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— Bem-vindos à Tibbutz — uma voz feminina agradável ressoa no interior do transporte, enquanto ele desliza a alguns palmos do chão sobre uma faixa metálica que orienta o trajeto. — Onde cada cidadão tem o direito inalienável de ser feliz.

Agora mesmo estou assustada, empolgada, traumatizada e curiosa demais para conseguir adormecer, por mais exausta que esteja.

A ferida mais funda sobre a minha costela ainda arde. Enquanto isso, uma miríade de galhos e folhagens passa como um borrão por meu campo de visão. Dos dois lados da estrada há uma densa floresta, daquelas que só se ouve falar em contos lendários. Há árvores de todos os tamanhos, cores e tipos de folhagem. Ruídos agudos e graves, lentos e urgentes, nos cercam, como o canto de centenas de espécies de aves misturado ao zumbido de insetos e comunicados guturais de outros animais. O terreno irregular da trilha é de um barro vermelho, na maior parte úmido e enlameado. O transporte, no entanto, se move sem emitir som.

Sinto nos meus ouvidos a elevação da altitude e, ao longo do percurso, a vegetação se transforma lentamente. Os terrenos vão se tornando mais abertos, as árvores mais esparsas e menos vívidas. Repentinamente, nossa subida fica mais íngreme, mas o veículo sequer hesita diante da mudança.

É no momento do inevitável solavanco, que emito, em toda a viagem, o primeiro som. Não chega a ser um grito. Aprendi diante de possível perigo a ser contida nas minhas reações. É mais uma espécie de suspiro surpreendido. Mas é o suficiente para que o garoto ao meu lado dirija seu olhar para mim.

Também pela primeira vez na viagem.

Não consigo me acostumar com a sua presença. Deveria, já que provavelmente iremos passar muito tempo juntos. Treinando, o que quer que seja que isso implique. Mas sua aparência é tão incomum que, sem motivos racionais, faz com que eu me sinta ameaçada. Não há motivos reais para inquietação. Exceto que, ao se concentrarem em mim, seus olhos da cor do céu parecem enxergar mais do que eu exporia a um estranho.

— Você não fala muito — meu treinador diz, por fim, sem tirar os olhos de mim.

O veículo dá mais um solavanco, mudando o ângulo do declive, e minha arfada assustada novamente me denuncia. Um canto do lábio do rapaz se ergue, por apenas um instante, tão rapidamente que me pergunto se realmente vi o meio-sorriso em seu rosto sério.

— Você também não — respondo, engolindo em seco.

Minha voz sai mais rouca do que eu esperava.

Ele assente com a cabeça e volta o olhar para o exterior do veículo. Faço o mesmo. São as últimas palavras que trocamos pelo que me parecem horas.

Odeio a sensação de estupor que cada vez mais me domina. Minha cabeça parece leve, quase desconectada do meu corpo, e minha vista dança e ondula antes de recuperar o foco ante um comando consciente meu. É impressão minha ou estamos dando voltas?

Cada vez mais e mais e mais alto...

Nós costumávamos escalar montanhas em Arabah, mas só quando ouvíamos os estouros das armas do Enxame. Não podíamos levar muitas coisas, apenas o que conseguíamos carregar em nosso próprio corpo. O que não é muito quando seus braços estão ocupados em não deixá-la despencar precipício abaixo. Motivação era trivial. Quando sua vida depende disso, você aprende a confiar que seu corpo é capaz de carregá-la muito além do que os tremores musculares e as dores a fariam acreditar.

Às vezes o que sentimos não passa de mentiras doces e bem-intencionadas. O instinto maternal do seu corpo de protegê-la e acariciá-la com conforto.

Meus olhos não se abrem enquanto sinto os solavancos do veículo, e em vislumbres repetitivos das montanhas, vejo uma garotinha magricela, com grandes olhos temerosos, que às vezes não alcançava o próximo ponto de apoio na escalada. Ela se parece tanto comigo. Às vezes, em alguns sonhos, a garotinha sou eu mesma. Outras vezes, no entanto, apenas a observo. Então, uma pessoa mais velha, com muito cuidado, a apanha e a carrega sobre os ombros.

Sou capaz de sentir com clareza, como se acontecesse agora, a forma que meus bracinhos esticados se apertavam ao redor daquele pescoço. Alternativamente, o peso dos bracinhos ossudos estavam sobre os meus ombros. A forma que seus cotovelos pressionavam contra minha clavícula é tão real quanto dolorosa.

Mais um sacolejar e, tomando uma postura de alerta, volto a enxergar a paisagem ao meu redor.

Não creio que tenha realmente adormecido. Talvez tenha me perdido em pensamentos. Só não consigo me recordar sobre o quê.

