Capítulo 20 - Louise

Se eu batesse a cabeça na parede, conseguiria uma inspiração?

Já fazia quase um mês! Não importava o quanto eu olhasse para aquela tela em branco, nenhuma ideia vinha, nenhum lampejo de criatividade. Para não estragar mais uma tela, comecei a rabiscar em papéis e cartolinas grandes que joguei no chão da sala do ateliê, aproveitando ser um dia que estava sozinha.

Meu conceito para essa era a destruição, a morte antes do renascimento, então sai rabiscando todas as ideias que eu tive: um lugar vasto, com cinzas, fogo, natureza morta; a degradação do orgânico, mas de todos foi o que menos gostei, já que fui num caminho da podridão e da morbidade; também pensei no vazio assombroso do desconhecido, uma neblina densa, numa floresta alta, que ainda assim era clara, mas eu já tinha abusado demais de neblinas nessa coleção, e eu não queria desenhar a figura humana.

Não fluiu nada. Odiei todas as ideias, então, no dia seguinte, dei uma passadinha na galeria e olhei os outros três quadros.

Um deles já tratava da neblina e o colorido do renascimento, um outro era mais claro e azul, mais feliz e sereno, e o último era o mais contemplativo, onde me permiti não me prender as cores, e apenas me basear nos tons de cinza da minha percepção. Claro, deveria estar bem colorido na verdade, mas eu não fazia ideia e nem tinha vontade de saber.

Tudo era paisagístico, tudo tinha um chamado à nostalgia e ao saudosismo, então queria quebrar isso com esse atual, com uma pintura brutal e dolorosa, então pensei que seria uma boa ideia dar mais uma chance para as chamas. Para o vermelho.

Gastei o dia quase todo encarando os três quadros, mas também não me veio nenhum lampejo.

Pedi ao Dante que me enviasse uma cópia digital das obras se já estivesse disponível, mas ele falou que deveriam ficar prontos até a próxima semana, então acalmei um pouco meus ânimos.

Passei no ateliê, coloquei todos meus rabiscos na minha mochila e voltei para meu apartamento pedalando.

Pensei que olhar as luzes da cidade me daria alguma inspiração, então peguei outra rota, onde poderia dar a volta e ver a grande lagoa no centro da cidade no mirante perto da subida ao lado do complexo de apartamentos que fazia vizinhança com meu prédio.

E lá me sentei, admirando o fim do pôr do sol reluzindo na água. Parecia tão bonito, mas tão melancólico aos meus olhos. Fiz algumas notas mentais e resolvi apenas acabar com o dia, já que estava claro que isso não funcionaria, que a ideia de Agatha era um grande fiasco e que eu não conseguiria trabalhar fora do meu apartamento.

Aquele incômodo que nunca passava, aquela agonia, o vazio frio, a paisagem preto e branco, tão cinza quanto o pó da fuligem e da poeira daquele dia, molhado por aquela tempestade.

Meu coração ficava apertado e minha mente não parava, eu sentia aquele vazio me corroer, sem o calor aconchegante de tudo que perdi, sentia a solidão pesar em meus ombros, como se eu traísse aquele nosso lugar sagrado.

Derrubei então todas as folhas no chão e me debrucei sobre elas, ansiando pela inspiração, por calor, por cor.

Rabisquei mais uma vez, ferozmente, com a brutalidade de ter algo arrancado de mim, dando pinceladas ávidas de um vermelho vivo. Conseguia ver ele brilhar na minha frente, vibrante como me lembrava.

Que se foda o saudosismo, pro inferno com a nostalgia calma, meu coração parecia quebrar a cada pincelada, cada tom de vermelho.

Eu podia ouvir, mais alto e mais alto, tão ensurdecedor, aquela agonia, logo após ouvir da boca dele que estava cansado, que deveríamos tirar umas férias, que deveríamos fazer planos para o próximo verão, mas depois daquele som alto, eu acordei.

Minha cabeça doía, eu tinha batido ela em algum lugar, sentia sangue escorrer por meus cabelos, mas quando olhei para o meu lado, ele estava caído, mergulhado em vermelho.

Lucas estava morto.

"Foi culpa minha!", eu gritava, tentando conter as lágrimas tremidas que escorriam pela minha face.

"Onde você está, Louise?", eu conseguia ouvir a voz assustada de Daniel, o tom ainda estava tão alto... o mundo estava nos mais diversos tons de vermelho, derretendo como a chuva limpando o rosto sem vida dele. Derretendo a cor do mundo entre as tintas que sujavam minhas mãos. Mas era tão longe... como uma lembrança....

"Se eu não tivesse pedido que ele me ajudasse!" berrei em plenos pulmões.

