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Correr freneticamente é quase tudo o que tenho feito desde que me lembro. Não sei por quê é nisso que penso, enquanto as balas passam zunindo, atingindo troncos de árvore, poças de barro e perfurando folhagem, por todos os lados ao nosso redor. Talvez eu tenha aprendido a correr mesmo antes de andar. Não havia alternativa em Arabah. E parte de mim realmente acreditava que tudo isso chegaria ao fim junto com o meu treinamento em Tibbutz.

Exceto que meu treinamento nunca chegou ao fim. E, pelo jeito, jamais chegará.

Meu coração bate contra o peito com tanta força que sinto a musculatura da região doer e sei imediatamente que essa dor perdurará por muito tempo. Como aquelas dores que a gente sente por dias depois de fazer um exercício intenso.

Sander corre bem à minha frente, como alguém que está acostumado a fazer isso, até mesmo mais do que eu, ou talvez como alguém que conhece melhor o lugar. Algumas vezes piso em falso, por medo de tomar um caminho sem saída e acabar me perdendo dele. Talvez uma decisão errada seja o fim para um de nós dois.

Bem, confesso que estou mais preocupada comigo mesma.

De alguma maneira, Sander percebe. Estamos a alguns metros de uma bifurcação dentro da floresta e eu começo a me perguntar o que raios devo fazer quando chegarmos lá, em que direção devo pré-programar meus músculos para me carregar, quando ele envolve o meu punho com os dedos e me puxa contra si em um solavanco. Esbarro em seu peito com tanta força que preciso de alguns segundos para me recompor. Constrangedores segundos em que nossos olhos se encontram e não acham maneira de se desviar um do outro. Os mesmos segundos que não temos.

E lembramo-nos disso quando algo estoura bem ao pé do meu ouvido.

Mais perto do que tenho lembrança de algum dia ter experimentado.

Tão próximo que dói.

Sou envolvida por um zumbido tão alto que me impossibilita de ouvir qualquer outra coisa. Não consigo ter a percepção de qualquer coisa ao meu redor além dos solavancos de Sander em meus ombros. A boca dele se move caricatamente, os olhos assustados enquanto me puxa para sairmos dali.

Caio em mim, de repente, e começo a me mover na direção para qual o Kravz me conduz. Por alguns segundos, tenho a sensação de que tudo se move lentamente, como se estivéssemos debaixo d'água. E, logo a seguir, o ritmo se recompõe ainda mais acelerado para compensar.

Em desespero, sem fôlego, atravessamos a mata densa e, de repente, estamos correndo paralelamente rentes a uma colina, onde não há outra opção senão prosseguir em linha reta. Sempre para frente, mesmo conscientes de que a trilha coberta de relva em que estamos uma hora chegará ao fim.

Isso é tudo o que temos. Corrermos ou nos entregar.

Os sons de balas cortantes nos levam a curvar nossos corpos enquanto aceleramos, conforme minha esperança de sair viva dessa se torna cada vez menor. Sander para de repente e eu tento freiar bruscamente, deslizando meus pés pelo barro.

— Escute — ouço-o sibilar em um fiapo de voz sob o zumbido.

Sander olha ao redor como se procurasse alguma coisa.

— O QUÊ? — pergunto, e ele cobre minha boca em desespero, o olhar sério ainda varrendo o ambiente.

— Silêncio! Enlouqueceu de vez? — Compreendo o que os movimentos de seus lábios estão dizendo, embora ainda não consiga ouvir muito do que diz.

Só assim me dou conta de que devo estar gritando. Esforço-me para controlar a voz:

— O que houve? Por que estamos parados aqui?

Sander se sobressalta.

"Ouça", é o que parece comunicar ao depositar o indicador atrás do lóbulo de uma orelha.

Concentro-me, com esforço, e um som distante ecoa da nossa direita.

Viramos nossas cabeças. Sander segura em meus braços, os dedos firmes em minha pele e, em passos lentos, empurra-me de costas contra o tronco robusto de uma árvore qualquer.

Outro assobio.

— Um pássaro? — sussurro.

— Não é um pássaro — ele afirma, apertando os olhos.

Imito-o, semicerrando os meus, na tentativa de enxergar alguma coisa. Podemos ouvir a aproximação do transporte, seu chiado agudo cada vez mais próximo, cada vez mais dominante. Dadas as minhas atuais condições auditivas, julgo que a situação esteja ainda mais preocupante do que posso calcular.

