XXIV| Guerreiro Safira

      A aura negra queimava nos braços de José como se fossem fogo, e as suas faíscas dançaram no ar quando o jovem parou a poucos metros de Nicholas, que o encarava com um semblante sério.
      — Vem com tudo, cãozinho da Divisão — provocou o integrante da equipe X, ao mesmo tempo em que erguia as mãos em posição de ataque.
      Mais rápido do que o Nicholas ou o próprio José pudessem perceber, uma bolinha de Dinks passou por entre eles, criando uma barreira atrás tanto do garoto da K2 quanto do da A1 para mostrar que nenhum poderia sair daquele espaço – ou essa era a intenção do Rey, todavia, se o Nicholas desejasse, bastava se teleportar para o outro lado que adquiriria sua liberdade de volta. Com o campo de força delimitando a área que iriam lutar – e protegendo o Alephe da aproximação do homem do governo – a ovelha negra encarou o seu adversário com um olhar determinado. Ele poderia simplesmente se teleportar e fugir, mas tinha contas para acertar com o cãozinho da Divisão em sua frente... e era melhor tentar escapar de apenas uma pessoa do que de duas, principalmente quando uma delas era um general. Sendo assim, o jovem se preparou para o embate que se seguiria.
      — Você tem dez minutos para acabar com isso e se provar digno — informou Rey ao José, que, ao ouvir aquilo, ergueu os braços na direção do seu inimigo, fazendo com que o seu fogo negro disparasse rumo ao menino.
      Imediatamente, Nicholas abriu um portal em frente ao seu corpo, fazendo com que aquele poder acertasse o mundo além da sua habilidade; o círculo azulado ainda estava aberto quando o fogo preto se expandiu, contornando o portal e tomando conta de toda a área ao redor do rapaz da K2. Com uma risada triunfante e um fechar de mãos, a escuridão engoliu o ambiente em que o Nicholas estava, quase como se a aura estivesse faminta pelo garoto.
      O sorrisinho triunfante e sádico de José não saiu de seus lábios mesmo quando o jovem da K2 surgiu a poucos metros de si graças ao teleporte. Outro portal azul escuro, dessa vez num tamanho bem menor, abriu-se próximo a mão da ovelha negra, que puxou um bastão de dentro daquele outro mundo e o direcionou rumo ao rosto de seu rival. O nariz do indivíduo da A1 agonizou de dor, como que reconhecendo que o rapaz em sua frente fora o responsável pelos ossos quebrados, e essa aflição serviu como combustível para o José rugir e agarrar o bastão metálico que ia até si com as mãos cobertas pela aura escura. Quando o objeto foi segurado pelo cão da Divisão, a chama de seus poderes engoliu o material tão depressa que o Nicholas quase não teve tempo de largar a arma antes que aqueles poderes o alcançassem. Um segundo a mais e as dores que aquela escuridão causava o torturaria. Pelo Nicholas ter dado um passo para trás, para sair do alcance da habilidade de seu adversário, um brilho predatório foi emitido pelos olhos de José.
      O jovem da K2 sentiu o toque das chamas negras em suas costas antes da dor começar a irradiar pelo seu físico. A aura que estava atrás de si há pouco, que quase o havia engolido, já o tinha alcançado outra vez – mas agora tivera sucesso em acerta-lo. A ovelha negra se teleportou para a pequena área atrás de José, o único local que ainda não havia sido preenchido por aquele poder, contudo, mesmo fazendo isso, a chama que o havia atingido nas costas não sumiu, e a queimação que ela lhe causava o fez ranger os dentes numa tentativa de aguentar a dor.
      O sorriso de José se alargou.
      — Acabou.
      Nicholas estava prestes a rebater o comentário de seu adversário quando os seus olhos arregalaram; antes que ele tivesse tempo de pensar em fazer qualquer coisa, até mesmo se teleportar para fora da barreira que o prendia junto ao seu rival, a aura preta que o José controlava tomou conta de todo aquele espaço, engolindo toda a luz e transformando a vida do Nicholas em uma completa prisão de escuridão e dor.
      Às vezes parecia que estavam passando lentamente uma faca por cada centímetro de seu corpo; outras vezes parecia que seu físico estava em chamas, queimando-o por dentro e tornando impossível até gritar; dores críticas como ossos quebrados, socos, tiros e até chicotadas perpassaram pelo corpo de Nicholas, que recebia essas sensações numa velocidade tão rápida que não conseguia pensar em nada além de manter a boca aberta, mas os gritos ou gemidos de dor não saíam. O rapaz sabia que aquilo não estava realmente acontecendo consigo, já que os poderes de José consistiam em enganar o cérebro para fazê-lo pensar que aquelas coisas estavam mesmo ocorrendo, mas... era tão real. O corpo do jovem pesava demais para que ele pudesse tentar fugir da escuridão, e a sua mente não conseguia focar em nada que não fosse as aflições que eram sofridas pelo seu físico; cada segundo trazia consigo uma sensação desesperadora diferente.
      Nicholas poderia ter jurado ouvir Alephe gritar o seu nome do lado de fora, porém, diante daquela escuridão e das dores, o rapaz da K2 se viu mais inútil e incapaz que nunca; aquela tortura o estava consumindo de dentro para fora, mostrando o quão indefeso ele era. A agonia era tão intensa, que, naquele momento, nada era mais importante que fazer com que aquilo parasse; um gemido fino pôde ser emitido do fundo da garganta do jovem quando ele fechou os olhos cheios de lágrimas com força e...
      Desejou a morte.