Não ouvi mais nada além dos meus gritos, então me encolhi, fechei os olhos para aquela realidade e me encolhi no chão, soluçando, pondo a mão no meu peito.

Quanto tempo havia passado? Eu não sabia. Mas eu sabia que ele estaria ali, ao meu lado, me encarando com aqueles olhos mortos, com os trovões ecoando, rasgando o céu.

— Louise! — Ouvi alguém me chamar. Era a voz dele.

— Vá embora! — berrei, apertando meus ouvidos — Você se foi há tempo o suficiente, vá embora!

— Louise! — ele repetiu, num ruído gutural, grotesco, e tocou meu braço, eu não podia olhar. Eu não deveria olhar, ele não estava ali de fato!

Mas... ainda assim, ele estava aqui.

Levantei um pouco o meu rosto, apenas para ver a sua face torcida, estática, banhada de sangue e molhada pela chuva.

— Não! — Soltei a mão dele e me joguei para trás, até que fui abraçada.

— Ei! Relaxa! Relaxa... sou eu, fica calma, já passou — Daniel acariciou meus cabelos e eu o abracei, segurando sua camisa com força.

Não falamos nada. Ele não perguntou nada, apenas me segurou até que eu parasse de tremer e soluçar.

Então me deixou sentada no chão, enquanto olhava para os arredores. Saiu por um momento e voltou, passando um paninho úmido em meu rosto.

— Uma obra de arte o que fez na sala, querida, mas não se pinte também, pelo amor de deus — pediu, num tom leve, e eu dei um sorrisinho em resposta.

— Acho que tive uma ideia para o quadro...

Ele suspirou e negou com a cabeça, me levantando e me levando até o banheiro, onde me sentou na banheira e abriu a água quente sem fechar o ralo para a tinta escorrer. A banheira que Lucas brincava ser o mais perto de algo luxuoso em sua vida.

Pegou um solvente e começou a limpar meus dedos e braços; apenas deixei que tirasse a tinta vermelha da minha pele.

Tudo estava turvo como um véu de névoa fria e escarlate. Sentia um calor subindo por meu corpo, podia ver que estava quase livre da tinta, a banheira enchendo, bolhas se formando e estava sozinha. Queria apenas dormir e fingir que esse dia não havia acontecido, que aquele dia não tinha passado de um pesadelo. A dor de cabeça era tão intensa que apenas notei estar limpa quando acordei, na sua casa.

Então levantei, olhei para os vestígios de vermelho começando a acinzentar em meus dedos, e arrastei os chinelos até o lado de fora, onde um escritor descabelado tomava um chá morno na sua caneca de gatinho.

E falando em gatinho, lá estava o persa de pelagem siamês escura - ao que me lembrava -, com olhos bem claros, vindo até mim com miadinhos lentos e baixos.

— Caco! — chamei, me abaixando ao vê-lo se aproximar. Ele se esfregou em meus pés e miou alto, esperando que o pegasse no colo.

— Dormiu bem? — perguntou Daniel sem tirar os olhos dos papéis que lia.

— Dormi... obrigada por ontem, nem notei quando te liguei — falei em tom manso, indo até a cadeira à sua frente e sentando, deixando Caco correr para se jogar no chão com a barriga para cima e as patas abertas.

— É para isso que servem os amigos... Mas devo dizer que não esperava que a mudança de ambiente te afetaria tanto... — apontou Daniel, desviando o olhar para mim, e eu me encolhi.

— Falei para vocês, não me dão ouvidos, espero que parem com isso e me deixem...

— Ficar estagnada na segurança do apartamento de Lucas não é a solução — contrapôs, deixando os papéis sobre a mesa de centro e abaixando seus óculos de leitura — Já fazem cinco anos, Louise, você sempre dizia que já tinha superado, mas você sabe que não.

— Isso e aquilo são coisas diferentes — alinhei minhas costas. — Não é porque superei a morte de Lucas que devo deixar tudo que vivemos para trás. Sabe como me sinto em relação a situações novas.

— Mas se ancorar a esse passado não é saudável. Por mais que eu entenda seu apego, por mais que eu saiba que você não quer deixar o mundo colorido da sua memória, a gente precisa encarar a realidade! — seu tom firme de sempre me deu o pouco de auto consciência que eu precisava. — Lucas está...

— Eu sei! — cortei, antes que ele completasse, então levantei e caminhei de volta para o quarto. — Não continue, eu sei!

— Não vai nos convencer a desistir do ateliê, você sabe disso. Vamos estar aqui quando você precisar, mas vamos dar esse passo para frente — assegurou Daniel e suspirei em desistência. Então dei de ombros e entrei no quarto. — O que vai fazer?

— Tenho um quadro para pintar.

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