Capítulo 4 - Louise

Não estava gostando muito do andamento daquela tela...

Apesar de estar bastante condizente com o tema primaveril que propus na última reunião trimestral que decidimos o tema da Exposição de Primavera, não conseguia saber se estava transmitindo o que deveria.

Perseverança da natureza, o renascer e o recomeço, esse era o tema e me joguei de cabeça nele, mas essa tela estava um pouco "fria" demais.

— Acho que vou deixá-la no início da linha de exposição, está mais para uma transição entre o inverno para a primavera — resmunguei para mim mesma, segurando o pincel entre meus dedos e dando umas batidinhas de azul celeste misturado com um pouco de branco. Queria acinzentar esse azul; se eu comparasse o tom de cinza de ambos, consegui.

Peguei meu celular após limpar os dedos num lenço ao meu lado e mirei no céu da paisagem de árvores nuas que se esforçaram tanto para voltar para sua folhagem, e o aplicativo leu para mim "azul acinzentado" e um código HEX "#677f91". Acho que era a cor certa. Não liguei muito para os códigos RGB e HSL por hora, eram muito dependentes de iluminação e a do meu quarto não era das melhores.

Por mais que esse tipo de aplicativo fosse um quebra galho, não conseguia confiar inteiramente neles pelo fator iluminação, então apontei para o quadro, apontei para o celular, pedindo sua opinião quanto a coloração, e Daniel assentiu com a cabeça.

— Não estou entendendo sua implicância com esse quadro — ele me entregou um copo de suco, enxugando as mãos num pano de prato.

— As cores saindo de um ponto e pintando toda a paisagem e tudo mais... — divaguei mais resmungando pra mim mesma do que falando com ele.

Arrodeou por trás de mim, com uma cestinha juntando todas as tintas espalhadas em minha mesa, olhando uma por uma a validade e cor. Precisava de uma ajuda maior para organizar as tintas... quando estavam sem rótulo, espalhadas na minha bancada, não fazia a menor ideia de qual cor se tratava.

Claro, se não fosse por Daniel quebrando esse galho para mim quase todas as vezes que precisei, estaria bem mais perdida do que eu gostaria de assumir. Sem os rótulos ou as indicações de cor das divisórias na bancada não conseguiria discernir qual deveria usar, como as muitas telas que fiz trocando a cor de tudo bem no início da minha adaptação ao mundo sem cor.

— Se eu tentar encontrar uma desculpa para o porque desgostei desse quadro, eu diria que foi influência do anterior. — Espreguicei, me joguei um pouco para trás e encarei a forma até um pouco perfeccionista demais que Daniel categorizava as tintas. — Dei meu sangue nele, estava perfeito, mas esse está apenas... normal.

— Não acho que está normal, mas se eu olhar na sua perspectiva, talvez esteja — ele parou por um segundo e cruzou os braços. — Gostei das cores vibrantes subindo pelos galhos contrastando a paisagem mais fria.

Então após encarar muito aquele quadro, apenas aceitei a "mediocridade" dele. Talvez fosse coisa da minha cabeça.

Ainda com o celular na mão, olhei mais uma vez para as informações que Kei havia me mandado mais cedo.

— Mas, Dante de l'Estandart Diefenthäler? — abordei o assunto do meu novo secretário, jogando o celular no tapete atrás de mim e pegando o pincel mais uma vez. — O nome dele parece um trava línguas, demorei um tempo para entender o que diabos estava escrito na ficha dele — encarei com desgosto.

— O pai dele é alemão e a mãe tem uma parte da família italiana — Daniel justificou, com uma risadinha. — Mas me impressiono que conseguiu falar isso de primeira, quando conheci Aurora, no ensino fundamental, demorei alguns anos pra decorar o nome dela e fiquei um tempo brincando falando ele errado.

— Que fofo! — brinquei franzindo os olhos, e ele devolveu um olhar fuzilante, odiava quando alguém falava assim de sua relação com Aurora, eram quase irmãos. — Óbvio que eu pesquisei na internet como fala, que nome horrível, pelo amor de deus! — mudei o assunto e ele franziu o cenho.

— Pesquisou o nome dele na internet? — Questionou, e pude ver uma pitada de curiosidade em seu olhar. Assenti com a cabeça. — Apenas isso?

— Apenas isso, num tradutor — confirmei e ele arqueou a sobrancelha.

— Então, o contratou? — ele mudou o ar da conversa, animado demais, me causando uma certa desconfiança.

Daniel nunca se animava por nada que não fosse de seu próprio interesse, principalmente no quesito pessoas.

— Contratei, claro, Kei não me deixou escolha — resmunguei ao deixar de lado o pincel agora sujo de marrom escuro. Comparei a cor com o outro marrom do caule das árvores e esse não estava tão bom, iria chamar muito a atenção do que deveria ser das cores mais vibrantes.