      Ao lado norte do reino Hope, a um mar de distância da ilha fantasma, o choro de uma criança tomou conta da pequena sala azul. O bebê foi recebido com um largo sorriso pela mulher de esvoaçantes cabelos castanhos, e o homem que havia segurado a mão dela durante todo o parto não conteve as lágrimas de alegria quando o pequenino foi segurado pela sua esposa. A mãe daquele pequeno ser o beijou na testa com tanto carinho e amor que mais parecia que era o primeiro e último ato de afeto que iria transmitir à criança – talvez ela acreditava que fosse. Lágrimas de dor, alívio e, principalmente, felicidade escorriam pelos penetrantes olhos âmbar da progenitora, e o homem ao seu lado se sentia dessa mesma forma.
      No canto da sala estreita, um ancião sorriu ao notar que o nascimento do garoto havia sido um sucesso.    
      — Nicholas — proclamou a mãe, com a voz rouca. Aquele nome foi proferido com tanto apreço e carinho que a criança, que antes não parava de chorar, calou-se; com a sala em silêncio, a mulher levou aqueles olhos dourados de encontro aos olhos escuros do marido, que brilhavam devido as lágrimas. Ela assentiu com a cabeça, chamando-o para que se aproximasse do filho, e o homem se abaixou, com um certo receio. O bebê era tão pequeno que ele tinha medo de acabar ferindo-o sem querer. Com toda a delicadeza que pôde usar, o homem passou o dedo calejado pelos fios castanhos claros do pequeno, mas, ao sentir o seu toque, o choro do recém nascido irrompeu outra vez, fazendo o pai arregalar os olhos e se afastar abruptamente; a mulher riu fraco, devido as dores que ainda sentia. — Fale, ele reconhecerá a sua voz.
      O homem passou a mão pelos cabelos marrons, assustado, e precisou pigarrear algumas vezes, tentando encontrar voz para se comunicar com o pequenino.
      — F-Filho...? — chamou-o; a sua voz estava fraca, já que o mesmo tentava controlar o choro; diante da fala dele, a criança ficou em silêncio outra vez, como se reconhecesse o dono daquele timbre. O homem respirou da forma mais calma que pôde para que pudesse aproximar a ponta de seu dedo dos finos fios de cabelo do bebê, que, dessa vez, não chorou ao sentir o toque. Aquilo fez um sorriso contido se abrir na boca do homem, que olhou para a esposa com uma grande alegria no olhar; — Você é o garotinho mais amado do mundo inteiro, não esqueça disso nunca — disse, e as lágrimas que tentava segurar caíram quando a criança emitiu um gemido, como se o estivesse respondendo; a progenitora também se rendeu ao choro quando, após o gemido, o pequeno deu uma risada. — E-Ele sorriu! — gaguejou, em choque, e seus lábios tremeram ao formar um sorriso também. — Ele me ama! — disse à esposa, que o encarou com um olhar sábio, como se estivesse dizendo “Por que não amaria, seu pai coruja?”. O homem tirou o dedo do cabelo do filho para acariciar e limpar as lágrimas da bochecha da mulher, que fechou os olhos ao sentir o contato dele. — Vocês dois são a minha vida.
      Quando a mulher ia abrir a boca para respondê-lo, o momento de ternura foi interrompido, pois um espírito saiu de dentro do corpo do homem, atraindo a atenção de ambos os progenitores. A marca de um círculo, que se localizava na testa do pai do pequeno bebê, pareceu brilhar rapidamente quando o ser saiu de dentro de si; aquele homem era um espiritual que ainda carregava o espírito em seu interior – coisa que lhe conferia o dobro de poder.
      — Quer mesmo que eu faça isso? — indagou o espírito, tirando os olhos da criança para leva-lo até os pais. — Eu o abençoarei com os meus poderes, mas isso não quer dizer que ele vá herda-lo. Há a possibilidade dele não conseguir despertar o dom, além do mais, isso vai tornar o controle das outras habilidades dele, caso chegue a ter, numa total confusão. Não ter poderes, ter poderes, mas não conseguir controla-los direito ou despertar as minhas habilidades e, ainda assim, ter dificuldade para aprende-las no início. Ou criança ganhará poderes exuberantes, ou não conseguirá controlar os poderes pelo resto da vida ou não terá poderes. Querem mesmo que eu prossiga?
      — Sim — respondeu o homem, que observou a sua esposa com firmeza e uma pontada de receio  no olhar.
      — Ele é nosso filho — disse ela, notando o leve temor do marido. — Não tenho dúvidas de que será capaz de despertar esses poderes e de mudar esse mundo.
      O homem sorriu quando a mulher o fez; o espírito assentiu com a cabeça e tocou na testa do menino. Por um instante, um brilho perpassou pelo local que o ser havia tocado, mas logo sumiu.
      No canto da sala, Nico observava tudo com um nó na garganta; ele parecia estar mais triste do que feliz. Lentamente e em silêncio, para não atrapalhar o momento do casal, o ancião saiu da sala e, assim que fechou a porta atrás de si, soltou um suspiro pesado.
      — Senhor Nico? — questionou um homem, um dos poucos que estavam naquele local; além dos pais da criança, do Nico, das duas parteiras e deste e outro guarda, não havia mais ninguém num raio de quilômetros. Apenas pessoas de confiança sabiam da existência daquele bebê. — Aconteceu algo com a criança?
      — Ainda não, Taz — o guerreiro engoliu em seco perante a resposta do mais velho. — Assim que ele parar de mamar, terá de se separar dos pais e viver praticamente como se fosse órfão. O governo não pode saber da sua linhagem, ninguém pode saber quem ele realmente é, tanto pela segurança dele quanto pela de seus progenitores... Não nada será fácil, tanto para ele quanto para os pais.
