12
Sander Kravz deixa cair o gigantesco saco de lixo no chão quando eu o empurro e pressiono a lâmina contra seu pescoço, meu antebraço sobre seu peito, mantendo-o firmemente apoiado contra o tronco de uma árvore. Não tem para onde fugir.
Infelizmente, o susto que leva com minha abordagem é suficiente para remover o estúpido sorriso de seu rosto apenas por um segundo. No instante seguinte, ele me encara com uma sobrancelha erguida, exibindo um prazer doentio, como se eu estivesse me insinuando ao invés de ameaçando cortar seu pescoço.
— Você tem cinco segundos para me dizer se empurrou a Tinker naquele poço ou não — sibilo.
Como resposta, ele ri.
— Foi isso que o seu namorado disse?
— Não se engane a meu respeito, Kravz. — Estreito os olhos e pressiono ainda mais a foice, desenhando uma fina linha vermelha em sua pele. — Eu sobrevivi durante muitos anos em lugares e situações que um tibbutzino mimado como você não vivenciaria nem em seus piores pesadelos. E acredite quando digo que não consegui isso apenas arrasando num vestido.
Ele deixa escapar um leve gemido misturado ao suspiro e sei que sente dor. Mas não dá o braço a torcer. Seu sorriso logo retorna e o olhar é tão condescendente que me faz querer matá-lo quer confesse ou não.
— Imaginei. Quer dizer, você ficou bem na Festa da Singularidade, mas não tão bem assim.
Eu não sei o que ainda me impede de degolar esse garoto. A cada palavra quero picá-lo em mil pedacinhos.
Minha mente vaga para a madrugada passada, quando esperávamos juntos pelo amanhecer, sentados nos degraus de pedra de um lagar, apenas aguardando o momento para que eu pudesse ir até a casa do Raah fazer meu pequeno jogo de sedução e manipulação. O ambiente cheirava a uma mistura de suco de uva fermentado, vinagre e grama molhada.
— O que você ganha com isso? — Sander me perguntou, puxando duas vezes de leve uma pena da minha fantasia a fim de chamar minha atenção.
Uma de suas pernas roçava de vez em quando contra a minha e eu sentia que, por conta do nosso objetivo em comum e por essas horas passadas juntas trabalhando, ele já não me parecia tão repulsivo.
— O que eu ganho?
— Sim. Eu tenho meus motivos para ir contra o sistema. Quais são os seus?
Eu não me sentia pronta para revelar a verdade de uma vez, então dei de ombros e soltei o discurso que me soou mais agradável. Ou, ao menos, o que me fazia parecer uma pessoa melhor.
— É o que qualquer ser humano faria. Não se mata uma criança. E Tinker? Você já conheceu essa garota? Ela é tão incrível.
Uma semi-verdade deveria bastar. Tinker já era, mesmo, motivo suficiente para arriscar minha vida. Mas Sander umedeceu os próprios lábios com a língua e afunilou os olhos, me perscrutando de uma forma que eu soube imediatamente que não acreditava em mim.
— Não, tem mais coisa aí — ele sorriu, expondo sua presciência, e balançou um indicador torto algumas vezes na minha direção. — Qual é? Trauma de infância? Abuso? Negligência?
O quão transparente eu sou? Por que tenho tanta dificuldade de ler a intenção das pessoas, enquanto todos parecem enxergar minha própria alma?
Abaixei o rosto por um instante tentando enterrar as memórias, mas depois olhei para o céu estrelado, reconhecendo o inevitável.
— Algo assim — sussurrei baixinho, piscando rapidamente para tentar barrar as lágrimas.
— Ei... — Sander se aproximou, depositando uma mão nas minhas costas e falou num tom reconfortante. — Já passou, você está bem.
— Não foi minha infância. — Mordi o meu lábio trêmulo e novamente busquei auxílio nas estrelas acima de nós. — E ela jamais ficará bem.
