11

De todas as coisas para as quais fui treinada em toda a minha vida, nada, absolutamente nada me preparou para isso.

Todas as paredes externas da casa do Raah são de um vidro negro brilhante. Não faço ideia se por dentro seriam transparentes, mas espero que não, porque estou neste momento me analisando atentamente no reflexo. O que pode haver de tão atraente nessa fantasia, afinal? Bato com as costas das minhas mãos numa pena curvada para a frente e jogo meu cabelo de lado com a outra mão. É apenas um vestido curto e espalhafatoso. Meus lábios estão cobertos por um pigmento vinho escuro e minhas bochechas, testa, colo e pernas foram salpicados com um pó reluzente.

Gosto da minha aparência. É o aspecto de uma guerreira, alguém saudável, jovem e bem treinada por toda a vida. Mas reconheço que jamais chegaria aos pés das mulheres das Tibbutz. Elas tem o viço de pessoas nunca tocadas pela guerra. Então, não consigo imaginar como nada disso possa ajudar em alguma coisa. Mas quem sabe? Homens são estranhos.

Ainda não amanheceu completamente e estou internamente implorando aos céus para que Raah seja a pessoa a me receber. Se tentar seduzir o garoto mais incrível do mundo com uma fantasia de pavão não for péssimo o suficiente, dar de cara com a mãe dele de luto certamente será.

Estou ensaiando expressões faciais no reflexo do vidro, quando a porta repentinamente desliza e me deparo com o rosto eternamente sério de Raah.

É só quando eu o vejo, assim, me encarando com olhos vazios, que me dou conta do quanto me afeta saber que ele está bravo comigo e que provavelmente não sou mais "sua trainee favorita". Raah, de uma forma ou de outra, se tornou sinônimo de família para mim nesse país. Ele é a pessoa com quem sempre pude contar.

Bem, ele e a Tink. Não posso esquecer disso. É o motivo pelo qual entrei nessa farsa.

Num salto, lanço meus braços ao redor de seu pescoço, tentando lembrar as palavras que ensaiamos mais cedo.

— Sinto muito — forço alguns soluços fingidos de lamento. — Por favor, me desculpe. Eu não sei o que estava pensando.

Raah permanece paralisado, rígido, incerto. Após alguns segundos, ele segura meus braços e os puxa para soltar-se. Em seguida, me examina, estreitando os olhos e sondando todo meu rosto. No meio de sua testa surgem algumas linhas de tensão. Isto me lembra que essa mesma pessoa que está diante de mim me jogou para fora do hospital e gritou comigo de uma forma que parecia uma ameaça e é a favor da morte de sua irmã mais nova. Eu o odeio.

— Eu deveria ter sido mais sensível em relação ao que vocês estavam sentindo — disparo com uma voz forçosamente aguda e melodiosa, antes que ele tenha oportunidade de dizer qualquer coisa. — Eu preciso mesmo entender a forma de vocês de pensar ao invés de impor minha cultura nesse lugar. É só que eu cheguei aqui como uma estrangeira ignorante, cheia de ideais e planos, e vocês sabem de tanta coisa que eu ainda não sei e quero que saiba que estou disposta a aprender. Eu preciso aprender, Raah. Por favor, me ajude.

Seus olhos se entristecem, seus lábios se espalham num risco reto e ele suspira.

— Eu estava saindo para ver o nascer do sol no vale antes de ir para o refeitório — ele diz, como se nada do que falei houvesse sido dito.

— Eu estava com esperança de que pudéssemos conversar. — Tento abaixar meu rosto de uma forma que meus olhos pareçam maiores quando eu o fito. Sander explicou que isso torna a expressão facial mais infantil e inofensiva e, por isso, é extremamente convincente. Pisco algumas vezes para fortalecer o efeito.

— Agora? — As sobrancelhas de Raah se erguem apenas um milímetro.

— Sim, agora — digo, saltando para abraçar seu pescoço mais uma vez. 

O perfume e o calor exalados por sua pele são tão incríveis que me pergunto: o quão errado seria usar esse momento não só pela Tink, mas para meu próprio proveito? E, aí, se alguma coisa der errada, é só colocar na conta dos Kravz. "Não era eu, eles que me convenceram a fazer isso!"