      O homem de cabelos pretos lisos como a noite, que chegavam até o ombro, levou os olhos ônix até a porta em que os pais do bebê estavam reunidos; Nico observou o olhar do homem, e analisou a longa cicatriz que o guerreiro tinha no olho direito, que se iniciava desde o início da testa e se estendia até o pescoço e, provavelmente, até alguma parte do abdômen – o velho não fazia ideia de como o guerreiro ainda conseguia enxergar com aquele olho. Quando o Taz voltou a sua atenção ao Nico, tendo que baixar a cabeça para que pudesse encarar o ancião – graças a sua alta estatura de um metro e noventa e três – ele abriu um sorriso confiante.
      — Eles são uma família poderosa! — declarou, com firmeza e respeito. — Vão conseguir.
      Nico encarou o homem com um olhar abatido, e, instintivamente, os seus olhos perpassaram por todo o físico malhado do guerreiro, avaliando aquele corpo fortalecido e marcado pelas várias batalhas travadas. Provavelmente haveriam várias outras cicatrizes em seu corpo, além da do olho. Por um instante, Nico enxergou o seu neto ali, enxergou o tipo de futuro que o aguardava.
      Um amanhã de luta, não de paz.
      — Espero que esteja certo.

      — Ei, esperem! — bradou Nicholas, tentando alcançar as demais crianças da A1. Os jovens, que tinham em torno de seis ou sete anos, pararam de correr e olharam para o garoto; um semblante de tédio ou aborrecimento ocupava a face da maioria.
      — Quem chamou o gorduchinho? — sussurrou uma menina de cabelo rosa, observando o rapaz se aproximar. O cabelo castanho claro do Nicholas brilhava enquanto ele corria, sendo iluminado pelas luzes que se mantinham próximas ao vidro da academia, afastando a escuridão densa do fundo do mar, e o sorriso radiante que mesmo emitia fazia com que a menina soltasse um suspiro enfadado.
      — E precisa chamar?! — a voz usada pelo jovem continha uma certa raiva, e aqueles olhos pretos com uma linha acinzentada entre a pupila e a íris denunciavam a sua identidade; José. — Meu pai disse que ele é um zé ninguém e nem sabe por que o colocaram nessa academia... Eu não quero andar com ele!
      — Eu também não! — respondeu a moça de cabelo rosa. — Ele sempre atrapalha tudo — reclamou, cruzando os braços.
      — O que a gente faz então? — uma de cabelos pretos e sardas questionou, mas os outros não tiveram tempo de responder.
      — Oi, amigos! — saudou-os Nicholas, ao estar perto deles. — O que vocês vão fazer hoje?
      — Brincar perto do lago atrás da academia — respondeu a menina de sardas, dando de ombros.
      — Ah, que legal! — declarou, alargando seu sorriso. — Eu p...
      — Você não vai! — proclamou José, fazendo com que o Nicholas franzisse o cenho e abaixasse um pouco a cabeça.
      — Por que não?
      — Porque você sempre atrapalha tudo! — expôs a de cabelos rosa. — Você não é como a gente, os seus poderes não são nem um pouco legais.
      — Claro que são! — afirmou, veementemente. — Atravessar paredes ou deixar o corpo invulnerável é super maneiro!
      — Até poderia ser, isso é, se você soubesse usar isso direito e...
      — Tanto faz! — alegou José, interrompendo a menina de cabelo róseo. — O meu pai não quer que eu ande com você... — revelou, apontando pro Nicholas; uma sombra de tristeza perpassou pelos olhos do mesmo rapidamente. — ... então não nos siga! Você não é como a gente, arrume outro lugar para brincar.
      — Mas brincar sozinho é chato — insistiu. — Eu prometo que vou controlar os meus poderes para não estragar a brincadeira!
      As crianças se encararam, mas nenhuma parecia a fim de que o menino as seguisse.
      — O problema não é só esse... — comentou a menina de cabelo preto, com um pouco mais de paciência que o José ou sua amiga. — Você fala demais e ainda anda com um ursinho! — ela apontou para a pelúcia nos braços do rapaz. — Isso é coisa de bebê.
      — Então eu fico calado e... — os olhos âmbar do mesmo seguiram até o pequeno urso marrom com uma corrente dourada em forma de âncora no pescoço, observando o animal felpudo com uma certa tristeza. — ... e eu deixo o Ralph no meu quarto para q...
      — Ralph?! — um garoto com metade do cabelo azul e a outra metade verde exclamou, rindo. — Não acredito que você deu um nome para isso... — zombou, fazendo com que José risse com ele; as meninas deram um sorrisinho mais fraco. — Meu pai também não quer que eu ande com você, então, se levarem ele conosco... — ele se virou para as três moças e os dois rapazes que estavam ali. — ... eu nunca mais brincarei com vocês.
      O grupinho de jovens arregalou os olhos.
      — Não! — exclamou uma loira. — Os seus poderes de água são muito legais, principalmente lá no lago! — declarou, virando-se para o Nicholas, que observava a todos com uma certa esperança e expectativa. — Você não vem, Esquisitholas.
      O apelido causou uma onda de gargalhadas, e o garoto que segurava o ursinho de pelúcia forçou uma risada enquanto observava as crianças darem as costas para si, com o intuito de irem embora para o lago. 
      — Tá legal, galera! — proferiu, quando o grupinho começou a se afastar. — Outro dia a gente brinca, ok? — perguntou, um pouco mais alto, mas todos fingiram não ouvir; eles sequer se deram ao trabalho de olharem para o menino conforme seguiam o seu caminho, rindo e conversando entre si.