O rapaz apenas me encarou, por um longo tempo, sem questionar quem é ela e do que diabos eu estava falando. Apreciei esse espaço que me concedeu para sentir, para decidir o quanto e como queria expor minhas feridas mais profundas.
Caí como um patinho embriagado.
— Eu tive uma irmã — sussurrei, com uma expectativa parcial de que não me ouvisse. — Era só um pouco mais nova do que eu.
— O que aconteceu? — perguntou, deslizando ainda um pouco mais perto no degrau.
A não ser pelo momento na Festa da Singularidade, em que dançavamos cercados pelo resto da população de Laguna, Sander nunca estivera tão perto de mim e, por qualquer motivo, eu já não sentia mais aquele cheiro que me parecera anteriormente tão desagradável. De fato, quase nada mais nele me parecia desagradável. Certamente não o olhar atento e envolvente que direcionava a mim, cheio de compreensão e sintonia. Naquele instante, Sander parecia como o único amigo que eu teria neste país.
Eu não compreendia o quanto poderia me custar cada pedaço que expus a ele ali.
— Todos nós estávamos passando fome. Sede. Frio. Foi uma das piores épocas... — Senti a corrente sanguínea em meu rosto errar confusa por todos os lados, alternando entre a sensação de chamas e frio, tontura e náusea. — Quando ela dizia que estava com fome e sede, nós a ouvíamos. Mas o que poderíamos fazer? O pouco que sobrara, repartíamos entre nós e aguardávamos. Todos nós estávamos sofrendo.
Os dedos do rapaz se entrelaçaram com os meus e eu o encarei, tentando ler o significado daquilo. Ele me fitou de volta, a testa enrugada, as pálpebras caídas e os lábios franzidos. Achei que sentia comigo a minha dor.
O que estava fazendo comigo, Sander? Era tudo parte do seu jogo?
Uma lágrima caiu sobre a minha bochecha, sem que eu pudesse retê-la.
— Na manhã seguinte, toquei-lhe para oferecer sua porção, mas ela estava tão fria quanto uma pedra de gelo. E não se movia. Se nós tivéssemos nos esforçado mais, nos sacrificado mais, talvez a história seria diferente. Talvez Ayanni estivesse aqui no meu lugar. Talvez ela fosse uma pessoa melhor do que eu. Talvez ela jamais teria quebrado a promessa à Tink.
O que começara como uma lágrima se converteu numa torrente incontrolável. Sander não me ofereceu consolo. Seu olhar permaneceu da mesma forma, pesaroso e remoto.
— Eu jurei para mim mesma, assim como meus pais, que honraríamos a morte de Ayanni. Que nos sacrificaríamos uns pelos outros até as últimas consequências. Que jamais perderíamos alguém novamente por negligência ou sob a sensação de que poderíamos ter feito mais.
Sander permaneceu em silêncio, me permitindo que chorasse todo o luto guardado por Ayanni durante todos esses anos.
Ele só me interrompeu quando a mudança das cores no céu nos relembrou do horário e da nossa missão. Num gesto de estranha intimidade, enxugou minhas lágrimas, esfregando com seus polegares os meus olhos. Depois, tocou meu queixo trêmulo e disse:
— Olha.
Franzi as sobrancelhas e lhe lancei um olhar interrogatório.
— Aquele rapaz Salz não vai saber o que o atingiu. Você é incrivelmente linda mesmo quando parece que acabou de ser atropelada.
Nós rimos.
E aí a coisa mais bizarra aconteceu:
Eu o abracei. Como se fosse um amigo.
* * *
Uma gotícula de sangue escapa agora do pescoço por baixo da lâmina que pressiono.
— Vou perguntar só mais uma vez. Você empurrou a Tinker?
Sander fica repentinamente sério. E espero que isso signifique que finalmente conquistei sua atenção.