— Por que há tantos lugares nesse transporte se só somos dois? — pergunto, imediatamente, como se estivera refletindo sobre esse fato durante todo o tempo.

Raah parece distante e distraído por um momento antes de responder:

— Esse ano tivemos consideravelmente menos imigrantes do que o normal. Geralmente, há pelo menos três ou quatro candidatos por província.

— Eu não entendo — contraponho. — Quer dizer, houve um ataque inesperado do Enxame pouco antes da Travessia e muitos morreram antes mesmo de entrarmos nos barcos. — Empurro as memórias associadas a esse momento para longe. — Mas eu vi um grupo bem maior do que esse atravessar a fronteira. A última vez que lembro de ter verificado foi no ponto de checagem. Depois disso, estava menos da metade conosco.

Meu treinador ajusta a postura no assento e demora uns dez segundos para esboçar uma resposta.

— Eu vou me informar a respeito...

Assinto com a cabeça. Por alguns momentos, eu me pergunto se deveria aproveitar e pedir informações a respeito de Lean, quando ele se adianta:

— Mas, diga-me, o que está achando de Tibbutz até agora? Sempre tenho curiosidade a respeito das impressões de pessoas de fora.

— É lindo, só...

Hesito, incerta do quão sincera devo ser. Aprendi, nos meus estudos, que a cultura de Tibbutz é extremamente direta, então teoricamente sei que não haveria problema algum em dizer a verdade. Mas algo da educação que se adquire pela convivência de toda uma vida fica tão entrelaçada na forma de agir, que é quase impossível fugir dela, por mais que se convença racionalmente do contrário.

— O quê? — ele pergunta.

— Nada.

— Por favor, fale.

Embora o comando tenha vindo acompanhado de uma expressão de cortesia, novamente soa mais como uma ordem do que como um pedido e estou começando a achar que essa será a forma mais comum dele se dirigir a mim.

— Achei que seríamos melhor recebidos.

— Melhor? — A expressão no rosto do rapaz é de genuína surpresa. — Como?

— Ah, não sei. Com tapinhas nas costas ou uma festa, talvez?

— Interessante. — Ele se recosta no assento e coloca uma mão sob o queixo.

— Por que é interessante?

— Nada. Só é... irônico. É uma longa história — diz num tom firme que me comunica que o assunto está encerrado. — Mas me conte mais sobre você: por que esperava uma festa? Fazem muita festa em...

— ...Arabah? — completo. — Não exatamente. Não sei. Acho que... bem, acho que porque a maior parte de nós se preparou a vida toda para chegar até aqui, sabe? Tanto tempo com preparo físico e estudos, aprendendo o idioma, a cultura etc. E aí a gente cruza uma linha de chegada tão difícil e importante... Achei que receberíamos pelo menos um "parabéns".

— Aprendendo o idioma? — O rapaz arregala os olhos, parecendo perdido. — Quer dizer que Weltlingo não é sua primeira língua?

Não consigo conter a dose inevitável de satisfação ao perceber que ele achou meu Weltlingo bom o suficiente para me confundir com uma nativa. O esforço para torná-lo fluente certamente valeu a pena, nem que seja por esse breve momento de orgulho.

— Não — anuncio, com o queixo erguido.

— Quer dizer, notei um leve sotaque, é claro, mas... eles não falam Weltlingo em...

— Arabah? — completo novamente. — Sim e não. Quer dizer, sim, se tornou o idioma oficial uns cinquenta anos antes da Guerra, mas a maior parte dos povoados tradicionais continuou com seus próprios dialetos. Só se falava mais nos meios acadêmicos.

— E a Guerra deve ter interrompido até isso...

Silencio e olho para o trajeto à frente, lutando para não deixar minha caixinha mental ser aberta. Eu tinha apenas sete anos, mas as memórias estavam tão impregnadas em mim que eu seria capaz de esquecer meu próprio nome, mas não daqueles dias.

As explosões. O pânico. Os gritos. Os mortos. A fuga que nunca mais deixou de ser parte da minha vida. Numa manhã, o mundo deixara para sempre de ser como eu o conhecia. Não que eu vivesse uma vida perfeita antes. Mesmo sendo parte da elite, há séculos nem Arabah, nem nenhum outro lugar do mundo, ofereciam qualquer tipo de segurança ou conforto. Doutra forma, Tibbutz sequer precisaria existir. Mas a Guerra... A Guerra fez do mundo um lugar inóspito. A sobrevivência que outrora era difícil, passara a ser... impossível?

Não só isso.

Indesejada.

A vida lá fora é o inferno. E a única coisa que nos impulsionava a continuar vivos era a esperança de, talvez, um dia escapar daquilo.

— É ali — o rapaz aponta para a distância.