É quando eu vejo. Um brilho frio e muito discreto a reluzir entre as Thunbergias da colina.

— Venha — grito, correndo diretamente na direção da enorme parede ao nosso lado.

— Mas o que você... — Sander começa a perguntar, mas não fico perto dele por tempo o bastante para que conclua a sentença.

Impulsiono-me para frente com força, sentindo cada músculo do meu corpo lacerar-se quando salto entre as folhas e acabo por tombar por cima de um chão de terra.

Bem no meio de um par de pés descalços.

* * *

Minha impulsividade sempre vem aliada a consequências. Dessa vez, algumas delas se manifestam na forma da dor instantânea e dos hematomas que em breve surgirão. O piso de barro não foi gentil com minha queda. Mas isso não é assim tão ruim. Ao menos, não comparado com o risco a que me submeti saltando na direção do desconhecido e pousando diante de um estranho qualquer. Então, prontamente, salto para trás, ignorando os espasmos musculares, e desfiro uma rasteira na pessoa diante de mim. Ela tomba de bunda no chão duro, enquanto me posiciono com braços erguidos e punhos cerrados.

— Pare — a mulher de aparência maltrapilha pronuncia num tom pacificador e trêmulo, erguendo ambas as mãos, uma das quais empunha um pequeno pedaço de material reflexivo. — Eu só queria ajudar.

— Quem diabos é você? — pergunto defensivamente, sondando com os olhos o ambiente ao redor, analisando perigos em potencial, saídas e espaço para movimentação. É uma gruta minúscula, sem qualquer outra saída, senão a que estamos.

— Naomi — Sander diz, esbaforido, assim que atravessa a cortina de plantas logo atrás de mim. — Droga, Hadassa. — Ele toma a dianteira e estende a mão para ajudar a moça, que se levanta com dificuldade.

— Você a conhece? — questiono, alternando repetidamente entre olhar para a estranha e para o rapaz.

— Não leve isso em consideração; ela tem sérios problemas mentais — o rapaz continua, dirigindo-se a mulher e aparentemente se referindo a mim.

Expiro aliviada e deixo meus braços despencarem ao meu lado.

Possivelmente eu deveria estar ofendida com o comentário, mas a essa altura eu apenas o escuto como sinal de um certo nível de confiança e intimidade entre os dois. Quase me sinto mal pelo golpe, mas recordo que o Destino nos concedeu a suspeita como uma dádiva. Às vezes atacar primeiro e fazer perguntas depois é o necessário para sobreviver. E é provavelmente um dos motivos pelo qual estou viva até hoje.

— Sander, Sander. — Ela abre um sorriso e belisca de leve a bochecha do rapaz, como se fosse um garotinho. — Isso são modos?

Kravz dá de ombros e olha para o chão, sorrindo de um jeito levado. Agora, a familiaridade me espeta de uma maneira incômoda. Como se pertencessem a um grupo exclusivo do qual jamais farei parte. Para variar.

Enquanto os tiros ainda ressoam lá fora, eu os analiso para tentar desvendar que tipo de relacionamento possuem. Comparado com nós dois, ela tem baixa estatura. As mechas do cabelo castanho caem sobre os ombros num estado desordenado. Se a tal de Naomi for uma tibbutzina legítima, o que presumo que seja pelo que sobrou de seus trajes, deduzo que tenha por volta dos seus vinte anos, já que as pessoas por aqui envelhecem mais tarde. É jovem demais para que a conexão seja maternal, mas não consigo ver algum tipo de envolvimento amoroso entre os dois.

Ela nem é tão bonita assim.

— Quem é você? — questiono, sem um pingo da simpatia que se costuma reservar ao conhecer uma nova amiga.

Como resposta, os dois se entreolham com um olhar divertido, como quem troca confidências, e não faço ideia do que estão comunicando um ao outro. Sander a envolve com um braço, pressionando a cabeça da mulher contra seu peito, enquanto eles se voltam para mim.

— Desculpe. — Ela ri sem motivo aparente. — Naomi — diz e estende a mão para me cumprimentar.

Não retribuo o gesto.

— Essa parte eu entendi — respondo. — Algo mais que eu deva saber a seu respeito, Naomi? — Destaco o nome, pronunciando cada sílaba com exagero.