— E se empurrei? Qual é o seu problema com isso? Deixe-me contar uma pequena história a respeito daquela família... — ele começa.
— Qual é o meu problema com isso? — grito, me forçando a permanecer desinteressada em qualquer mentira que queira contar a fim de me manipular.
Por outro lado... de que outra forma posso saber o que está acontecendo?
— Você sabia que Aleksa Salz é a responsável pelos cancelamentos? — continua. — E que ela não só os instituiu como um procedimento legalmente aceitável, mas, sim, como algo a ser celebrado pela sociedade? Um belíssimo símbolo do nosso desenvolvimento. Por acaso sabia que hoje esse belíssimo símbolo é realizado com o apoio da nação cerca de oitenta mil vezes ao ano?
— Eu não quero ouvir — grito, forçando a lâmina, sentindo meu estômago embrulhar.
Sander geme novamente, mas não se deixa intimidar.
— São oitenta mil Tinkers assassinadas ao ano, Hadassa. Ao ano.
Não consigo mais impedir as lágrimas. Em outros tempos essa informação poderia ser mera estatística, mas agora estou próxima demais, envolvida demais. Minha vista começa a se ondular, uma vinheta preta lentamente surge ao redor do meu campo de visão.
Oitenta mil crianças todos os anos.
E, segundo Sander, a mãe do Raah é a principal responsável por isso.
Mas em quem devo acreditar? As informações e contra-informações só se acumulam e é tudo tão confuso.
— Por quê? — pergunto, antes mesmo de refletir se é sábio sequer incentivar esse discurso.
Sander engole em seco e sei que está aliviado com meu interesse.
— Por qualquer motivo. A autonomia é dos pais. Eles podem escolher quando, como e por quê.
— Isso não justifica! — brado entre as lágrimas. — Tinker não tinha culpa. Ela é uma vítima. Você... não... tinha... o direito!
Faço um movimento brusco como se fosse enfiar de vez a lâmina, mas impeço a mim mesma a tempo. Sander não se move. Sequer pisca.
Não há humor em seus olhos.
Pela primeira vez enxergo o que há por trás de toda aquela camada superficial de humor e ironia. Amargura. Revolta. Falta de esperança. Sander não está apenas preparado para morrer naquilo que acredita. A sensação é de que ele não vê motivos para viver nesse mundo do jeito que é.
Ou talvez eu esteja apenas projetando nele aquilo que eu mesma sinto.
Não consigo mais enxergar. O luto que vem me perseguindo como um fantasma finalmente me alcança e me rouba as forças. Estou soluçando, de verdade, soluçando um pranto entalado, desesperado. A morte jamais me dá uma folga. Ela sempre estará aqui, destruindo tudo e todos que amo. Mesmo em Tibbutz. Não há como se esconder. Não há formas de fugir. A luta dos meus pais foi vã. Toda a minha vida, essa tentativa de escapar do sofrimento, do mal, da injustiça. Qual é o sentido?
Por que estou aqui?
Vou dando alguns passos para trás, me afastando, ainda com a foice erguida para o caso dele decidir tentar algo.
Chega de alimentar a Morte. Além disso, cortar fora essa cabeça inútil não iria mudar nada. Não iria consertar o que já está feito.
— Eu vou salvar a Tinker — anuncio, enquanto vou. — E, depois que eu fizer isso, irei lidar com você.
Era para ser uma ameaça, mas não sei exatamente o que irei fazer. Só sei que algo dessa magnitude não pode passar sem castigo. Caso eu o matasse agora provavelmente seria pega antes de poder cumprir meu maior objetivo.
Os Kravz ainda terão um encontro com a justiça. Mas ainda não. Agora ela é tudo que ocupa meus pensamentos. E eu farei o que for necessário.
Até mesmo satisfazer a Morte mais uma vez.
Ahhhh, estou tão ansiosa pra vcs lerem tudo 🙈🙈🙈🙈
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