Capítulo 6 - Louise

Dormi no chão em frente ao quadro que terminava de pintar na noite passada.

Estava agarrada num edredom um pouco longe da pintura acabada terminando de secar, enquanto a luz e o vento entrava pela janela que deixei aberta.

Estava quebrada.

Não a janela.

Eu.

Não havia uma articulação sequer em meu corpo que não estivesse gritando de dor, então me levantei tentando desfazer o nó que minhas costas fizeram pela má posição e finalmente espreguicei manquejando pelas pernas dormentes. Bocejei em meio aos gemidos arrastados que atestavam meu cansaço.

Dando uma olhadinha rápida nos meus arredores, fiz uma checklist mental do que precisava fazer durante o dia:

Agatha estaria de volta mais tarde, queria falar com ela.

Precisava enviar a confirmação para o novo secretário vir pegar o quadro.

Me arrastei preguiçosamente para a mesa onde estava meu notebook e digitei um rápido email, que foi prontamente respondido, informando que o destinatário chegaria pouco depois do meio-dia.

Algo me incomodava sobre ele ser um pianista - o que diabos um pianista estava fazendo como meu secretário? -, algo me parecia errado e mexia no meu ser, mas tentei não pensar sobre, as pessoas tinham motivações para o que faziam, e não era da minha conta.

Já eram cerca de onze e quarenta, então peguei uma caixa de leite na geladeira e despejei num copo, já juntando os restos dos bolinhos super apimentados da noite passada, tomar café da manhã agora não seria propício.

Me sentei à mesa, nem ao menos esquentei, e comecei a comer, lendo algumas notícias sobre meus quadros e seu sucesso nos Estados Unidos.

— Agatha está fazendo um bom trabalho — cantarolei com a boca meio cheia.

Então arrastei as notificações e vi uma mensagem da dita cuja, confirmando que chegava hoje de noite, falando que já estava para embarcar - isso foi de madrugada - e que queria uma festinha na casa de Daniel.

A mensagem de Daniel era a próxima, confirmando a festa, então só faltava eu.

Confesso não estar muito afim de sair, mas, se era apenas uma comemoração pelo sucesso da nossa galeria... tudo bem, estou disposta.

Confirmei logo abaixo.

Espreguicei mais uma vez e finalmente terminei a bomba de pimenta que havia sido aquela refeição, minha boca estava quase dormente, mas então me dei conta de que não tinha nenhuma mensagem do diretor adjunto mencionando meu novo secretário.

Liguei para Kei. Ele definitivamente estava mandando um novato completamente despreparado para mim e isso já estava me tirando dos nervos antecipadamente.

— Não está pensando em deixá-lo sob minha supervisão, não é? — questionei assim que ele atendeu.

— Não acha que esse deveria ser um trabalho seu? — Não demorou a começar seu sermão, então bufei em resposta.

Meu trabalho é jogar tinta numa tela em branco e tornar isso bonito, o seu trabalho é lidar com as papeladas que não queria ter que lidar — retruquei no mesmo tom e ele suspirou.

— Você é a chefe dele, Louise, pare já de ser covarde e de passar esse trabalho para as outras pessoas. Você deveria preencher os formulários. Se está deixando isso a cargo dele, ao menos tenha a decência de ensiná-lo como fazer, ninguém sabe mais de suas obras que você mesma — retrucou o homem e suspirei.

— Mas deixá-lo completamente despreparado não é no mínimo cruel? — repliquei com um tom mais baixo, beirando uma indignação quando franzi o cenho.

Eu ainda tinha um pingo de empatia, o mesmo não podia ser dito do grandíssimo diretor ao telefone. Odiaria começar um novo trabalho fora da minha área de expertise e ainda não ser instruída pelo cara que estava trabalhando antes de mim.

A linha ficou muda e finalmente caiu.

Inacreditável, ele desligou.

"Está se preocupando com alguém que não é você mesma, já é um avanço. Lide com isso de uma vez", foi a mensagem que brilhou na minha tela com o nome do gerente da galeria que eu fundei. Eu devia ser uma piada, realmente...

Não era a primeira e, definitivamente, não seria a última vez que eles tentariam me fazer interagir com gente nova. E, que surpresa, essa também era uma tentativa. Mas respirei fundo, tentando organizar meus sentimentos e aquilo que acabei de pensar para não despejar meu ódio em quem não merecia.