      Quando os demais sumiram de sua vista, Nicholas soltou um suspiro, deu meia volta e correu em direção ao seu quarto, que ficava num dos dormitórios da A1. O garoto vivia sozinho naquele cômodo desde... sempre. Ele não tinha muitas memórias de sua família, que só aparecia uma vez no ano, em seu aniversário e, exatamente por isso, esse dia se tornara o seu favorito.
      Dez de outubro. A única data que ele podia ter certeza de que tinha um pai, uma mãe e um avô... que sumiam durante o resto do ano. Na verdade, o seu avô era quem o rapaz mais via, já que o velho costumava passar um tempo com ele pelo menos uma vez no mês, mas, tirando isso, o Nicholas não tinha a companhia de mais ninguém, seja da família ou de amigos. Ficar no quarto sozinho, sem ninguém para conversar ou se importar consigo era... frustrante. Ele costumava observar as outras crianças brincando, conversando com os amigos, com os pais ou até mesmo com os professores da academia, mas... ninguém parecia se importar com a sua existência, era como se o menino fosse invisível, um fantasma.
      Os poderes dos outros jovens, de todos na verdade, eram muito bonitos e bem controlados, mas o seu sempre fora o único a causar problemas. O garoto já tinha perdido as contas de quantas vezes tiveram de quebrar portas ou escavarem chãos para tira-lo de lá, já que a sua intangibilidade gostava de aparecer e sumir do nada. Não era só a intangibilidade que o pegava de surpresa, o mesmo já teve que passar várias horas no chão, sem conseguir se mexer, quando a sua invulnerabilidade tomava conta de seu  pequeno corpo, que não tinha forças para se reerguer. Na visão dos outros, ele não passava de um problema.   
       Quando finalmente chegou em seu quarto, Nicholas respirou fundo e olhou o lugar a sua volta. Vazio, como sempre. Ele fechou a porta devagar e foi até a sua cama, deitando-se nela de barriga para cima, com a intenção de encarar o teto preenchido de adesivos de fantasmas. Ele não soubera quando começara a gostar tanto daquele ser, talvez fosse o fato dos fantasmas serem intangíveis, como ele, que o fez se identificar. Após observar os adesivos, ele levou os olhos até um canto vazio em seu cômodo, uma área que possuía espaço para uma cama. Seria legal ter alguém para dividir aquele lugar.
      — Amanhã eles vão brincar comigo — sussurrou, forçando-se a sorrir. — Eu sou um menino muito legal, gentil e forte... e os meus poderes são maneiros! — prosseguiu, fechando os olhos, dando a entender que aquelas mesmas palavras estavam ressoando em sua mente, mas com as vozes de seus pais.
      Quando o menino sentiu os olhos arderem, revelando que lágrimas desejavam sair, ele rapidamente os esfregou e saltou da cama.
      — Eu vi isso, hein? Nada de tristeza, Ralph! — exclamou, apontando para o ursinho que fora jogado na cama; um presente de seus pais no seu aniversário mais recente. Nicholas o pegou. — Não tem por quê ficar pra baixo, você é um urso legal, qualquer um iria te querer como amigo se realmente te conhecesse... — proferiu, e engoliu em seco ao sentir que as palavras, na verdade, estavam sendo ditas mais para si que para o ursinho.
      Seus olhos dourados encararam os do urso por um tempo, então, o menino decidiu ir até o frigobar em seu quarto, pegar um bombom, colocar o urso sentado em sua frente e, por fim, entregar o doce a ele.
      — Desculpe por ter pensado em te deixar sozinho aqui no quarto só para brincar com os outros — disse, dando uns tapinhas carinhosos na cabeça do Ralph. — Amigos não deixam os outros para trás.
      Silêncio. Mesmo com a ausência de som, Nicholas ainda encarou o seu urso por mais algum tempo até, enfim, soltar um suspiro pesado e cansado que saiu bem do fundo de sua garganta. Ele se levantou, seguindo até a janela de seu quarto, e observou a parte exterior do local, que dava visão para o imenso, profundo e, como tudo em sua vida, silencioso, oceano. O garotinho apoiou a bochecha no vidro da janela, encarando a escuridão do mar atentamente, como se estivesse buscando uma luz no fim do túnel, algum resquício de esperança ou consolo.
      — Eu queria ter alguém — desejou, esfregando os olhos antes que as lágrimas pensassem em descer, e fechou as cortinas.
      Após a sua fala, algo, em algum lugar do imenso e escuro mar, moveu-se, quase como se o tivesse escutado, porém, quando a sombra ousou se aproximar mais da esfera na qual a A1 estava, a barreira protetora o impediu; a gigantesca mancha escura, tão grande quanto o próprio mar, parou no limite da barreira da academia – e não saiu dali por um bom tempo.

      Pela brecha da porta da sala de treinamento onde as crianças de sua idade estavam, Nicholas os espiava brincar. As habilidades especiais de cada uma delas serpenteava pelo ar, exibindo cores e tons tão brilhantes e belos que enchiam a vista do rapaz de admiração. O grupo gargalhava quando um poder esbarrava no outro, criando uma pequena explosão parecida com fogos de artifício, e prosseguiam fazendo isso até que apenas uma das habilidades, a vencedora, permanecesse solitária e imponente no ar.
      — Eles são muito maneiros, não é? — cochichou para o Ralph, o ursinho que ele segurava abaixo de si, fazendo com que o animal de pelúcia também observasse os outros pela porta entreaberta. — Preste bem atenção neles, porque um dia eu vou ser tão maneiro, mais tão maneiro que eles vão ficar impressionados e m...
