Capítulo 3 - Dante
Depois de ler umas mil vezes o processo para registro de obra de arte da galeria, meus olhos já estavam quase caindo das órbitas e minha cabeça pulsava.
"Perfeccionismo é uma virtude", passei minha juventude inteira ouvindo esse discurso, mas, sinceramente, vão a merda com isso na música, na vida real é um completo estorvo.
Já era madrugada e eu ainda estava no escritório da minha casa, gastando todos meus neurônios para internalizar os processos administrativos que ignorei quando minha mãe me forçou a fazer faculdade.
Como eu conseguiria conciliar o piano e a faculdade? Era loucura, desde sempre fui contra a idéia, Aurora que ficaria com a empresa de todo modo, ela era a mais velha, mais responsável, mais capaz, mas aquela senhora controladora precisava me enfiar numa universidade, claro, "pianista" não era o suficiente para o meu currículo.
Ainda que agradecesse por isso agora, ao menos tinha um plano "B".
De todo modo, eu precisava de uma pausa. E de um café.
Espreguicei ao levantar, tirei os óculos de leitura e estiquei as pontas do cardigã azul de lã leve e mangas longas, sentindo a preguiça escorrer do meu corpo. Balancei a cabeça para os lados e alonguei as pernas, dando passos longos para a escada, abrindo a porta para o corredor banhado à meia luz.
Minha casa tinha de fato uma boa iluminação, mas eu gostava do aconchego da bruma da madrugada, então manter tudo parcialmente escuro era muito mais confortável, e, sinceramente, a forma que os meus passos ecoavam pelo salão logo a frente era no mínimo nostálgico. Era uma reverberação de se dar inveja, mas de que serviria agora?
— Relaxar... é isso que preciso agora — resmunguei ao chegar à cozinha.
Enchi minha chaleira e coloquei-a para esquentar, também ajustando a temperatura da água para 90°C. Coloquei o filtro dentro do hario e esperei a água aquecer. Aquecida estava, coloquei o porta filtro numa caneca e escaldei o filtro.
Ainda não era destro o suficiente com minha mão esquerda, então sempre tentava realizar minhas tarefas com a direita, mesmo sabendo que ela estava um pouco inutilizável. Derrubei um pouco de água no balcão, respingando em minha roupa, então suspirei, passei a chaleira pra esquerda e escaldei a jarra.
Escolhi o grão de maior praticidade, um arábica de torra média, e joguei dentro do moedor elétrico, regulando a moagem para o V60, já colocando uma porcelana embaixo.
Grão moído, joguei o pó no porta filtro e o sacudi para uniformizar.
Balança, jarra em cima da balança, hario em cima da jarra. Tarei a balança e segurei na asa da jarra com bastante firmeza enquanto jogava 50 gramas de água em espiral. Sofri um pouquinho, não fui tão preciso quanto eu gostaria de ter sido, demoraria muito para me acostumar.
Inspirei lentamente, aproveitando o aroma que inundou minha cozinha e, mais uma vez, minha visão acabou indo para a sala de música. Era impossível sentir o cheiro do café sem relacionar a todas as noites em claro que passei com aquele meu companheiro solitário.
Balancei a cabeça, tirando isso da mente, e já hidratei o café com mais 50 gramas de água. Por fim mirei a água para as bordas do filtro, onde se acumulou um pouco do pó, e despejei o restante da água. Era só esperar.
Encarei o piano.
Coloquei a chaleira no balcão, pus minhas mãos no bolso e fui até a porta, chegando mais perto. Em meio ao cheiro de café, a madeira começou a tomar seu lugar. Nem sabia em que momento havia encapado o instrumento, mas sabia que a única vez que ele esteve assim foi quando o comprei, há uns vinte anos.
Sentia saudades da sensação de satisfação que aquele lugar me dava, mas, agora, o único sentimento que restou foi um amargor crescente no meu peito, engasgando no fundo de minha garganta.
O cheiro do café me trouxe imediatamente daquele devaneio, então dei as costas e voltei à cozinha, pegando minha xícara e praticamente correndo de volta para meu escritório, pelos fundos da cozinha.
Abri as portas da varanda e encarei as luzes da cidade que conseguia ver da sacada; dava para enxergar um pedacinho da Lagoa Oliva, podia agradecer a altitude de onde estava minha casa.
A brisa era reconfortante e, naquele momento, me trouxe a calma que eu precisava, mesmo sentindo minha mão direita tremer. Ignorei e suspirei enquanto assoprava o café e o vapor turvava minha visão.
Preciso dormir.
O despertador fez bem o seu trabalho em me acordar num susto estrondoso enquanto sonhava com uma floresta densa e sombria, sem som algum além dos meus passos. Eu estava perdido? Nunca iria saber.
Adiantei o processo de acordar e coloquei um pouco de água para esquentar enquanto tomava um banho. Era meu primeiro dia oficial e não queria me atrasar ou parecer desleixado, mas não podia atropelar meu ritual matinal.
Vestido com apenas uma bermuda, desci correndo as escadas, pensando qual grão iria usar, e não demorei muito para escolher um acaiá de torra média.