Eu ainda me lembro bem do beijo que dei nesse pescoço. Meu Deus, não dá para acreditar que foi noite passada. Tanta coisa aconteceu nesse meio-tempo que a impressão que tenho é de que séculos se passaram. Que relação mais conflituosa que nós temos.

Ele deposita suas mãos sobre minhas omoplatas e aguarda. Eu o solto e sorrio, já saltitando para dentro de sua casa. Eu me sinto tão estúpida, com as penas de pavão balançando para cima e para baixo, enquanto imito o comportamento que os rapazes me orientaram a ter. Mas rio solta, como se estivesse desfrutando do instante. Raah, no entanto, parece ainda mais reservado. Ele segue meu trajeto para dentro da sua sala, mas com passos calculados e hesitantes.

Eu me apoio em uma pilastra ao centro do salão, voltada para ele, os dedos entrelaçados atrás do corpo aliviando a pressão das costas contra o concreto.

— E você? Não vai se desculpar? — pergunto, provocativa.

— Não — ele responde imediatamente, sem sequer mudar a expressão em seu rosto.

— Está bem — sorrio mais amplamente a fim de esconder minha vontade de gritar.

— Eu já falei para você que sempre farei o que for necessário para que você possa ter um futuro.

— Então, o que você está dizendo é que... não gritou comigo porque estava bravo e sim porque...

— Você tem ideia do que teria acontecido se mais gente tivesse escutado? É um assunto extremamente delicado para milhares e milhares de pessoas que já se viram nessa posição terrível. Por mais que você não consiga entender algo, você precisa se manter longe desse tipo de polêmica se quiser passar no processo seletivo. Tenho que ser duro com você, às vezes, especialmente quando percebo que você está sendo sua pior inimiga.

Sinto meu sorriso falso ceder levemente e preciso extrair toda força em mim para manter os cantos dos lábios erguidos. Meus olhos umedecem. É só com muita dificuldade que consigo permanecer no papel. Porque não, eu não odeio o Raah. Tudo que ele tem feito tem sido a meu favor. Como tenho coragem de vir tentar reconquistar sua confiança... para quê? Manipulá-lo? Traí-lo?

Por um lado, é revoltante e não faz o menor sentido que ele esteja disposto a deixar Tinker ser morta. Por outro lado, todos agem como se isso fosse algo tão normal que quase consigo compreender que ele é uma vítima também. Sua forma de pensar é fruto da sociedade em que vive.

— Você é um ótimo treinador. 

Meu elogio é minha tentativa de distanciar-me emocionalmente. Raah está apenas fazendo seu trabalho. É algo que ele faria para qualquer um.

Uma sombra cobre seus olhos, enquanto ele me observa. É uma mudança quase imperceptível em sua expressão. Mas é o suficiente para que eu seja capaz de enxergar uma espécie de... agonia? Desespero? Por quê? O que está havendo? O rapaz coloca ambas as mãos atrás das costas e apruma a postura como um soldado. Com um leve aceno com a cabeça de agradecimento, ele diz apenas:

— Sim.

— Quer dizer, é por isso que você se esforça tanto, não é? — Dou de ombros e caminho lentamente até ele, passo atrás de passo, alinhados, de forma que meus quadris balancem suavemente a cada movimento.

É aí que percebo que os olhos de Raah crescem conforme me aproximo e, com eles, a sombra de desespero que percebi antes. Há uma luta interna acontecendo nesse momento e algo me diz que está relacionado a mim.

Essa fantasia deve ser realmente mágica.

Ele engole em seco, seus olhos inadvertidamente prescrutando não apenas os meus, mas mais do que rapidamente sondam toda minha aparência, da cabeça aos pés. E, pela primeira vez, eu sei, com tudo que tenho, eu seique Raah Salz, meu estupidamente perfeito treinador, me vê não apenas como trainee.

Ah, que se dane, vou colocar tudo na conta dos Kravz mesmo.

Dou mais alguns passos rápidos e encosto suavemente em sua bochecha, contemplando seu rosto de perto, aproximando meus lábios dos seus. É só uma performance. Por que estou tão nervosa? E o que pretendo com isso?

O sol já começou a nascer e lentamente o salão é coberto de um tom alaranjado que se alastra por seu rosto e destaca seus olhos azuis. Então eu lembro de algo.