      — Esquisitholas?! — exclamou um rapaz com metade do cabelo azul e a outra verde, fazendo com que o jovem desse um pequeno pulo de susto e se virasse na direção do colega. — Aposto que você estava aí procurando uma chance de estragar a brincadeira com esses seus poderes descontrolados de novo, não é?!
      Antes que pudesse abrir a boca para se explicar, o menino impulsionou a porta atrás de Nicholas com força, chamando a atenção dos outros que estavam se divertindo dentro da sala de treinamento.
      — Ele estava espiando atrás da porta! — revelou, empurrando o garoto para o lado de dentro e, diante dos olhares dos outros, Nicholas apenas abriu um sorrisinho fraco e tímido.
      — Eu só estava olhando! — explicou-se, a medida em que as crianças se aproximavam com semblantes fechados. — Eu não ia atrapalhar ninguém, eu juro!
      O grupinho se encarou com olhares de dúvida, tédio e até indiferença, como se estivessem calculando se valia a pena ou não reclamarem com o Nicholas, que, por instinto, apertou Ralph contra si em busca de um certo apoio perante os rostos julgadores que o analisavam.
      — Por que não deixamos ele brincar? — indagou José, por fim. As sobrancelhas de Nicholas se ergueram e o seu sorriso se alargou diante da sugestão.
      — Quê?! — reclamou o jovem com duas cores no cabelo. — Esqueceu do meu pai? Ele não deixa que eu brinque c...
      — Relaxa, a gente não vai brincar, vamos treinar — respondeu José, com um sorrisinho maldoso. — Queríamos brincar de heróis e vilões, mas ninguém quer ser o lado ruim da história, então poderíamos deixar isso para o Esquisitholas.
      — Sim! — afirmou o garoto, apertando Ralph contra si. — Eu posso ser o vilão! — declarou, nitidamente contente pela oportunidade de se agrupar aos outros.
      Desde que chegara, eles nunca o haviam chamado para participar de algo, afinal, os seus poderes sempre causavam problemas, mas ali, pela primeira vez, o jovem fora... acolhido. Não importava se ele tivesse que ser o lado mau da história, não se aquele lado o ajudasse a sair da jaula da solidão.
      — O que eu preciso fazer?
      — Lutar contra a gente — respondeu José.
      — Tá... Quem vai ser o vilão comigo?
      — O seu urso — disparou uma menina loira, causando risos nos demais.
      — Ok! — assentiu, ainda anestesiado de felicidade.
      As crianças se agruparam e foram para o outro lado da sala, enquanto o Nicholas as observava com um largo sorriso; era a primeira vez que iria brincar com elas, teria de fazer tudo certo! Devagar, como que tentando segurar dentro de si os seus poderes descontrolados, o mesmo caminhou até a metade da sala de treinamento; os seus olhos brilhavam de euforia.
      — Que saco... — resmungou o garoto de cabelo verde e azul, quando chegou na outra ponta da sala.
      — Relaxa... — rebateu José, apoiando a mão no ombro do companheiro. — Depois de hoje, esse fracassado nunca mais vai querer brincar ou sequer se aproximar da gente — informou, com um sorriso selvagem nos lábios; o companheiro do rapaz emitiu esse mesmo gesto. — UM VILÃO! — gritou, apontando para o Nicholas, que os encarava com um sorriso e um olhar nem um pouco vilanesco em sua face. — ATAQUEM-NO!
      Na mesma hora, todas as crianças correram, e o Nicholas fez o mesmo, indo para cima delas sem saber ao certo o que realmente lhe esperava. No entanto, quando as habilidades multicoloridas dos jovens serpentearam pelo ar, indo em sua direção, Nicholas imediatamente parou, chegando a cair de bunda no chão graças ao movimento brusco e repentino. Aquele monte de poderes combinados brilhava pelo ar, à procura de seu alvo, e, quando o rapaz percebeu que ele seria o destino final, rapidamente se reergueu para correr no sentido contrário. Uma explosão de medo e nervosismo se instalou dentro do pequeno Nicholas, fazendo todo o seu corpo formigar e tremer, e, com o alto grau de adrenalina, a resposta para essa mistura intensa de sensações foi o surgimento de seus poderes; o pé do mesmo ficou intangível, prendendo-o no solo e levando o mesmo a cair de cara no chão; Ralph voou longe devido à queda. Desesperado por não ter como fugir, Nicholas olhou para os outros jovens, mas, dessa vez, ao invés de felicidade, euforia, animação ou admiração, era medo que transparecia em sua vista; ele ainda tentou puxar seu pé para fora do solo, mas não teve êxito.
      A explosão de poderes que criavam cores e brilho no ar, coisa que antes o havia deixado admirado, agora lhe trazia à tona uma sensação de terror.
      — Esperem! — implorou, mas ninguém lhe deu ouvidos.
      Aquele turbilhão de cores voou até si, que apenas pôde cobrir a cabeça com os braços para tentar se defender do ataque. No momento em que fez aquilo, Nicholas sentiu o seu corpo endurecer, graças à invulnerabilidade que o encobria, porém, nem mesmo esse seu poder conseguiu impedir que a soma daquelas habilidades o ferisse. Mesmo com a invulnerabilidade tendo tentado proteger seu físico, seu poder não era forte o suficiente, e o seu corpo foi lesionado. A sua roupa foi cortada, juntamente ao seu torso, devido a algum poder afiado e a sua coxa direita, a parte que mais o incomodava, parecia estar tendo fortes câimbras – uma aura negra cobria essa sua região, deixando claro quem estava controlando e causando aquele tipo de dor.
