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Nunca vi guardas ou soldados ou pessoas armadas em Tibbutz. Mas não sou tão ignorante a ponto de achar que não exista algum sistema de segurança. Precisa ter. Se o pouco de tempo que estou aqui me ensinou alguma coisa é que humanos não são confiáveis em lugar nenhum. Sob nenhuma circunstância.

Serei cautelosa.

Lutei tanto para chegar aqui. Meus pais deram suas vidas por isso. Agora seria a hora de continuar o que começamos e depois desfrutar dos louros da vitória. Viver uma vida confortável, encontrar um parceiro, gerar crianças. Mas, e aí? Até entendo aquilo que o Kravz falou sobre mudar a cultura. Em que tipo de mundo, afinal, quero gerar crianças? Num em que pessoas são descartáveis? O mundo onde seu valor depende da sua integridade física?

Se não se tratasse da vida da garotinha que jurei proteger, eu provavelmente já teria desistido.

Por outro lado, morrer ou ser expulsa também não é algo que me atrai.

Meu plano inicial é extremamente rudimentar: simplesmente invadir o Centro, agarrar Tink e correr como o diabo pra longe dali. E depois? Não faço ideia. Não consegui fazer planos tão distantes. É claro que é a ideia mais estúpida da História da humanidade. Só sei que a Tink não pode morrer porque tive um bloqueio criativo na hora de planejar esse resgate.

Por motivos óbvios, preciso esperar até o anoitecer para agir. E, até lá, meus esforços devem estar concentrados em agir naturalmente para não levantar suspeitas. Com isso em mente, corro diretamente da fábrica de adubos, onde deixei um Kravz sangrando, para o lago, onde estou escalada para trabalhar com um tal de Raah Salz. E nunca detestei tanto a possibilidade de ter de revê-lo.

Nunca gostei de nadar. Nunca gostei da sensação de não ter meus pés firmes na Terra, capaz de me locomover sem resistência para onde eu quiser. Uma coisa são lagos subterrâneos, com a temperatura morna e relaxante, os minerais enriquecedores, a atmosfera misteriosa e os ecos num ambiente fechado. Ou até mesmo nadar para fugir, quando necessário. Mas o povo de Tibbutz é estranho. Eles fazem isso ao ar livre e apenas por diversão. A função do Raah é não permitir que nenhum deles morra enquanto se diverte. É o que sempre faz quando não está ocupado me torturando.

Hoje, excepcionalmente, terá o privilégio de fazer ambos ao mesmo tempo.

Desço com passos curtos um pequeno monte de areia, salpicado de grama e raízes retorcidas, e logo chego na localização onde os Vigias Aquáticos costumam se revezar. É um ponto pantanoso do lago, repleto de plantas e uma água turva lamacenta. Minha grande surpresa é perceber entre dois ramos de arbusto o brilho de uma perfeita teia de aranha. Achei que não haviam aranhas ou insetos em Tibbutz e me reconforta, de alguma forma, ver que mesmo aqui a vida natural se prolifera.

Raah está sentado na areia, com os antebraços apoiados nos joelhos, observando a linha do horizonte. Eu me sento ao lado dele e falo baixinho:

— Estou me apresentando para o serviço.

Ele não olha para mim.

— Está atrasada.

Retenho o impulso de responder "é porque alguém que amo quase morreu essa noite. Sua irmã, lembra?". Em vez disso, suspiro e digo:

— Desculpe.

Afinal, a missão importantíssima de olhar para o nada, na ínfima possibilidade de um tibbutzino quase se afogar, não pode esperar.

— Por que estamos aqui? Quase ninguém vem para esses lados — não resisto ao menos resmungar um pouco.

— É o único local onde existe uma possibilidade que incidentes aconteçam. Tibbutzinos são, em geral, excelentes nadadores. Só, às vezes, se empolgam no trajeto e vêm parar neste extremo distante, onde a água é densa demais para nadar. Tampouco são capazes de enxergar onde pisam e já aconteceu algumas vezes de ficarem presos em alguma rocha, raiz ou tronco. Além do quê, é um dos poucos lugares onde ainda não conseguimos bloquear completamente a vida selvagem peçonhenta.

— Peçonhenta? — pergunto, espantada. — Aqui?

— Não só peçonhenta, como também venenosa. Há todo tipo de criatura perigosa e tóxica nesse lugar.

— Já percebi — murmuro mais uma vez, arrancando pedaços de grama dos meus pés.

Raah ignora meu comentário ambíguo.

— Importante ao tentar resgatar alguém nessa região do lago é levar um pedaço de pau, como aquele — ele aponta para uma vareta metida numa montanha de areia — e ir sondando o terreno antes de cada passo.

— Como isso foi se tornar sua vocação? — pergunto, incapaz de conter a curiosidade. — Quer dizer, parece um desperdício, dado quem você... — Minha voz esmorece no final da frase quando Raah olha para mim e percebo que estava prestes a expor minha admiração obsessiva. É que, para mim, é incompreensível que alguém como ele, aos vinte anos de idade, sendo do jeito que é, com todo o potencial que tem, fique de vigia numa região onde não há absolutamente ninguém. Deve ser frustrante. Não é à toa que está sempre tenso.

Ele contrai o queixo contra o pescoço e engole em seco, as íris se movendo rapidamente de um lado para o outro, enquanto sonda o nada diante de si.

— Eu queria ajudar pessoas — diz, finalmente, desviando o olhar para o chão. — A Cúpula achou que esse aqui era um bom primeiro passo. Uma espécie de treinamento.