— Os vidros são transparentes do lado de dentro — concluo, inesperadamente, dando um passo ao redor do rapaz para olhar.

— Sim — Raah responde, num tom inquisitivo.

— Então você me viu do lado de fora, quando eu estava me preparando para falar com você... — Sinto minhas bochechas arderem.

Ele ergue as sobrancelhas e tenta, sem sucesso, não sorrir.

— Sim — confirma.

— E você saiu sabendo que eu estava ali...

— Foi mais forte do que eu. — Dá de ombros e sorri agora abertamente. — Você fica irresistível quando não sabem que estão olhando. Ou, ao menos, quando não está fazendo esse papel ridículo que está fazendo.

— Que... — Minha visão escurece por uns instantes e tenho a nítida sensação de que meu coração pula uma batida. — Que papel?

— Eu não sei o que você pretende, Hadassa... — Ele dá uns passos para trás e ainda está sorrindo, no entanto as linhas em sua testa retornam. — Estou realmente me esforçando para dar a você o benefício da dúvida, mas... você precisa me ajudar nisso.

Nós não ensaiamos essa parte. Não sei de jeito nenhum o que dizer. Estou paralisada. Abro meus lábios algumas vezes para dizer algo, mas nenhuma palavra se forma.

— Ah, 'Dassa... — Raah chama num suspiro. Estou certa que a intenção é parecer íntimo e carinhoso, mas o efeito é contrário. Apenas Tinker me chamava por esse apelido. E essa lembrança me desperta novamente para minha missão.

— Você disse que eu era sua pessoa favorita na festa. — Dou de ombros suavemente e deslizo os dedos por uma mecha do meu cabelo. — Só queria tentar descobrir se sou sua pessoa favorita em outros lugares também.

O rapaz estreita os olhos e tenho a sensação de que sou totalmente transparente, de que ele consegue enxergar até os meus pensamentos. Ele coloca uma mão sob o queixo e parece refletir algo. Ele dá uns passos na minha direção, nessa mesma postura, e sinto que ele esteja planejando me surpreender e não sei dizer se é de uma forma negativa ou positiva. Estou tão agitada que mal consigo respirar.

Ou talvez eu não consiga respirar porque Raah está chegando cada vez mais perto e a cada segundo que passa e a cada centímetro que se aproxima sinto em cada poro da minha pele que ele me quer tanto quanto eu o quero. Mas por motivos infinitamente melhores.

Ele desliza as mãos quentes pela minha nuca e me olha com tanta ternura, como nunca fizera antes.

E isso me faz me sentir péssima.

— Nós podemos reverter essa situação, Raah — deixo as palavras escaparem de repente. — Nós podemos salvar a Tinker.

O rapaz paralisa. Suas mãos ainda estão sob minha nuca. Sua expressão facial sequer mudou. Mas qualquer vestígio de ternura é substituído por pura e intensa frieza.

— Entendo — é tudo que diz.

— Não, Raah — imploro com o olhar. Não sei se vai funcionar argumentar com ele, mas preciso tentar. Ele me deu o benefício da dúvida. No mínimo, preciso retornar o favor. — Eu sei que você cresceu dentro dessa cultura, mas você não precisa vivê-la.Nós podemos ser aquele tipo de pessoa que faz o que é necessário para mudá-la.

Novamente a mudança em sua expressão é mínima, quase imperceptível, mas algo se transforma e o rosto de Raah se torna mais sombrio do que nunca. Ele comprime os lábios e se afasta.

— Raah, por favor. — Meus olhos se enchem de lágrimas, enquanto eu o sigo. — Apenas pare para pensar...

— Não, pare você! — Ele explode, de repente, estendendo um indicador para mim. Inspirando profundamente, percebo que se esforça para se manter sob controle. — Eu... — ele começa um pouco mais calmo. — Eu só espero que você não esteja sendo manipulada pelos Kravz.

Tento sorrir num jeito que diz "não seja ridículo", mas sinto que nada que eu diga adianta de alguma coisa. Sou realmente transparente.

— Hadassa, eu não sei o que eles falaram para você. — Ele fecha os olhos, parecendo simultaneamente frustrado e preocupado. — Mas acredite que tudo o que esses imbecis fazem é apenas em interesse próprio. Ou você acha que eles se importam se você vai ser aprovada para ficar em Tibbutz ou ser expulsa?