      Observar o estado do Nicholas fez com que os jovens hesitassem em continuar a “brincadeira", já que o sangue que saia de seu torso, pelos vários lugares que foram cortados superficialmente, deixavam os demais um pouco assustados e surpresos.
      — NÃO POUPEM O INIMIGO! — gritou José para os companheiros, e o Nicholas gemeu de dor quando a aura negra em sua coxa, que era controlada pelo rapaz, começou a se espalhar pelo resto de sua perna; a dor era tão grande que ele não se importou de chorar na frente dos outros, mas nem mesmo suas lágrimas pareceram razão suficiente para que os demais parassem de atormenta-lo.
      Aquele turbilhão de poderes voltou a tomar conta do ar e, quando Nicholas sentiu a presença daquelas habilidades se direcionando até si, ele tentou puxar o pé do solo com toda a força que tinha, rangendo os dentes de raiva por não conseguir e pela aura de José estar torturando justamente a perna presa. Dessa vez, o rapaz conseguiu se jogar para o lado, fazendo com que os poderes caíssem próximos de seu corpo, criando uma explosão no chão que fez os seus braços, que protegiam o rosto, receberem algumas queimaduras. O jovem tossiu perante a fumaça da explosão – e também pelo soluço do choro –, mas, quando olhou adiante de si, os seus olhos arregalaram num misto de terror e choque.
      Metade da cabeça de seu ursinho estava pegando fogo.
      — RALPH! — gritou, e puxou o pé do chão com tanta força que, se os seus poderes não tivessem retornado para liberta-lo, era capaz do menino ter arrancado aquela parte de seu físico fora. Ignorando a dor em sua perna, ele se arrastou pelo chão até o urso, porém, quando esticou a mão para pega-lo, a aura negra de José se estendeu até as suas costas, causando uma dor tão aguda e forte que o rapaz não teve como não gritar e se contorcer de agonia. Tanto os ossos de sua perna quanto das costas pareciam estar sendo quebrados um a um.
      — Renda-se, vilão! — proclamou José, apreciando a sensação de estar no comando das demais crianças.
      As costas e as coxas de Nicholas emitiam uma dor insuportável, os cortes em seu torso ardiam e as queimaduras em seus braços incomodava ao ponto de lágrimas desenfreadas caírem de seus olhos; a fumaça da explosão inflamou seus pulmões, e sangue escorreu pelo seu nariz após inspirar tanto daquele gás, contudo, ali, deitado de barriga para o chão, os olhos do garoto estavam fixos no urso em sua frente – o dourado de sua íris refletia as chamas que queimavam rapidamente a pelúcia.
      — EU NÃO QUERO MAIS BRINCAR COM VOCÊS! — bradou, e, ao ouvir a voz dele, os jovens pararam de criar os poderes que já estavam se formando outra vez. O sofrimento e a raiva que ecoou no timbre do menino os deixou espantados.
      — E-Esquisitholas? — indagou a menina de cabelo preto, com uma certa preocupação e receio na voz.
      — É um inútil mesmo! — murmurou o rapaz de cabelo verde e azul. — Esse cara não é um de nós, não sei nem por quê estar aqui... Se eu fosse ele, já teria dado um jeito de sumir! — alegou, com desprezo.
      Ouvir aquilo despertou uma raiva interior no Nicholas, mas, mesmo se sentindo dessa forma, o menino ignorou os comentários e seguiu até o urso em chamas para abraça-lo.
      — É louco! — sussurrou uma garota loira, arregalando os olhos ao ver o rapaz apertando o urso contra si, na intenção de cessar o fogo; aquela cena foi tão impactante para os jovens que até o José, de queixo caído, tirou a sua aura do corpo de Nicholas.
      O menino rangeu os dentes, tentando combater a vontade de gritar perante a queimação do fogo, e, apenas quando as chamas cessaram, ele afastou o animal de seu peito e o encarou; a parte esquerda da cabeça do Ralph estava destruída, e o colar dourado em forma de âncora também.
      — Eu sou um péssimo amigo — sussurrou para o ursinho, com a voz rouca e trêmula; em seguida, Nicholas se virou para encarar as outras crianças, que deram passos para trás diante da fúria em seu olhar. — E vocês não são meus amigos! — declarou, convictamente, e se levantou, agora que a sua perna não doía mais. Apenas os braços e o torso ainda o atormentava, mas aquilo não o impediu de encarar cada pessoa ali, uma a uma, como se estivesse memorizando as feições delas. Logo depois, o mesmo saiu correndo daquele local sem nem olhar para trás.
      Ao abrir a porta com tudo, para a surpresa de Nicholas, seu olhar se encontrou com o de uma garota que, assim como ele fazia momentos atrás, espiava pela brecha da porta. Os olhos âmbar dele analisaram os olhos escuros dela por alguns segundos, e a menina abriu um sorriso macabro quando viu o ódio que emanava da vista dele, quase como se estivesse satisfeita pelo menino estar sentindo aquilo tão fortemente.
      — Transforme a raiva em poder — ordenou ela, mas o jovem não deu tanta atenção as suas palavras e rapidamente voltou a correr para longe dali.
      — Cássia! — alegou o menino de cabelo verde e azul, maravilhado com a presença da mesma; não era todo dia que a filha do diretor aparecia. — Quer se juntar a nós para brincarmos de alguma cois...
