Capítulo 19 - Dante
Fui informado logo cedo que meu local de trabalho mudaria em poucos dias.
Seria transferido para trabalhar no ateliê de Louise algumas vezes na semana pela praticidade de trabalhar perto dela, por consequência do maior espaço do lugar e uma maior conveniência em eventuais ajudas, já que eu estava passando tempo demais sem o motivo para o qual fui contratado, ser o secretário dela.
Bem, não era como se eu pudesse negar ou tivesse achado uma ideia ruim, a única coisa que incomodava era o fato de que a última vez que a vi foi naquele maldito bar...
Conseguia lembrar com clareza demais de toda a besteira que falei e definitivamente não sabia como iria encará-la sem morrer de vergonha, mas... não podia negar.
O dia logo após minha bebedeira consistiu em Aurora na minha casa, me ajudando com a ressaca, já que era sábado. Perguntei incessantemente o porquê dela ter me deixado beber tanto, já que estava tão restritiva com relação ao álcool, mas ela apenas deu de ombros, afirmando que não via perigo algum se eu estivesse o tempo todo ao seu lado.
E eu estava muito mal acostumado...
Logo era domingo, então passei o dia cozinhando para os próximos dias. Na segunda-feira da próxima semana eu iria para o ateliê. E meus dias de trabalho se seguiram da forma mais monótona possível; para minha felicidade, nada aconteceu.
Quando a outra segunda chegou, ponderei sobre o que dizer: poderia começar o dia já pedindo desculpas à Louise pelo ocorrido, mas não tinha certeza de sua reação, ela mesma parecia não se importar com essas coisas por muito tempo; ou também poderia apenas ignorar, então mantive minhas opções abertas.
Cheguei cedo na galeria, peguei as chaves que me deram por garantia e segui até o ateliê, me perguntando se ela já estava lá.
A porta estava fechada, então a destranquei e entrei, vendo a casa bem iluminada se abrir na minha frente. Mas nenhum som, nenhum sinal dela.
Dei alguns passos cautelosos, me sentindo um criminoso invasor de propriedades, até que desviei minha atenção para o seu quarto de pintura, onde uma criatura - com uma trança meio feita meio solta - estava agachada em frente a um quadro em branco, imovel, em silêncio, apenas parecendo encarar.
Parecia uma assombração.
— Louise...? — sussurrei. Ela não pareceu ouvir. — Louise!
Ela sobressaltou, virando na minha direção num movimento brusco, me revelando a expressão mais cansada que já vi no rosto de um ser humano. Parecia que estava derretendo, seus olhos estavam com olheiras fundas, tão sem vida quanto um peixe morto há uma semana.
Assombração... fantasma...
Então abaixou o olhar logo suspirou.
— Ah, é você, Dante... — seu tom também estava cansado.
— Porque está aí no chão? — Olhei ao redor, o quarto já estava mobiliado e tinha um suporte para telas, banquinhos, mas lá estava ela, no chão. — Por acaso... ainda está com bloqueio?
— Parece ser o caso — levantou e passou por mim, me dando um tapinha no ombro. — Venha, vou lhe levar para sua sala.
Chamou, arrastando os chinelos pelo piso, já se dirigindo para a outra sala ao lado. Esperou que eu me aproximasse da porta e me deu passagem.
Era um escritório simples, tinha uma mesa em formato de "L" na parede oposta à porta, uma poltrona e uma estante ao lado de um pequeno móvel, onde havia uma impressora em cima, completando com uma cadeira de escritório simples e um computador sobre a mesa.
— Não está quente, mas sinta-se livre para ligar o ar condicionado se quiser, vou apenas me concentrar e procurar algo para fazer — se adiantou, dando meia volta e indo para a cozinha.
Ela não apenas parecia como um fantasma, estava monótona como um fantasma.
Dei de ombros e imaginei que seria melhor deixá-la ter seu tempo, então pus minha bolsa sobre a mesa e sentei, ligando o computador e o ar condicionado. Não estava quente agora, mas iria esquentar, queria apenas manter a temperatura.
Esqueci de me desculpar sobre o outro dia, mas vendo como ela estava... parecia estar pouco se importando com isso, então não era o melhor momento para mencionar.
Meu dia se resumiu a editar os pedidos de compras e aprovação de verba para enviar para a diretoria. Não era um processo difícil, apenas muito chato e repetitivo. De tarde eu já estava começando a perder os parafusos, então resolvi dar uma pausa.
Peguei um potinho quadrado na minha bolsa, seguindo para a cozinha, até que olhei na direção dela e lá estava, plantada na frente do quadro com poucos rabiscos. Era um avanço.
Havia sido informado que poderia usar o que estivesse disposto na cozinha e afins, então fui à geladeira, onde, para minha surpresa, estava lotada de água com gás.
Olhei então nos armários, havia algumas garrafas de xarope, e bem mais para o lado, que sorte, potes de biscoitos caseiros. Só pude pensar que combinava com a anfitriã.
— Louise, quer uma bebida? — perguntei, já que faria uma para mim.
— Aceito!
Peguei então dois copos grandes, pus gelo até a metade e o xarope logo em seguida. De limão, fui simplista, e então a água com gás.
Soda Italiana pronta, levei para ela, que agradeceu com um olhar e levantou, indo pegar alguns biscoitos.
Nesse lugar faltavam opções de bebidas... algum suco, refrigerantes, um café...
Um café... adoraria um café agora, seria ótimo...