Ele era um pianista, e sejá lá por qual razão, agora era meu secretário. Talvez por ter sido um colega de profissão, ambos artistas, sentia um pouco de pena, já que não saia da minha mente que ele poderia ter desistido de sua carreira. Além do que, se estavam fazendo isso para me obrigar a algo ou me punir... ele não tinha culpa, certo?

Respirei fundo.

Apenas precisaria ser profissional e tratar com profissionalismo. Tendo ou não a finalidade de me fazer interagir com gente nova, era fato que ele havia sido contratado, então deveria ao menos agir civilizadamente, não?

Mas eu também não tinha culpa, estavam tentando enfiar goela abaixo essa responsabilidade para mim e agora eu tinha que lidar com um novato...

A minha campainha tocou e me tirou do meu devaneio, me fazendo correr para atender e tropeçar na mesa, já que meu corpo agiu antes da minha mente analisar os arredores e ver o pé da mesa no meio do caminho.

Felizmente me segurei antes de me chocar contra o chão e, ao abrir a porta, que estava um tanto emperrada, vi um rapaz muito bem vestido em tons quase chapados de cinza, cabelos longos presos num rabo de cavalo, roupa bem alinhada e semiformal, uma aura arrumada e até um pouco... porque tinha um maldito religioso na porta da minha casa?

— Não quero saber da palavra do Senhor — fui curta e grossa, já fechando a porta, mas ele sorriu sem graça quando me impediu que o fizesse. A ousadia desse...

— Vim da galeria... — se adiantou e eu arqueei as sobrancelhas. — Enviei um email há cerca de uma hora avisando que viria.

Isso foi uma surpresa.

A voz dele era realmente agradável de ouvir. Era leve e tinha uma certa rouquidão no fundo, não era nem grossa nem fina, não chegava a ser grave, tinha uma sonoridade perfeita, era quase como se gritasse que era músico. Seu ar requintado também me fazia ter uma impressão forte de uma certa imponência, mas ele em si não exalava imponência alguma.

— Ah, entre.

O deixei passar após o analisar mais uma vez e, apesar de ter plena consciência do quão imundo estava meu apartamento, eram tintas, meu objeto de trabalho, não me importei de modo algum.

Fui direto para o quarto de pintura e peguei a tela, dando as instruções, mas ele estava um pouco aéreo, e pude notar que ele estava segurando a tosse quando me respondeu, além de estar falhando miseravelmente em disfarçar uma carranca desesperada.

O cheiro da tinta.

Bem, seria breve.

— É só levar para baixo com cuidado, consegue fazer isso, certo? — questionei, o encarando mais uma vez. O rapaz mantinha uma expressão bastante consternada.

— Desculpe, pode repetir? — ele pediu e precisei tomar um tempo para não ser grossa.

Repeti e ele confirmou, mas ficou parado, segurando as próprias mãos na minha frente, como se quisesse falar algo.

Não era culpa dele... tentei ver a situação pelo seu ponto de vista e decidi que seria sincera. Não havia motivos para ser malvada, ele só estava fazendo o trabalho dele, enquanto meus amigos estavam querendo me sacanear ou algo assim, me obrigando a lidar com pessoas desconhecidas.

Então suspirei, puxei meus cabelos e os amarrei num coque, pensando que seria uma boa lhe oferecer algo para tomar enquanto conversávamos.

Iria ensinar a maldita papelada só uma vez, esse era o ápice da minha paciência.

Foi um encontro agradável, ele me pareceu um rapaz engraçado. Estava todo travado, mal sabia o nome do gerente do lugar que trabalhava e respondia com monossílabos, mas de repente concordou em deixar de lado as formalidades.

Gostei da forma que foi direto, também odiava formalidades excessivas em ambientes de trabalho.

Pegou rápido tudo que falei e preencheu todo o formulário com bastante destreza, apesar da estranha forma que ele digitava: sua mão direita era notoriamente mais lenta e tinha menos mobilidade, será que era canhoto? Fora isso, o achei eficiente, então a minha implicância com ele poderia ser deixada um pouco de lado.

Porque diabos um pianista agora era meu secretário?

Era a única coisa que passava em minha mente enquanto ele descia as escadas, não conseguia conceber algo assim, uma mudança tão...

Dane-se, não era da minha conta. Apesar do meu apartamento imundo, deixei isso de lado por hora e apenas iria para a casa de Daniel.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top