      — Vocês não estão no meu nível — disparou, num tom tão autoritário e grave que fez com que o grupinho engolisse em seco, amedrontados. — Não falem comigo de novo e nem me tratem como se fosse amiga de vocês, esquisitos — rosnou, fazendo com que as crianças baixassem a cabeça conforme ela dava meia volta e se retirava dali.

      Após ter saído às pressas da sala onde os jovens estavam, Nicholas correu até o quintal da A1 e se enfiou dentro de um dos arbustos que estavam espalhados pelo ambiente. Os adultos que o viram correr pela academia até aquele local fingiram não notar a presença ou os ferimentos do garoto pois, como sempre, não davam a mínima para um indivíduo descontrolado e sem valor.
      Dentro da planta sintética, Nicholas finalmente parou para analisar com atenção cada parte de seu ursinho e, percebendo que aquilo provavelmente não teria conserto, algo dentro de si se quebrou. O presente de seus pais, uma das poucas coisas que tinha para que se lembrasse que, em algum lugar do mundo, haviam pessoas que se importavam com a sua existência vazia e inútil, estava destruído.
      As lágrimas mornas que escorreram de seus olhos fizeram com que alguns pequenos cortes em seu rosto, que ele nem havia sentido que os tinha, ardessem, contudo, mesmo com aquela dorzinha o incomodando, ele não conseguiu cessar o choro. As dores dos cortes ao redor de seu torso e das queimaduras nos braços se intensificaram, indicando que o nível de adrenalina em seu sangue havia baixado, e, a medida em que a aflição o engolia, gemidos de angústia que escapavam de seus lábios devido ao choro foram se transformando em algo maior, em algo mais sombrio.
      Eles iriam pagar por aquilo, pensou, com os olhos fervilhando com ódio e dor. Quem iria se importar se ele revidasse? Ninguém nunca dava a mínima para nada que ele fazia mesmo, então porque tentar agradar ou ser bonzinho com as pessoas que o julgavam como incapaz e inútil? Nicholas os odiava, e essa fúria foi crescendo dentro de si a medida em que os seus olhos encaravam o estrago que haviam feito em Ralph. Aquelas crianças que deveriam estar com metade da cabeça destruída. Ele aproximou a pelúcia para observar os estragos que haviam sido feitos para que pudesse fazer a mesma coisa com os outros.
      Aquilo não ficaria assim. Não ficaria.
      — Parece que esse ursinho precisa de um médico, não?
      O menino se assustou perante aquela voz grossa, mas gentil, que falou do nada. Quando os seus olhos âmbar, brilhando devido as lágrimas, seguiram na direção em que o mesmo ouvira aquele timbre, a sua visão se encontrou com um par de olhos azuis tão penetrantes que pareceram enfeitiça-lo. A pele negra do homem dava ainda mais destaque aquele tom azulado, que mais parecia lente de contato de tão claro; apenas quando um sorriso carismático surgiu nos lábios do homem que o Nicholas conseguiu desviar os seus olhos dos do indivíduo.
      — Vamos cuidar dele? — insistiu o mais velho.
      — Quem é você? — indagou, com a voz rouca cheia de desinteresse e intimidação, quase como se quisesse espantar o homem através de seu tom.
      — Apenas um cara que adoraria ser promovido a professor da A1 — respondeu, mas como o Nicholas ainda o encarava com desconfiança, ele riu e completou; — O meu nome é Ruy.
      O rapaz ainda observou o mais velho por um tempo, porém, ao levar os olhos de volta ao seu ursinho, um nó se formou em sua garganta; ele queria tanto que aquilo não tivesse acontecido com o seu animal de pelúcia.
      — O Ralph... — a voz do garoto saiu um pouco mais grave, como se a vontade de chorar estivesse querendo engoli-lo outra vez; todo o ódio parecia ter se dissolvido e virado tristeza de novo. — ... vai ficar bem?
      O sorriso gentil do professor se alargou.
      — Sim, mas só se ele e você forem para a enfermaria cuidarem dos machucados — revelou. — Eu posso carregar vocês dois até lá?
      Um balançar positivo de cabeça que o Nicholas deu foi o suficiente para que o homem o pegasse nos braços e levasse, tanto ele quanto o urso, até a enfermaria mais próxima para que ambos tivessem os machucados tratados.

      As semanas seguintes após ter sido levado à área médica foram as mais diferentes da vida do Nicholas. Nos primeiros dias o rapaz foi completamente rude e ignorante com o Ruy, e até rosnava e o ameaçava com o olhar quando o homem tentava se aproximar de si ou do Ralph, porém, mesmo com ele tratando o professor da pior maneira possível, o homem não saiu de seu lado até que o menino se sentisse melhor em relação as feridas. No dia em que recebeu alta, o Ruy lhe deu um delicioso hambúrguer que fez os olhos do Nicholas brilharem – o garoto havia enjoado de tanto tomar sopa, mingau e outras coisas líquidas e aguadas enquanto se recuperava. Ao receber aquela comida, o jovem começou a ver o professor com olhos diferentes.
      Afinal de contas, alguém que lhe alimenta se importa com você.
      Sua confiança naquele homem foi aumentando com o passar do tempo, já que o indivíduo ia visita-lo em seu quarto todos os dias e ambos acabavam conversando sobre diversos assuntos. A presença do Ruy foi se tornando muito especial para o Nicholas, que, certo dia, quando foi observar o treinamento do professor, o rapaz acabou contando o que causara os seus machucados e o que queria fazer para que os outros pagassem por isso. A resposta do Ruy, afirmando que se ele devolvesse aquilo na mesma moeda, essa ação não iria torna-lo diferente das pessoas que o mesmo tanto odiava, tocou o interior do menino. Ele não queria ser como aquele grupinho, nunca. Todavia, mesmo após ter revelado as coisas ruins que planejava fazer, o Ruy não o olhou com uma visão diferente – assim como todos os outros o olhavam – mas continuou tratando o garoto como alguém... normal.