Coloquei os grãos no moedor e rapidamente desliguei a água, escaldando o filtro em seguida. O cheiro era maravilhoso, as bolhas que se formavam lentamente quase me acalmavam enquanto derramava a água em movimentos circulares.
Não fui muito ritualístico dessa vez.
Peguei uma boa torradinha, uma geleia de morango um requeijão e sentei à mesa, pondo todos os aparatos do café de lado, prontíssimo para acordar de fato com o gosto do café.
Liguei um breve noticiário em meu celular enquanto sentia a brisa fria da manhã me atingir, junto do sol tímido que se esgueirava pelos vitrais da cozinha. Era um bom começo de dia.
Por fim, fui me vestir. O dia seria um pouco mais frio, então peguei um casaco fino, preto, de gola, e o vesti por baixo de uma camiseta de botões branca; terminando com uma calça marrom de algodão de alfaiataria e um sobretudo cinza meio quadriculado.
Queria dizer que arrumei o cabelo, mas ele estava longo demais para fazer algo além que um rabo de cavalo baixo, então belisquei algumas uvas e corri para a estrada, felizmente, com meu carro.
O cheirinho de novo era ótimo, nenhum tumulto, nada de ficar em pé durante o percurso... a tortura do ônibus havia acabado.
Por mais que minha mão direita estivesse estranha, ela ainda servia para dirigir, mesmo que eu tivesse perdido minha habilitação para motos por claramente não conseguir segurar mais nada com força.
E, que surpresa, minha mãe providenciou um suporte no volante para dar as voltas, mas, tenha santa paciência, não preciso disso.
Retirei o apoio e dei a partida, indo sem muitos rodeios para a galeria.
Achei que fosse trabalhar no ateliê junto com a senhorita pintora que estou agenciando, mas, pelo visto, ela não era muito fã de companhia. Nem eu, então vi apenas vantagens.
A secretária, organizadora de festas, curadora, sejá lá o que diabos ela era, me guiou até onde seria minha mesa e eu apenas a segui em silêncio, ouvindo o diretor, era o diretor, eu achava, chamá-la por Alícia.
Alícia. Assenti com a cabeça e sentei na minha mesa tentando gravar o nome.
O dia estava um pouco letárgico enquanto eu analisava as últimas obras que me foram passadas pelo secretário anterior. Eu precisava apenas encaminhar e arquivar os documentos, resquícios da exposição anterior.
O restante da equipe parecia ser amigável e, quando tive alguns problemas com o programa, uma moça com as pontas dos cabelos pintados de rosa prontamente se ofereceu para ajudar. Disse que fazia parte da equipe de organização de eventos e design e se chamava Stella.
Era quase duas da tarde quando decidi tirar um tempo.
— Oh, Dante — a mulher... a secretária, saudou quando me aproximei da equipe que estava planejando uma exposição, ao que parecia, e discutia alguns detalhes no canto. — Seu trabalho está fluindo bem?
— Bem, sim, por enquanto sem problemas — assenti com um sorrisinho amigável. — Mas gostaria de saber quando vou conhecer a senhorita Shy Dye.
— Ah, ela entrou em contato comigo mais cedo e disse que está terminando um dos quadros da exposição de primavera — apontou, segurando bem uma prancheta e se virando para mim. — Lhe passarei seu contato para conseguir as assinaturas para os registros da galeria. Consegue isso em até dois dias?
— Claro, apenas me envie o contato dela que providenciarei o mais rápido possível — que rapaz mais confiável, ironizei mentalmente lembrando do quanto sofri para memorizar toda a burocracia na noite passada.
Minha pausa foi curta, com algumas apresentações, e, logo que voltei à minha mesa um email da... Alícia... Fernandes? havia chegado. Quem diabos era Alícia Fernandes? Me perguntei enquanto lia o escopo do email e sentava lentamente na cadeira, quando vi que estava falando do contato da Shy Dye.
Ah, era a secretaria.
Retornei ao email agradecendo e me adiantei ao email da pintora.
Me apresentei brevemente e fui direto ao assunto: enviei o formulário de informações técnicas, solicitando preenchimento e sua assinatura, e questionei quando poderia buscar o quadro. Se nossa relação se mantivesse assim, não tinha objeções.
Email enviado, trabalho feito. Mais duas horas e fim do expediente.
Não tinha mais nada de útil para fazer então apenas conversei com... a maldita secretaria, e pedi para observar o andamento dos preparativos para a exposição de primavera para me habituar ao ambiente. Eu diria que minha proatividade possuía limites, mas, naquele momento, estava animado por uma nova etapa num trabalho simples.
Conheci um rapaz engraçado. Era bem humorado demais, ele exalava vitalidade e alegria, chamava-se Vítor. Era estupidamente alto, apesar de eu mesmo ter meus 1,80 de altura, mas ele precisava se abaixar para passar pelas portas. Em contrapartida, tinha uma voz fina, um contraste e tanto. Cabelos bem aparados e muito sorridente.
