Capítulo 2 - Louise
Estava exausta.
Fazia um tempo que não dormia tão mal quanto nesses últimos dias em que me mantive informada da promoção de Keito.
Agatha havia me ligado no início da semana passada, pouco antes de "fugir" para os EUA, avisando que Keito, seu namorado, noivo, seja lá qual o nível da relação deles a esse ponto, ficaria a cargo de gerenciar a galeria num geral não apenas a mim como um assessor particular, já que tínhamos novos artistas na galeria e seu "adorável pudinzinho" seria melhor gerenciando-a como um todo, além das viagens mais frequentes para a promoção da galeria.
Ela ainda teve a coragem de me dizer que iria contratar um novo secretário para mim. Ela iria me jogar nas mãos de um maldito estranho.
Por isso ela fugiu, tinha certeza, não me deu tempo nem mesmo de protestar, estava com um voo marcado para poucas horas e só me devolveu uma explicação melhor quando pisou em solo americano.
"Seja mais paciente, Louise, nossa galeria está crescendo, isso não é bom?", foi a desculpa dela, completando ser o irmão mais novo de uma conhecida de Daniel. Ficava muito feliz sabendo que era um contato da parte de alguém tão confiável!
Não que Daniel não fosse confiável. Apenas não confiava nas indicações esquisitas dele, depois de meia dúzia deles terem me dado mais dor de cabeça do que soluções.
Passei a semana toda com isso na cabeça, tentando me convencer de que seria uma boa coisa, a galeria estava crescendo, Kei era competente, era óbvio que não podia ficar apenas cuidando de mim, não era?
Mas a minha parte racional não conseguiu tomar controle da situação e me neguei a aceitar até tomar coragem para ir na galeria.
Me vesti de maneira mais neutra possível, ou era o que eu esperava que estivesse vestindo, amarrei o capuz em minha cabeça e saí rapidamente de casa. Era perto, eu diria dez minutos de caminhada no máximo, e quando finalmente cheguei, escolhi entrar pelos fundos, pela sala dos funcionários.
Queria apenas deslizar como um cubo de gelo até a sala de Kei, sem precisar saudar ninguém, mas tinha um imbecil no caminho, parado olhando para a tela do celular enquanto engolia um copo de água.
Tentei fazer algum contato visual sem precisar falar, ou tocar, mantendo uma distância higiênica adequada, mas aquele energúmeno estava concentrado demais na tela brilhante em sua frente ou no que quer que estivesse passando em sua cabeça.
Ele desligou o celular e devolveu ao bolso, e pensei, erroneamente, que seria notada e que me daria espaço, mas continuou perdido no mundo das nuvens, suspirando e fazendo umas expressões estranhas.
Juntei toda a minha força de vontade, pigarreei e puxei levemente a manga de seu terno.
— Pode me dar licença? — pedi, evitando contato visual, e ele saiu da frente, me deixando seguir para onde estava Alícia, nossa curadora, como sempre muito bem vestida numa elegância estupenda, até demais pra um dia normal de trabalho.
Não precisamos trocar uma palavra sequer, ela apenas sorriu para mim e apontou com as mãos para o escritório de Keito, tomando a dianteira para me conduzir para a sala que, até dias atrás, não pertencia a ninguém.
Ela se despediu e mimiquei o melhor sorriso que consegui, um encolher de sobrancelhas e um lábio crispado artificialmente puxado nos cantos, já abrindo a porta sem muitos rodeios.
O homem sobressaltou em sua cadeira ao me ver, se endireitou e tirou os pés de cima da mesa, com uma expressão imensamente contrariada.
— Não sabe bater? — resfolegou, tentando manter um certo autocontrole, mas antes que eu respondesse, ele suspirou e me mandou fechar a porta com um gesto de sua mão. — O que quer, Louise?
Era um rapaz de boa aparência, se me lembrava bem tinha cabelos e olhos castanho-escuros. Tinha olhos grandes apesar de bem acentuados, boa estatura, cabelos injustamente lisos... Agatha havia pescado um bom partido na faculdade... mas, por algum motivo, não nos dávamos muito bem, apesar de sua competência.
Era mestiço, japonês e brasileiro, nascido no Japão, veio fazer faculdade em Monte da Alvorada e foi quando Agatha o arrastou para nosso grupo.
— Não quero um secretário novo, eu consigo me virar — fui direto ao ponto, retirando o capuz e indo até uma cadeira em frente a sua mesa.
— Consegue se virar? — a expressão dele passou a ser uma carranca debochada e eu assenti. — Seja realista.
— Não quero um completo novato cuidando disso por mim, um completo desconhecido! — retruquei num tom um tanto consternado. — Não vou nem levar ao mérito de vazamento de informações.
— Louise... é pra isso que serve um contrato...
— Eu já disse que não quero um secretário novo! — elevei o tom de voz batendo o pé no chão.