— Ele é um bom rapaz — Daniel concluiu e eu franzi o cenho.

— O conhece?

— Eu que o recomendei — redarguiu como se fosse óbvio.

— Tapado — acertei minha própria testa com um tapinha. — Não é disso que me refiro, pergunto pessoalmente. Como sabe se ele é competente? — questionei com um olhar incisivo, bebericando um pouco de suco de pêssego.

— Ah, ele é diligente, formado em administração, quando pega algo para fazer faz de verdade, essas coisas — pontuou Daniel enquanto olhava as cores e as enfileirava ao lado do quadro, cada uma em seu devido espaço seguindo a paleta de cores que espiava no celular. — Talvez falte conhecimento quanto a arte em si, mas acho que ele pega isso rápido.

— Você não costuma falar bem das pessoas, fico até impressionada — retruquei fazendo careta. — tramando o quê?

— Não estou tramando nada, ele é apenas um sujeito interessante e o conheço há bastante tempo, nada a mais, nada a menos. — Deu de ombros mais uma vez, voltando integralmente ao seu trabalho de posicionar as cores. — Mas apenas trate como Kei falou, Louise, não precisa nem sequer olhar na cara dele se não quiser — deu uma pausa, me olhando traquina. — Mas ele é bonito.

— Dane-se se ele é bonito, só quero saber se é competente — ralhei finalmente me pondo a levantar do chão. — Se ele conseguir fazer bem seu trabalho pode ser um alien, a encarnação de Jesus, o boto cor de rosa ou a mula sem cabeça que não vou me importar.

— Bem a sua cara...

Daniel me deu um impulso para levantar e fui até a cozinha para lavar as mãos, o chamando para a varanda e apontando para que pegasse alguns petiscos na geladeira. Ele sinalizou para bebermos algo quando abriu a porta e eu aceitei. Não tinha porque negar, afinal.

A tinta e minhas unhas já eram uma coisa só, então apenas tirei a crosta úmida, já que era impossível tirar o manchado, e quanto aos meus dedos, deve sair quando eu tirar um tempo de pintar.

Dante... Dante Diefenthäler, algo me deu uma certa familiaridade, aquele nome não me era estranho.

— Mas, de onde o conheço... — murmurei quando sentei à mesinha em frente a Daniel, que deu um gole na cerveja e fez bico, parecendo ponderar.

— O pianista — apontou, e eu franzi o cenho. Eu não acompanhava música o suficiente para conhecer um pianista pelo nome. — Ele tocou em um dos meus lançamentos de livro a pedido de Aurora. Ele é famoso, Louise!

— Então o que diabos um pianista famoso perdeu na minha galeria, sendo meu secretário? — alfinetei e Daniel deu de ombros.

— Apenas ajudei Aurora com um pedido.

Então dei aquele assunto como encerrado, já que parecia que ele não falaria nada além de "ele é pianista". Daniel respirou fundo e olhou para dentro da minha casa, fazendo careta, e eu retribui o imitando numa afronta, arrancando dele uma negativa com a cabeça.

— O que? — resmunguei, ainda com a mesma expressão.

— Estava ficando tonto com o cheiro de tinta. — Tenha a santa paciência.

— Ah, Dani, me poupe da ladainha...

— Ladainha? — O olhar dele ficou um tanto sisudo e sua expressão se fechou. Lá vinha o mesmo sermão, pela milésima vez... — Sua casa tem um cheiro de tinta tão forte que me pergunto como consegue dormir ali. Não tem boa iluminação, nem ventilação, nem é espaçosa, Louise, desapegue logo desse apartamento e faça o favor de atender ao pedido de Agatha de buscar um lugar maior.

— Você falando assim parece que não sabe meus motivos... — contrapus com um olhar incisivo enquanto segurava a boca da lata sobre meus lábios. — Eu gosto daqui, Dani, não vou me mudar só por causa do cheiro de tinta!

— Ah, claro que gosta... — Daniel revirou os olhos, se esticando para pegar um salgadinho. — Não liga para sua própria saúde, ótimo, faça o que quiser, mas devia fazer isso ao menos pelo trabalho que fez tanta questão para manter. A iluminação daqui é terrível, se estivesse num lugar com mais luz natural conseguiria ver melhor as diferenças e nuances das tonalidades na sua pintura.

Suspirei. Inútil. Não iria me mudar. E ele sabia disso.

— Mas estou numa situação ruim, a situação na qual vim aqui! Não consigo sair do meu bloqueio criativo, preciso que leia meu novo capítulo!


Acordei quando a luz do sol começou a me incomodar. Era pouco mais das dez da manhã e o clima estava um tanto... ainda estava meio frio, mas não o suficiente para tremer, e nem quente o suficiente para suar. Era um clima agradável, constei quando abri a janela e espreguicei.