O ajudei quando me foi requisitada opinião quanto a qual tom de salmão combinaria melhor, como desempate, e escolhi o mais claro. Pela iluminação que estavam discutindo ser algo mais fraco focando apenas na pintura, o claro cairia bem.
Todo o time de curadoria se preparou para terminar o trabalho por hoje e, felizmente, eram pessoas bem agradáveis, até me chamaram para um chá da tarde o qual recusei por já ser o suficiente de interação social por dia sob o pretexto de encerrar o expediente.
Me lembrou... nada, não lembrou nada...
Voltei para minha mesa e havia um email novo.
Endereçado como Shy Dye, ele dizia: "Pode vir amanhã depois do meio-dia. E não sou eu que preencho a papelada, esse é o seu trabalho".
Fiquei atônito por um momento e precisei piscar algumas vezes para ter a certeza de que o que a grosseria gratuita que estava lendo era realmente verdade. Respirei fundo, não podia xingar a pessoa que iria fazer meu depósito bancário no final do mês.
— Acho que vou precisar pedir informação amanhã... — me fiz esse lembrete mental, mas uma pitada de autoconsciência me atingiu.
Como diabos eu teria essas informações? Não fui eu que pintei a merda do quadro! Deveria adivinhar qual o estilo da terceira pincelada à esquerda, bem abaixo daquele vermelho vibrante do gramado? Nem um gramado vermelho fazia sentido para início de conversa!
Respirei fundo mais uma vez. Amanhã eu resolveria isso, meu trabalho acabou por hoje! Juntei minhas coisas, vesti meu casaco, me despedi das pessoas ali ao redor e saí do prédio, indo direto para o estacionamento.
Abri o carro, joguei minha mochila no banco do lado e suspirei.
— Acho que vou tomar algo antes que eu responda aquele email impulsivamente — resmunguei enquanto aquelas palavras passavam de novo e de novo na minha mente.
Mal educada, por isso era uma artista fantasma, se desse as caras não seria famosa.
Fui todo o percurso até uma cafeteria xingando-a de toda ofensa que eu encontrava, e diria que fui bem criativo.
Minha cafeteria básica preferida felizmente não era longe dali, de carro menos ainda, então logo estava em frente ao caixa, pensando no que escolher.
Café. Café? Não tinha tomado uma xícara hoje cedo? Esperava tomar outra mais tarde, então deveria passar agora, não poderia abusar da cafeína.
Mas poderia escolher uma bebida de café, não?
O batido de geleia de morango e leite era ótimo, mas o frio... dane-se, vou tomar café mesmo que tenha um ataque do coração.
— Um café gelado e um milk strawberry... — pedi enquanto olhava as sobremesas. Acho que vou passar na casa de Aurora — e um cheesecake de mirtilo. Pra viagem, por favor.
Ela me entregou uma comanda depois que paguei e esperei pouco mais que quinze minutos até que fosse chamado. A balconista me entregou os pedidos e, quando fui segurar, ela sorriu.
— Não o via por aqui faz um tempo, senhor Dante — e ela lembrava de mim...
— Tive algumas razões para estar longe — pigarreei.
— Sua mão está melhor? — ela perguntou e, sem querer, soltei uma expressão um pouco dolorosa, olhando para a cicatriz que começava no pulso e subia pelo antebraço.
— Bem... na medida do possível — menti dando a conversa como encerrada, me afastando alguns passos para o lado após sorrir.
— Volte sempre! — Se despediu, já saudando um outro cliente.
Nunca iria esquecer o dia que acabei vindo parar aqui para fugir da minha mãe logo após meu segundo acidente. Estava encharcado e, se me lembrava bem... sim, tinha sido naquele dia, eu só queria fugir daquele pandemônio e acabei ganhando um mocha da balconista que, por um acaso, era fã de música clássica e me reconheceu. Fiquei grato por ela não ter me perguntado nada, apesar das notícias que estavam se espalhando como fogo.
Por mais doloroso que fosse, aquele momento e aquele café realmente aqueceram meu coração. Era uma boa memória, eu assumia. Vim todas as vezes que precisei fugir da realidade durante o tempo que fiquei "trancado" em casa.
Voltei ao carro enquanto me encolhia pelo frio. Coloquei o bolo perto da minha bolsa e as bebidas no chão, apesar de que me adiantei com o café gelado, deixando-o no porta copos ao meu lado.
Então dirigi distraído para casa, lembrando de passar na casa de Aurora, até que um sentimento estranho correu pelo meu corpo, me deixando arrepiado, quando vi, pelo canto da minha visão um lugar muito familiar e um homem sair pelo prédio.
Imediatamente freei, me impulsionando um pouco para frente e quase batendo a cabeça no volante. Ouvi algumas buzinas, mas me mantive curvado, segurando o meu peito. Olhei naquela direção, mas não tinha ninguém, apenas a fachada da agência High Tune bem iluminada em branco e preto.
Meu coração estava acelerado, eu respirava com certa dificuldade, então tirei o cinto e abri a porta do carro, puxando o celular para ligar para alguém.
Mas pra quem diabos eu iria ligar...?
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