O rapaz se volta para ela, tocando em seu ombro, como quem revê uma amiga muito antiga. É estranha a atmosfera casual quando os disparos da máquina assassina lá fora não param.

— Mas... o que você está fazendo aqui desse lado? É longe do seu quadrante de trabalho, não é? — Sander pergunta, parecendo animado e ignorando totalmente minha pergunta ou presença.

— Ah. — Ela morde o lábio inferior. — Acho que me perdi.

Imediatamente a mulher desvia o olhar de forma desconfortável para mim e, logo em seguida, para o chão. O rapaz gira o pescoço na minha direção, como se, repentinamente, voltasse a se dar conta de que estou aqui.

— Novata — Sander sussurra, apontando com um polegar para mim. — Não acho que vá durar muito.

— Você está falando de mim? — pergunto, começando a ficar realmente irritada.

— Cidadã? — ela pergunta, não mais desviando o olhar e erguendo uma sobrancelha inquisitiva para mim.

Por um instante me pergunto há quantos séculos esta mulher está exilada para não saber que todos os cidadãos  de Tibbutz têm braceletes. Automaticamente desvio o olhar para o pulso de Sander, a fim de apontar o erro, e é aí que me dou conta de algo.

No lugar do aparato resta apenas uma tira de pele clara que contrasta com o resto do antebraço bronzeado.

— Candidata. — O rapaz dá de ombros. — Ou era, certo?

Naomi assente com a cabeça, algumas vezes, me encarando com um ar de compreensão.

— Todos os tibbutzinos são babacas ou só os imperdoáveis?

Minha murmuração é parcialmente direcionada a mim mesma, mas em parte para tentar chamar a atenção deles.

— Ei, por acaso eles ainda extraditam imigrantes imperdoáveis? — Sander pergunta, me ignorando mais uma vez, soando de repente extremamente entusiasmado e esperançoso.

— Depende do quão imperdoável — ela diz, sorrindo.  — O quão imperdoável você é, garota? — A mulher finalmente comunica-se diretamente comigo.

Dou uma baforada incrédula e reviro os olhos. Agora eles querem falar comigo?

Mas, então, coloco as mãos na cintura e decido que vale a pena responder a isso.

— Eu invadi um hospital para impedir que uma criança fosse cancelada por um bando de assassinos loucos. — Ergo o queixo para demonstrar minha total falta de arrependimento pelo que fiz. Tenho ao menos esse motivo de orgulho. — E você? O que a faz impossível de perdoar? — pergunto em desafio, balançando a cabeça a fim de jogar umas mechas do meu cabelo para trás do ombro.

Vê se supera essa, mulher das cavernas.

— Se me perguntar o que me fez parar aqui, darei a você uma resposta. — Seu sorriso esmorece lentamente.

De repente, com uma mão ela encolhe os braços contra o corpo num ato de defesa ou... vergonha. Seus pés descalços se remexem inquietos sobre o piso rochoso.

— Mas se quer saber porque sou, de fato, imperdoável, meu depoimento será outro. O espectro oposto do que me trouxe até aqui.

Sander pigarreia e dá alguns passos para trás, o constrangimento evidente no rosto de ambos. Algo me diz que estou pisando num terreno frágil, sensível, um espaço para o qual não fui convidada.

E, sinceramente, não estou nem aí.

— Vamos brincar de charadas ou você vai abrir logo o jogo?

Ela me encara, piscando os olhos como num espasmo, sem fechá-los completamente.

— O bando de assassinos loucos? — Ela ergue ambas as sobrancelhas, antes de prosseguir. — Já fiz parte desse time.

A confissão sai aos trambolhões, numa cadência urgente, quase como se escapasse de seus lábios antes que tivesse uma oportunidade para se arrepender de pronunciá-la.

— Você não precisa responder — Sander murmura entredentes, erguendo um braço ao redor da moça de forma protetora, diante do meu rosto atônito. — Você não deve nada a ninguém.

— A criança que cancelei? — Ela continua, dando um passo a frente, comprimindo o braço que a envolve, quase como se certificasse de que eu seja capaz de ouví-la. — Era meu filho.

Nota da Noemi:
Bem, aqui na Alemanha já passou da meia-noite, o que faz de hoje tecnicamente domingo, então postei mais um capítulo 😅 (e vocês estavam pedindo mais de novo) ❤️❤️❤️❤️🤗🤗🤗

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