O cheiro de primavera era, de certa forma, reconfortante, exceto para quem tinha alergia...

Espirrei.

Maldito polen, já estava por todo lugar.

Estava divagando demais, então sacudi a cabeça e expulsei os pensamentos dispersos, voltando para meu cheiro de tinta, como diria Daniel. Não sabia de onde ele tirava que era um cheiro tão irritante, achava completamente normal e suportável, não era nada sufocante, ele sempre exagerava.

Arrastei meus chinelos pelo chão, a passos lentos, enquanto puxava meus cabelos para trás e os amarrava num rabo de cavalo baixo.

Ante a pintura quase pronta, me abaixei e sentei, encarando a paisagem da floresta enevoada começando a tomar cor.

Tomar cor, é...?

Bem, esperava que estivesse bom e apenas minha falta de percepção das cores prejudicasse a tela, como disse aquele escritor barulhento.

Pus as mãos na cintura e soltei um sorrisinho. Precisava terminar a explosão de cores que emergia do tronco central, dispensando a névoa, se tornando a névoa, então finalmente peguei a paleta cheia de misturas e algumas das cores que pedi para Daniel separar para mim ontem.

Coloquei uma gotinha do que estava rotulado ser lilás com código "#CB9AFE" numa etiqueta que eu mesma coloquei, então abri um aplicativo para corresponder minhas próximas cores, se Daniel tinha feito certo. E, bem, vendo os códigos HSL, talvez eu tivesse escolhido algumas cores um pouco... vivas demais. Todas elas estavam com a saturação e a iluminação estouradas lá em cima, exceto o lilás que parecia ser um tom mais pastel. Testei o lilás com maior saturação também e, ao que parecia, estava bom o suficiente.

— Acho que vou variar no branco para ter um bom degradê pro cinza da névoa — resmunguei baixinho.

Apesar da vivacidade, iria misturar um pouco essas cores para algumas mais escuras com saturação e luminosidade menor... brincar um pouco com o HSL.

Primeiro comecei com o lilás e um pouco de vermelho, pondo-os um ao lado do outro. Peguei com a ponta de um pincel arredondado, que cortei a ponta por mim mesma, e dei algumas batidinhas tímidas próximas ao tronco. O próximo foi o verde e o azul. Dei umas boas salpicadas de tinta pelos lados.

Acho que foi uma boa escolha a saturação e luminosidade estourados, assim diferiram bem do restante da paisagem que estava um pouco mais apagada.

Quando todo o redor do tronco já estava bem coberto de tinta, comecei a ousar um pouco mais em algumas pinceladas de um pincel chanfrado que molhei pouco em branco, borrando as próprias tintas já na tela, fazendo-a escorrer pro chão, transferir para a grama colorida.

Isso estava começando a me agradar. Era quase como se eu conseguisse ver as cores...

Já era um pouco tarde quando me dei conta das horas, então conclui que gastei tempo demais analisando o HSL.

Sempre perdia a noção do tempo quando testava as cores, não tinha como segurar.

Espreguicei, estirei bem os braços e olhei para o sol que já se encaminhava para o fim de tarde. O quadro ficaria pronto ainda hoje.

Então finalmente liguei o meu notebook para checar meus emails, já que o imbecil do meu secretário se demitiu e agora estou com um novo imbecil lerdo que nem se deu ao trabalho de se...

Ora!

Tinha um email de um remetente novo.

"Dante de l'Estandart Diefenthäler", o seu nome estampado logo em cima.

Foi com uma pitada de divertimento que soltei uma risadinha, talvez meu lado perverso estivesse começando a aflorar, mas eu li todo o corpo do texto, tentando não julgá-lo tanto. Como diabos ele se apresentava em situações sociais? Só Dante? Mas nem Dante era um nome normal.

A apresentação foi bem sucinta, direto ao ponto e tratou do trabalho, não tinha objeções quanto a isso, mas o que diabos era aquilo anexado no final?

Um... formulário? Ele esperava que eu preenchesse isso? Abri o documento de informações da obra e não pude conter minha gargalhada. Kei que era verdadeiramente cruel aqui, não eu. Como ele pôde ter deixado o rapaz sem treinamento algum e ainda tê-lo jogado para cima de mim? Não passou os documentos de como preencher os formulários?

Espere, isso poderia ser a tentativa dele de me fazer interagir com um desconhecido? Ou fugir do trabalho? Ou ambos? Só podia ser, conseguia vê-lo com uma risada maligna enquanto esfregava as mãos ao bolar seu plano diabólico digno de um planejamento de anos.

Mas não seria babá de um cara que estava sendo pago para ser minha babá, me recusava, então contive minhas palavras grosseiras e apenas fui direta.

Não era o meu trabalho. Ele que lidasse com Kei.

Fechei o notebook, espreguicei as pernas e suspirei.

Ah, vou comer alguma coisa.

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