Cercados de montanhas de picos nevados, num vale profundo, imediatamente identifico um lago, campos e mais campos cobertos de plantações variadas e milhares de pequenas estruturas que logo reconheço como edificações humanas. Moradias, talvez?

Toda a superfície reluz com tons dourados do sol poente. Se isso é uma cidade é a cidade mais maravilhosa que já vi na vida.

— E-esta que é... Laguna?

— À direita observamos a província de Laguna — a voz metálica feminina retorna imediatamente, ressoando muito animada no ar, quase como resposta à minha pergunta. — Com pouco menos de dezesseis mil habitantes, Laguna é uma das províncias mais importantes de Tibbutz. Além de ser o motor político da nossa nação e o berço de célebres filósofos e artistas, Laguna é um excelente refúgio de férias para famílias que buscam tranquilidade aliada a uma programação de entretenimento diversificada.

Um suspiro sai repentino e com força das minhas narinas e garganta. Se eu mesma não soubesse do meu estado interior verdadeiro, eu quase pensaria que se tratava de uma...

— O que é engraçado? — Raah questiona, um tanto severo, aparentemente também achando que acabei de rir.

— Não, eu não... eu...

Ele me encara com as sobrancelhas franzidas.

— Só estou lentamente me dando conta de que... estou... — Minha voz falha e sai um tanto desafinada. — Estou em Tibbutz. Literalmente em Tibbutz. Eu. Quer dizer... — Meus olhos começam a embaciar e pisco repetidas vezes para secar as lágrimas intrusas, embora minha voz embargada denuncie o descontrole emocional de qualquer forma. — Existe mesmo. Não era só uma lenda que... — Dou uma fungada suspeita. — Que nos contavam só para termos esperança. Tibbutz... realmente... existe.

Inspiro e expiro diversas vezes, tentando manter as emoções sob controle. Raah solta um suspiro semelhante e eu me pergunto se ele está rindo de mim.

Considero fortemente fazer o questionamento em voz alta, mas um solavanco repentino me provoca um sobressalto antes que me dê conta de que paramos de repente. Ele salta do transporte com facilidade e, por cima dos ombros, volta o rosto para mim.

— Preciso me aliviar — diz com naturalidade, e faço uma careta em resposta.

Informação demais? Ou talvez eu não tenha considerado que a personificação da perfeição também possua necessidades básicas como outros seres humanos normais.

Pelo divertimento nos olhos de Raah, acho que minha expressão mal disfarçada não passou despercebida.

— Por que não aproveita para fazer o mesmo? — pergunta. — Ainda temos algum caminho a percorrer.

Bem, pelo jeito, ao contrário de mim, Raah não tem a menor dificuldade em imaginar que possuo funções fisiológicas.

Solto os ombros em desânimo e decido que a sugestão dele é prudente e então me apoio sobre minhas mãos a fim de tomar algum impulso necessário para descer. Lanço o corpo para a frente, e quando alcanço o chão preciso dar alguns passos cambaleantes para retomar o equilíbrio. Afasto-me do veículo que paira sobre os trilhos em que deslizava e caminho até um arbusto nas proximidades.

Tento espiar por cima dos ombros a direção que meu treinador vai, só por segurança. A ideia de ficar sozinha numa floresta desconhecida me inquieta. Todos sempre falaram a respeito de como Tibbutz é um país seguro, mas... Não consigo desligar a sensação de iminente perigo tão rápido assim.

Estou prestes a fazer o caminho de volta quando um farfalhar de folhas me faz conter os passos. De pé, de onde estou, posso ver a sombra de Raah se aproximar do nosso transporte. É por isso que meu peito se comprime quando outro som, semelhante ao partir de um galho seco, estala na direção contrária. Viro-me devagar e as batidas no meu peito aceleram à visão de um vulto. Um borrão tão escuro quanto um buraco negro. A imagem concentrando a essência de uma noite profunda e sem estrelas. Como se uma silhueta humana fora recortada do tecido do espaço, e agora tudo que restava era um vácuo. Pisco uma única vez e a sombra desaparece por completo. A coisa toda parece tão irreal que considero que seja efeito do cansaço extremo em uma mente criativa.

De volta ao veículo, eu me acomodo em meu assento, ao lado de um Raah paciente. Estou me sentindo confusa demais para compartilhar com ele a visão que eu mal conseguiria descrever.

— Não precisa ficar constrangida — diz meu companheiro de viagem e o sorriso que ele finalmente esboça esvai qualquer sensação de aflição que a visão entre os arbustos me afligiu.

À imagem da curva naqueles lábios, algo se perturba dentro de mim. Uma sensação simultânea de familiaridade e inquietação. Estou agora mais atenta ao aperto firme de sua mão, ao contrair sutil dos músculos em seu antebraço, os pêlos claros que o cobrem. Atenta aos olhos cuja tonalidade tão irreal torna impossível não encará-lo.