Voltei para o escritório e sentei, desviando o olhar para a data. Deveria começar a temporada de concertos em alguns meses, as preparações para as festas de fim de ano... nessa época eu estaria perdendo toda minha energia e paciência em apresentações conjuntas ou solo...
Minha cabeça vagueou um pouco sobre o assunto. Não deveria, mas acabei pesquisando informações sobre o concerto de música clássica que deveria acontecer em alguns meses, antes do Festival da Alvorada.
Um pouco masoquista da minha parte, já que seria o primeiro ano desde que entrei pro ramo da música que não seria um dos participantes.
Meu almoço era simples, arroz, feijão, frango em cubinhos frito e alguns legumes cozidos. Não estava muito criativo quanto ao que cozinhar, então fui no comum. Estava gostoso ao meu paladar, não era o melhor cozinheiro do mundo, minha culinária era de sobrevivência, mas às vezes eu acertava.
Vi os vídeos de apresentação dos convidados, mas, quando foi anunciado os participantes de Monte da Alvorada, talvez fosse masoquismo demais, então adiantei e passei para as datas, o que me lembrava, fazia tempos que não falava com Elise, talvez eu devesse perguntar a ela sobre... seria daqui um mês e meio.
E pensei em pesquisar meu nome, já que não tinha ideia sobre o que diabos a mídia estava comentando sobre mim, desde que... bem, desisti da minha carreira como músico, mas ouvi passos se aproximando, me trazendo de volta para minha realidade.
— Dante, já almoçou...? — apareceu minha chefe na porta, com uma expressão curiosa, e eu me virei.
— Sim, eu trouxe minha comida, então... — fui direto, apontando para a vasilha vazia ao lado, notando já ser mais de duas da tarde.
— Ah, certo... Agatha deixou algumas marmitas congeladas no freezer... — ela murmurou, meio avoada, e voltou para a cozinha.
Dessa vez suas roupas eram... muito chamativas. Os shorts eram rosa enquanto a blusa um verde água com estampa de margaridas brancas além das manchas de tinta. Isso que era estar confortável no trabalho...
Parecia estar no automático, e, vinte minutos depois, voltou, indo direto para a poltrona, com um pratinho no colo, me encarando sem falar uma palavra.
— Se importa se eu comer aqui? — perguntou, ainda com o mesmo tom desanimado, então neguei e ela deu uma garfada no que parecia ser um espaguete.
— Não, vá em frente — respondi, dando de ombros, então achei um momento oportuno: — Ah, sobre sexta passada, desculpe pela forma que agi, não estava com a cabeça muito no lugar...
Ela riu.
— Bem lembrado! — se iluminou um pouquinho, aprumando as costas na poltrona. — Me diverti bastante... Cara, você não pode beber se toda vez fica daquele jeito, principalmente se estiver sozinho!
— Eu só estava desacostumado! — retruquei, inconformado como o tom dela mudou subitamente. — Fazia um tempo que não colocava uma gota de álcool na boca.
— Mas não está se defendendo quanto a como agiu, então realmente fica assim? — ela quase berrou. — Aquele é seu normal?!
— Não! — tentei negar, mas eu já estava ficando envergonhado, deveria estar vermelho como um pimentão, então não adiantava mentir. — Sim...
Gargalhou alto, colocando seu prato ao lado para não derrubar.
— Foi tão engraçado, você fala tudo que dá na telha! — continuou a rir, até que mudou para uma expressão séria. — Não é problemático ser tão expressivo assim? Como conseguiu manter convenções sociais por todo esse tempo?
Fiz careta. Ela só iria ficar tirando uma com minha cara, então escolhi não comprar essa guerra.
— Mas, me diga, se eu estiver me metendo demais, sinta-se livre para não responder... — mencionou, cuidadosa, e eu me virei apenas para lhe encarar com o canto do olho — Porque você está trabalhando pra mim?
— Porque alguém estaria trabalhando? Não é auto explicativo? — afirmei rapidamente, mas ela negou com a cabeça.
— Porque você, um pianista, está trabalhando como um secretário qualquer? — Isso me pegou desprevenido, não consegui disfarçar a expressão e ela deu de ombros. — Você deu muitas dicas, sabe? Falou sobre isolamento acústico, ficou testando o eco da casa, mencionou que tocava um instrumento... já tive um amigo músico, então...
Então ela sabia quem eu era e ainda assim não havia falado nada até então? Eu paralisei instantaneamente, entregando minha resposta, então não poderia negar o fato do meu passado; tentei me acalmar e formular uma resposta coerente, antes que começasse a tremer.
— Pensei que já tinha falado ser culpa da minha mão — tentei evadir, revelando apenas o suficiente e o que era óbvio. Mas não parecia que havia comprado minha explicação.
— Ah, sério? Foi grave ao ponto de te fazer desistir? — Questionou, e eu olhei para minha mão.
— Foi uma fratura exposta.
Tentei dar um ponto final e ela assentiu com a cabeça. Parecia que ainda queria perguntar alguma coisa, mas deixou para lá. E eu agradeci por isso.
— É uma pena. Você parece ser bom no que fazia — ela deu de ombros e se levantou.
— Mas se você sabia, porque perguntou? — foi minha vez de inquirir. E ela negou com a cabeça.
— Não gosto de confiar em tudo que ouço por aí, existem muitas inverdades em meio a um fato — pontuou e saiu.
Se ela sabia, porque não falou antes, porque me contratou? Mais importante, o quanto ela sabia?
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