— Você não tem opção, Louise! — Ele também acompanhou o tom de voz, acentuando o sotaque apesar de já estar há mais de dez anos no Brasil, levantando da mesa. — Vai organizar suas próprias exposições? Sua agenda? Suas reuniões?
— Mas eu tenho você pra isso... Não vai gerenciar a galeria? Sou a artista com maior público daqui...
— Eu fui promovido. Você não pode ficar sozinha, você não consegue lidar com eventos, Louise, por isso escolheu ser uma artista fantasma, não consigo lidar com sua agenda complicada e dos outros artistas e a Agatha além de ter suas próprias funcoesestá nos EUA promovendo seus quadros da exposição passada — deu uma breve pausa, vendo minha expressão murchar um pouco. — E mesmo quando ela voltar, ela é a diretora, tem mais coisas para fazer do que ser sua agente pessoal, então aceite de uma vez, o novato é competente — assegurou arrumando sua gravata e os cabelos ridiculamente lisos que saiam um pouco do alinhamento de gel.
— Mas eu não o conheço, Keito! Não quero ter que conhecer ninguém novo, vocês são mais do que o suficiente para meu círculo pessoal de amigos — completei, também ficando de pé.
— E quem lhe disse que precisa ser amiga dele, por tudo que é mais sagrado nessa terra? — me lançou um olhar angulado com as sobrancelhas arqueadas, como se eu tivesse falado o maior absurdo do mundo. — É um trabalho, ele só vai organizar sua agenda e eventos sociais. Se não quiser, não precisa nem olhar na cara dele, só mande tudo por email e o encontre para entregar os novos quadros — sugeriu e eu suspirei, desanimada, indo para a porta. — Além do mais, precisa superar logo seu momento de reclusão em seu apartamento. Conhecer alguém novo pode ser revigorante às vezes, sabia?
Preferia morrer.
Mas dei essa pequena discussão, que não levaria a nada, como encerrada e sai pela porta, me arrastando vagarosamente pelo corredor enquanto Kei me observava.
— Não falo isso por maldade, Louise, você sabe disso — ele completou quando cheguei ao fim do corredor.
— Tanto faz... quando preciso conhecer ele? — questionei ao revirar os olhos e cruzar os braços.
— Ele veio hoje mais cedo, não o encontrou por aí?
— Encontrei um imbecil no meio do meu caminho parado igual uma porta e voando no mundo da lua — retruquei. Era essa pontinha de consciência que precisava para notar que... — Já o conheci, não é?
— Acho que sim. Pegue leve com ele.
Acenei e virei para o salão principal, fazendo uma reverência brincalhona para Alícia, como se estivesse usando um vestido de época europeu, e finalmente saí do prédio pelo mesmo lugar que entrei.
Eu já era a porta voz da Shy Dye e dava entrevistas como uma assessora, não deveria ser difícil cuidar do resto das minhas obrigações, mas, ainda assim, só de pensar em lidar com os compromissos sociais maiores, marcar e desmarcar coisas, cuidar da burocracia... era melhor que não fosse eu.
"Aceitar" talvez fosse uma palavra forte demais, daria ao menos uma chance. Uma chance antes de demiti-lo por incompetência ou algo assim, arruinar algum de meus quadros, esquecer um compromisso, algo com justa causa, e convencê-los que era muito melhor apenas aumentar as horas de trabalho de Keito.
Olhei para o céu e vi aquele cinza brilhante, tinha certeza que estava azul claro, reluzente... a briza condizia com um clima agradável, apesar de ainda estar frio, apesar de ainda parecer nublado.
Fui caminhando lentamente, arrastando os pés no chão enquanto murmurava uma melodia sem sentido e passei em frente a um prédio alto, de arquitetura bonita, arbustos na frente.
Me lembrei daquele dia...
Ah, que sentimento ruim. Retirei aquela memória da mente e corri até a loja de conveniência mais próxima, viver de comida de conveniência era ótimo. Sanduíches naturais e pratinhos de comida pronta, inspiração o suficiente para o resto da tarde.
Meu celular chamou enquanto saia pela porta com um bolinho na boca e pesquei-o em meu bolso, dando um sorrisinho após ver o nome que piscava na tela, sentindo todo o meu mau humor ser levado embora.
Parecia que apenas eu teria inspiração.
— Louise... — choramingou a voz com um sotaque sulense muito acentuado. — Me ajuda!
— Daniel... Dani... no que você se meteu? — brinquei ao parar na frente da portaria do meu apartamento, tendo o acesso liberado sem nenhuma palavra trocada.
— Sabe, você sabe sim, eu lhe contei no mês passado. Meu novo romance, aquela fantasia. Encontrei muitas pontas soltas, preciso da sua ajuda, você tem ideias tão boas, por favor, não me diga que está ocupada, eu imploro! — se atropelou com as palavras, nem ao menos me dando chance de negar.
Mas, como eu não tinha intenção alguma de negar, sorri e subi até o terceiro andar.
— Venha para cá, posso ouvir enquanto termino meu quadro.
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