Prólogo - Louise

O mundo cinza se abriu mais uma vez quando finalmente abri os olhos. Sempre a mesma coisa, o mesmo som, o mesmo cheiro de tinta fresca, de tinta seca, a mesma paisagem, a mesma cor. Tudo se acumulava no meu quarto junto à poeira nos cantos.

Me obriguei a levantar após uma olhadela para a pequena fresta da cortina, onde um raio de sol tímido ousava invadir meu quarto pela janela.

Aquilo... talvez fosse um tom de amarelo?

Fui em direção à luz do dia, abrindo a cortina bruscamente e vi aquela paisagem sem cor, imediatamente extinguindo qualquer que fosse minha esperança boba de retomar aquilo que perdi a tanto tempo. Não pude deixar de esboçar um sorriso de desdém quando puxei o tecido de volta para cobrir toda a claridade após um olhar indiferente à paisagem.

Não sabia exatamente que horas eram, impossível discernir apenas pela luminosidade e qual tom de cinza estava mais acentuado, mas ignorei isso por hora.

Arrastando o que sobrou de mim da noite anterior, após pintar por horas, fui até o banheiro, vendo o reflexo de um amontoado de cabelo assanhado e uma pele, aparentemente pálida pela falta de sol, manchada de tinta ser refletida pelo espelho. Os meus olhos sem vida me fizeram rir. Um sorriso debochado com minha própria aparência. Malditos olhos.

Então fui tomar banho, o cheiro de tinta e suor estava me incomodando.

Mais uma vez tive aquele sonho. Aquela última vez em que vi os mais diversos tons de vermelho, antes do anjo do destino me sacanear e decidir que seria cômico uma artista que não pode ver cores. Só ele achou graça.

Meu celular vibrando me chamou de volta para a realidade, meu secretário mandou milhões de mensagens, mas apenas ignorei. Uma da tarde não era hora de incomodar alguém que acabou de acordar. Vesti a primeira coisa que encontrei quando me enxuguei. Uma velha calça com a e uma blusa manchada de tinta. Talvez ela fosse branca em algum dia no passado, mas agora era um arco íris. Um arco íris com os mais diversos e lindos tons de cinza. Meu lindo arco íris.

Me sentei ao chão em frente ao cavalete e segurei uma paleta, pegando a primeira tinta do montinho de vermelho que encontrei em cima da mesa, mas o irritante vibrar do maldito eletronico ao meu lado havia quebrado a barreira da minha paciência, mandando pelos ares a pouca tolerância que eu tinha naquele ponto.

— O que? — despejei assim que ouvi ser atendida.

— Pai amado, obrigado, eu pensei que você tinha morrido com o cheiro de tinta do seu apartamento — pude ouvir um tom de irritação misturado com alívio quando ele bufou. — Louise! — esbravejou, direcionando seu emaranhado de sentimentos conflitantes para cima de mim. — Estou tentando falar com você desde às dez...

— Corte toda a bronca que você ficou planejando a manhã inteira e vá para o que importa, pare de me incomodar — interrompi friamente, deixando a ligação no auto falante e jogando o aparelho num carpete encostado na parede, finalmente abrindo a tinta, pondo-a na paleta e iniciando a pintura.

— Você terminou? O quadro — a apreensão na voz era quase tão forte quanto o cheiro de tinta e eu olhei para a paisagem provavelmente colorida à minha frente.

— Devo ter terminado — ironizei com uma voz arrastada, fazendo bico ao pontuar, cutucando a bochecha com o cabo do pincel. — Talvez falte algumas cores...

— Pare de brincadeira. Vou buscar mais tarde.

Peguei a tinta que estava na paleta e coloquei na ponta do pincel chanfrado, encostando no gramado e dando pequenas batidinhas.

Alguns retoques... eles me disseram que fica bonito, mas não entendo como as cores quase aleatórias de alguns de meus quadros conversam entre si. Será que estão apenas sendo gentis?

Colocando a tela de lado, me joguei no chão.

Quanto tempo faz? Eu realmente não sei quando parei de desejar. Talvez no acidente que deveria ter matado a mim e ao Lucas... que me matou e eu ousei viver, amaldiçoada por minha escolha egoísta.

Aquele anjo deve estar rindo de mim agora. Ele deve estar se divertindo do quão patético é a vida de uma garota que teve a audácia de viver após tirar as cores do seu mundo.

Quanto tempo faz? Eu ouvia a torneira pingar...

Acho que estava anoitecendo... o secretário veio pegar a pintura e levar à galeria. Eu fui com ele, precisava assinar alguma coisa. Não me dei o trabalho de trocar minha roupa, afinal, eu sou uma pintora, não uma celebridade. Além de que uma artista fantasma não precisava ficar mostrando beleza por aí.

A noite brilhante se ergueu na barulhenta Monte da Alvorada enquanto eu andava pelo bairro ao leste da enorme lagoa no centro da cidade. Minha casa era perto e decidi caminhar, mas, pelo visto, uma moleca sem expressão, cabelos assanhados e suja de tinta chamava bastante atenção.

Assobiava enquanto carregava um novo lote de tintas em uma sacola, olhando as luzes da cidade refletirem na água ao longe, até que um estranho sentimento de um mau agouro permeou todo o meu ser, arrepiando cada fio de cabelo do meu corpo.

Podia ser...?

Quando finalmente dei por mim, algo caiu ao meu lado com um som abafado, me fazendo desequilibrar no momento em que todas as tintas esparramaram no chão com o impacto que rasgou a sacola, me levando para o mesmo fim que elas.

Meu corpo imediatamente tremeu ao ver alguns dedos banhados num líquido escuro, envolvidos numa faixa não mais clara.

Minhas pernas não tinham força alguma, cada centímetro do meu ser tremia ante a cena daquele homem jogado no chão, meu coração em disparada parecia que iria para a qualquer momento quando olhei para o topo do prédio que ele aparentemente havia caído.

Era aquele mesmo pânico, aquele mesmo medo e temor de ver a morte bem a frente; naquele momento, pude ver mais uma vez aquele vermelho vívido por toda parte.

Um grunhido baixo me chamou de volta a realidade no mesmo instante que a cabeça daquele rapaz se mexeu e pude ver seus olhos opacos, tão sem vida quanto os meus. Mas quando os vi fechar, a força voltou e tive a reação que eu precisava naquele momento.

Eu podia salvá-lo.

E liguei para a emergência.

Seja lá quem era, seja lá o que o levou aquele lugar, espero que o anjo que venha para ele não seja como o meu.

Espero que não tenha nada roubado da mesma forma que me roubou.

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