nas coisas que realmente importam. Eu era apenas mais uma entre milhares de mulheres que tomaram a decisão que precisavam para viverem vidas emancipadas e livres.
Meu estômago se revolve de nojo e luto e horror diante dessa imagem mental. Seria possível? Seria possível que pessoas não-monstruosas, não-psicopatas, em pleno exercício de suas atividades mentais seriam capazes de fazer algo assim sem sentir ao menos culpa?
— O que mudou então? — pergunto, ainda não plenamente convencida.
Ela suspira, com um sorriso amargo.
— Essa é uma ferida que eu gostaria que ninguém mais tivesse que carregar. Porque em algum momento, o estupor passa, a realidade a alcança. As lembranças. Anos depois, no dia que seria seu aniversário ou se deparando com uma roupinha minúscula e fofa que nunca será capaz de usar.
Sei bem o que quer dizer. Até hoje, vez por outra, ainda me sinto assim, surpreendida pelo luto, em relação à minha irmã.
— Foi só aí que tomei minha decisão. Precisava me assegurar de que todas as mulheres que acham este o caminho mais fácil soubessem ao menos que estão escolhendo uma estrada de luto e tormento infinito.
— E aí você se tornou...
— Imperdoável. Para sempre — ela afirma com convicção. — Ainda bem — e sorri, puxando o braço de Sander para mais perto de si.
Ele não retribui o sorriso. Em vez disso, continua a me encarar com aquele olhar que sei que significa que se ele tivesse a oportunidade de me matar, ele o faria. Ergo o queixo novamente e me recuso a desviar o olhar. Não vou me deixar intimidar, nem vou sofrer com sua desaprovação. Drama é algo feito sob medida para tibbutzinos mimados.
Só o que me interessa é sair daqui, salvar Tinker e dar um jeito de sobreviver. Depois disso, é cada um por si, Kravz, continuo, tentando comunicar meus pensamentos com a expressão facial ou telepaticamente ou sei lá.
— Foi boa a conversa, mas acho que já vou indo — Naomi se levanta de repente e sacode o pó dos trajes. Só aí que percebo que não há mais sons de tiros. — Foi um prazer conhecê-la — ela sorri um sorriso tímido e acena com a mão.
Sander se coloca de pé também e ela fica na pontinha dos pés para dar-lhe um beijo na bochecha de despedida.
Fico ainda um tempo sentada. Por mais estúpido que pareça, quero mostrar que sou alguém que não faz as coisas só porque os outros fazem. Não calculei, no entanto, que isso significa que assim que a moça se vai, fico a sós com Sander na caverna.
Dando-lhe, é claro, oportunidade o suficiente para executar a vingança que deseja em mim.
— Quem dera você fosse logo deportada — o rapaz resmunga, assim que estamos sozinhos.
Reviro os olhos e, lentamente, fico de pé também. "Em suma, um bom rapaz". Queria ver o que Doutor Salz diria agora diante do preconceito com os estrangeiros se manifestando de forma tão óbvia.
— Ah, é? Só porque não nasci aqui eu devo ser deportada? De alguma forma, isso faz de mim menos digna?
— Não, porque você é grosseira, ignorante e ingrata. — Ele dá de ombros. — Sua nacionalidade não tem nada a ver com isso — é a última coisa que diz antes de me dar as costas e me deixar completamente sozinha na escuridão.
Nota da Noemi:
Ai, Sander 😳
Estou tão feliz que vocês estão lendo e empolgados com a história! 💕 ainda tem coisas pra acontecer....
Divulguem pros amigos 😁🙏❤️
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