Sacudo a cabeça e tento me concentrar novamente no meu objetivo: sobreviver.

Se há uma coisa que a Natureza nos ensina é a não se deixar iludir pelas aparências. As criaturas mais atraentes são, frequentemente, as mais letais.

* * *

A ausência de novos solavancos me revela que não estamos mais subindo ou descendo e, portanto, devemos estar próximos de Laguna.

O transporte desacelera e freia numa clareira. A faixa metálica que sempre precedeu nosso trajeto se encerra neste exato ponto.

E não há nada além de árvores e penumbra ao nosso redor.

Num movimento ágil, Raah Salz salta do veículo sobre o barro vermelho.

— Levante — comanda.

Meus músculos enrijecidos reclamam quando tento sair da mesma forma que ele. Meus pés atingem o piso com um baque surdo e dolorido.

Ele me dá as costas e começa a andar, me deixando para trás. Dou a volta no veículo e o sigo às pressas.

— Ei — grito, na esperança de que me espere, enquanto tento alcançá-lo. — Ei!

Ele freia bruscamente e se volta para mim.

— O nome é Raah Salz — diz entredentes. — Sou seu treinador. E nada mais.

— Eu entendi essa parte — retruco com o mesmo tom agressivo.

Não sei de onde a coragem vem, mas algo me faz erguer o queixo e cruzar os braços em desafio. Talvez eu esteja começando a ficar irritada com a inconstância do humor do rapaz.

Novamente um canto de sua boca se eleva num sorriso que desvanece tão rapidamente quanto surgiu.

— Beleza — ele responde e estende o braço para a trilha à frente, quase fechada por galhos que a invadem.

— Beleza — digo, atravessando a folhagem úmida com passos firmes, sem me incomodar em afastá-la do meu rosto.

Caminho vários passos às cegas, incerta de onde estou indo, na expectativa de que ele me corrija caso seja a direção errada. Estou começando a ficar com frio e molhada, mas prossigo na escuridão cada vez mais densa.

Numa passada, de repente, estou livre.

Diante de uma multidão.

E, como ante um sinal invisível, o mundo eclode em sons e palmas:

—Bem-vinda — eles gritam e eu não sei para onde olhar.

São tantos.

Eles empunham cartazes com figuras que não compreendo, estendem bandejas com grãos e frutas de todos os tipos, jarras com líquidos de várias cores. Alguém deposita no meu pescoço um colar de flores. Outra pessoa aleatória beija meu rosto. Há centenas de bandeirinhas coloridas e lamparinas penduradas.

Uma menininha com cabelos tão loiros que mais parecem brancos sorri para mim e me estende um girassol. Quando eu o apanho, ela sai correndo e se esconde na multidão.

Sinto quando as mãos pesadas de Raah Salz repousam sobre meu ombro.

— E esse é o seu futuro lar. Espero. E nada mais — ele sussurra em meus ouvidos e ouço o sorriso em sua voz.

O sol ainda está deixando escapar seus últimos raios por trás dos montes, colorindo o céu em lilás, laranja, azul e rosa. Ao fundo, há o som de música de instrumentos que nunca ouvi. Pessoas dançam, outras comem, a maior parte me observa extasiada. Ele passa adiante e, me olhando por cima do ombro, indica com o rosto que devo segui-lo para o meio da festa.

E eu o faço sem hesitação.

Esse rapaz é realmente estranho.

E imprevisível, reflito mais uma vez.

E realmente não sei se gosto disso.

Mas, estranhamente... parte de mim acha que sim.

RECADO DA NOEMI:

Olá, leitores antigos! Olá, leitores novos! Vocês são todos muito bem-vindos e ficamos muito feliz por cada um que está lendo essa história. Para quem não viu o anúncio da republicação de Humano no Insta meu e da Camila, aqui vai o post que a Camila criou (com algumas infos que podem ser interessantes para vocês):


Humano foi aprovado no final do ano passado para ser publicado por uma editora tradicional.
Sonho realizado.
Choramos de alegria.
Reuniões feitas; processo editorial começado, e a editora desistiu.
Acontece, né?
Não sabemos, mas a gente acredita que tudo acontece por um motivo.
Essa história é muito importante para a gente, queremos que seja lida, então decidimos que vamos voltar com ela no Wattpad.
Em breve estará na Amazon e todo o lucro será direcionado para mulheres grávidas e mães de crianças em situação de miséria através da Compassion International.


Esperamos que nos acompanhem até o fim! :)) Abraços com carinho. 

P.s.: Tudo bem se eu postar um capítulo por dia a partir de hoje? :o 

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