Pisco ambos os olhos algumas vezes, confusa.

— O que minha estadia em Tibbutz tem a ver com a Tinker?

— Eu e minha família apostamos em você. Nós somos um dos principais defensores do programa de ajuda a imigrantes. Minha mãe entrou na Cúpula para representar as minorias. Você está aqui por causa dela — ele prossegue. — Mas tem muita gente por aqui que gostaria que a nação parasse de acolher pessoas de fora. Qualquer passo em falso da sua parte afetaria negativamente todos os outros imigrantes.

— Eu não sei do que você está falando. — Não há convicção em minha voz. Engrenagens começam a rodar em meu cérebro sem que eu possa fazer algo para impedi-las.

— Hadassa — Raah segura meu rosto com ambas as mãos. — Há pessoas más em todos os lugares do mundo. E há algumas que fariam qualquer coisa para que não ajudemos mais pessoas menos favorecidas.

— Qualquer coisa?

As engrenagens mentais se aceleram e traçam trajetos de acontecimentos e frases e momentos e todos levam a um conceito abstrato que lentamente toma forma.

O que, eu me pergunto, alguém que faria qualquer coisa seria capaz para prejudicar tanto ao programa de imigrantes quanto a família que mais o apoia?

Encontrar alguém que goze da confiança da família, mas seja estúpido o bastante para manipulá-la e traí-la?

É possível.

Mas, como convencer essa criatura estúpida a fazer isso?

Encontrar a única pessoa que ela ama mais do que a si mesma e machucá-la de uma forma irreversível?

Mesmo uma garotinha?

Ferir a família e a criatura estúpida numa tacada só.

É genial, se parar para pensar.

Nem me dou conta de que Raah ainda está falando comigo, discursando, tentando me alertar. Não estou ouvindo. O mundo está se afunilando diante dos meus olhos, meu campo de visão se estreitando, mal posso ouvir.

Ele enxerga em você o potencial. No momento certo, ela a constrange a dançar e já vai preparando o terreno da manipulação com supostos alertas amigos. Ao mesmo tempo, é o trabalho de separá-la daquela quem deveria estar protegendo. Faz todo o sentido.

Nunca pensei que seria capaz de sentir tanto ódio na minha vida.

Eu me despeço de Raah, dando alguma desculpa, e no degrau que leva para fora de sua casa, deixo meus sapatos. Já estou correndo, não me incomodando com as penas que chicoteiam e se desprendem do meu vestido. Sei exatamente para onde estou indo e sei exatamente o que eu estou disposta a fazer. A sensação é de que meus pés mal tocam o chão. Raah ficaria orgulhoso se essa fosse uma competição.

Desço até o vale, atravesso a plantação de laranjeiras, faço a curva após um muro de pedras e chego ao refeitório. Desacelerando um pouco, vou diretamente para a parte de trás, me curvando levemente para que ninguém me veja. Este é o horário da refeição matinal, por isso praticamente todos do nosso bloco estão aqui para se alimentar.

Sorte que eu decorei a escala de serviços para impressionar o Raah. E, por isso, sei exatamente quem não está dentro do refeitório.

O sol já produz longas sombras das árvores esparsas por trás do refeitório. Ali há um tanque de depósito de restos e materiais a serem incinerados. Sigo uma trilha mais longa, através de longos campos de trigo, para o outro tanque, onde levam o material biodegradável para ser moído e transmutado em adubo. Só vi esse lugar no meu tour inicial, mas jamais esqueceria. Aquele cheiro. Ele impregna suas narinas de tal forma. E, se você passar tempo o suficiente ali, provavelmente nunca mais será capaz de tirá-lo das suas roupas, da sua pele, do seu cabelo, por mais que os lave.

Ele sempre carrega consigo esse cheiro.

No caminho, pego um souvenir. Uma pequena foice que utilizamos às vezes na colheita. Não é muito afiada e, por isso, geralmente inofensiva.

Mas bastará. 

Nota da Noemi:

OMG, o que será que a Hadassa vai fazer? 

Estamos tão felizes com a participação de vocês! :)) Parece que revivemos a história todas as vezes, conforme vamos lendo os comentários de vocês. <3 OBRIGADA

Quem quer capítulo novo já amanhã???

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