— Treinamento para quê? — pergunto com olhos arregalados e resquícios de uma risada incrédula arraigada na voz. — Para testar o limite da sua sanidade?

Raah responde com uma gargalhada. Pela primeira vez desde que o conheci, está de fato gargalhando.

— É, acho que algo assim — responde.

— Eu não entendo — retruco. — Tibbutz não é perfeita? Como essa aqui pode ser sua função? O que há de perfeito nisso?

Suas risadas gradualmente se enfraquecem e ele se torna reflexivo, quase sisudo novamente.

— Acho que para chegarmos no perfeito, muitas vezes precisamos atravessar um mar de imperfeições — ele diz, num tom não-pretensioso, ainda com a jovialidade do gracejo.

— Ou um pântano — brinco, indicando com o nariz o lago à nossa frente.

— Ou um pântano — ele repete, com humor.

— E quando você vai chegar lá? — questiono, um tanto mais séria.

— Lá?

— No perfeito — explico.

Raah me encara com um peso de significado no olhar que não sei interpretar. 

— Acho que já estou aqui — ele diz e sorri de leve.

— Ah.

Como devo interpretar algo assim? Meu rosto está queimando e eu não consigo mais olhar nos olhos do garoto estonteante à minha frente e me encho de pânico ante a possibilidade de que eu esteja só me iludindo. Afinal, o que um cara como esses pode querer com alguém... como eu?

— Você quer dizer, porque agora você também é um treinador — arrisco. — Isso dá a você um senso maior de propósito.

— Isso também — ele responde. Sinto seus olhos concentrados intensamente em meu rosto e, por algum motivo, isso me gera um desconforto no estômago. Sinto um tremor interno, a começar do meu peito. Não sei se gosto disso.  

— Então... poderíamos dizer que eu sou a realização dos seus sonhos — brinco, sem olhar para ele, numa tentativa vã de amenizar o clima.

— Em mais formas do que você pode imaginar — ele responde baixinho. Continuo observando o lago, tentando discernir com o canto dos olhos seus movimentos e tentando entender por que de repente me parece que não há mais oxigênio em Tibbutz. A tensão lentamente se torna mais pesada do que posso suportar.

— O que você quer dizer quando diz coisas desse tipo?! — Explodo, de repente. — O que você quer, afinal? — Só assim consigo olhar para ele, protegida sob a máscara de um apelo dramático. Mas, de repente, me ocorre algo e o humor retorna a minha voz. — Não diga "você". Se você disser "você", irão expulsá-lo de Tibbutz por falta de originalidade.

Embora haja divertimento em seu olhar e nos cantos de sua boca, Raah continua me encarando com a mesma intensidade de antes. Quando me dou conta, está entrelaçando seus dedos nos meus sobre o meu colo. Exatamente como Sander fez essa madrugada no lagar, exceto que Raah o faz de uma forma muito mais sutil e fluída.

— Só quero ser feliz, eu acho. Assim como você. Assim como todo mundo.

Centímetro a centímetro, ele se inclina, como se algo magnético e incontrolável o atraísse, fechando o espaço entre nós dois, entre os nossos lábios, expulsando completamente o ar que nos separa.

E todo o ar nos meus pulmões.

— Assim como Tink? — pergunto, antes mesmo do meu cérebro ser capaz de perceber que eu o faria.

E aí qualquer que fosse a mágica que produzia esse magnetismo incontrolável esvanece num estalar de dedos.

— Não comece novamente — Raah resmunga, voltando para sua posição anterior.

— O quê? Tink não é todo mundo? Ela não merece ser feliz?

— Apenas pare, está bem? — ele ordena, de repente, com uma voz grave e autoritária. Tento enfrentá-lo com o olhar, mas a verdade é que estou assustada com a severidade. — Se você precisa saber, eu não faria isso, se eu estivesse nessa situação — diz, num tom apenas ligeiramente mais suave. — Mas a escolha não é minha.

— Então, deve haver alguma coisa que possamos fazer para impedir — insisto, sentindo uma onda de esperança dentro de mim.

— Cuidado — ele alerta num tom ainda mais severo. — Você está chegando perigosamente perto de soar como uma Radical. E aqui é feito o que é necessário para eliminar esse tipo de pensamento intolerante.

Cruzo os braços em protesto e arfo incrédula.

— E eu sou intolerante?

Raah hesita um pouco, olha ao redor rapidamente, quase de forma paranoica, e sussurra:

— Você realmente precisa parar de falar coisas assim, Hadassa. De verdade. — Seu tom é angustiado e súplice. — Pelo seu bem... e pelo meu.

— O que vai acontecer se eu falar em público minha opinião? — questiono ainda de braços cruzados.

— Você é a primeira pessoa que eu treino, Hadassa. Sabe o que aconteceria? Seria o fim tanto para mim quanto para você. Não posso trazer essa vergonha para a minha família. Não depois de tudo que já passamos.

É nesse momento que tomo minha decisão e paro de insistir. Se havia alguma esperança de convencer Raah, ela se esvaiu. Basta que um de nós seja alvo da condenação de Tibbutz. Será um resgate solitário.

E esse um será eu.

Nota da Noemi:
Num guento. Vocês me empolgam tanto com a empolgação de vocês 🙈 quero postar todo diaaa

Se estiverem gostando, por favor, divulguem pros amigos! Nada é tão recompensador quanto o povo acompanhando as postagens ao vivo e interagindo 🤗😍💕

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