      O Ruy tinha um poder interessante. Todo local que ele encostava a palma da mão se tornava um alvo, e qualquer objeto que ele lançasse com essa mão, independente da direção, acabaria, hora ou outra, atingindo o alvo. Com o passar do tempo, Nicholas se acostumou a colocar o Ralph, que tinha uma faixa branca cobrindo a parte ferida da cabeça, sentado na grama enquanto tentava jogar as adagas no alvo também, visando ter uma pontaria tão boa quanto a do professor, que o incentivava dia após dia. O treinamento que o Ruy fazia era bastante diversificado enquanto o Nicholas focava apenas em acertar os alvos, pois o homem iria participar de algum tipo de exame para se mostrar capaz de ensinar os alunos da A1; o jovem torcia muito para que o professor passasse, pois aquela academia precisava de pessoas como ele. Além do mais, se o Ruy permanecesse ali, o Nicholas teria... alguém – além do Ralph.
      Depois dos exercícios que ambos faziam em conjunto, Ruy sempre o acompanhava no refeitório das crianças para que o Nicholas não ficasse só; o menino era extremamente grato pela presença do professor, pois, sempre que via os jovens que haviam lhe machucado, algo ruim fervilhava dentro de si, e as coisas que perpassavam em sua mente chegavam a deixa-lo assustado consigo mesmo.
      Não ser igual a eles. Não. Ser. Igual. Era o que o garoto repetia em sua cabeça para afastar os pensamentos vingativos.
      — Caramba Esquisitholas... — proferiu José, com o rapaz de cabelo verde e azul ao seu lado, enquanto passavam pela mesa em que o menino estava. —... toda vez que te vejo você está comendo. Deve ser por isso que você é gorducho!
      O ódio dentro de Nicholas cresceu, e o menino sentiu o corpo formigar, indicando que os seus poderes iriam se manifestar, no entanto, antes que qualquer coisa pudesse acontecer, o Ruy reagiu primeiro;
      — Engraçado que eu também nunca te vi estudando. Deve ser por isso que você é do jeito que é — aquela resposta fez tanto o José quanto seu companheiro fecharem a cara e saírem dali pisando forte. Eles não eram burros o bastante para baterem de frente com um professor. Assim que os meninos saíram, Nicholas, de sobrancelhas erguidas, voltou seu olhar para o Ruy, mostrando estar surpreso por ter sido defendido. Ninguém nunca havia se importado tanto ao ponto de fazer isso. Percebendo o espanto do garoto, o homem sorriu. — Podem mexer comigo, mas não com os meus. Eu já passei por esse tipo de situação também por ter um poder considerado... fraco, mas eu nunca permiti que mudassem a minha essência por conta disso — ele encarou os olhos âmbar do mais novo com grande intensidade e sabedoria. — Eu acredito que todos possam mudar, independente do que tenham feito no passado, isso é, se escolherem fazer a coisa certa daí em diante. Você é um bom rapaz, Nicholas, não se deixe contaminar pelos sentimentos sombrios que a A1 quer que você tenha. Saiba o seu próprio limite, e quando deve ultrapassa-lo.
      Nicholas guardou aquelas palavras dentro do seu ser. “Podem mexer comigo, mas não com os meus”, “Não mude sua essência”, “Não se deixe contaminar"... O menino sorriu, sentindo cada frase se fixar em sua mente de uma maneira sobrenatural.
      Era bom ter alguém para lembra-lo de quem ele era e que acreditasse nele, na essência dele. Os seus olhos âmbar, intensos como uma mistura de diferentes tons de dourado, analisaram o professor com uma admiração que ele jamais sentira antes. Ele queria ser assim quando crescesse. Aquele homem era incrível  e muito maneiro, na concepção do jovem, e ali, naquele instante, ele notou que era impossível que as pessoas não vissem o quão bom professor o Ruy poderia ser para a próxima geração. O Ruy iria passar, sem sombra de dúvidas, então, logo após constatar isso, o Nicholas sorriu, ainda observando o rosto do seu professor, treinador, guia, conselheiro e... amigo.
      Seu primeiro amigo.

      Numa manhã, Nicholas se levantou de sua cama, arrumou-se com a vestimenta de treinamento, pegou o Ralph nos braços e correu até a área distante e reservada do jardim que ele e o Ruy costumavam ficar. Aquele dia estava estranho, as luzes que clareavam a academia – já que o sol não alcançava aquela construção subaquática – estavam mais fracas que o normal, quase como se estivessem de luto. Ao chegar no local onde costumava ficar com o seu amigo, o Ruy, que sempre era o primeiro a chegar, não estava, então, mesmo estranhando aquilo, o Nicholas se sentou no chão, colocando Ralph ao seu lado, e esperou.
      A manhã inteira passou, e o homem ainda não tinha dado as caras. A barriga de Nicholas roncava, e o mesmo até pensou em ir ao dormitório do Ruy para saber o que tinha acontecido, porém, apenas naquele momento ele se dera conta de que não sabia onde o seu amigo estava instalado e... Ele não tinha a menor vontade de ir ao refeitório sem a presença do homem. Mesmo que o incidente da sala de treinamento já fosse algo distante, o rapaz ainda não conseguia estar no mesmo lugar que aquelas crianças e permanecer tranquilo, contudo, para o crédito do menino, os pensamentos vingativos haviam diminuído bastante. Soltando um suspiro longo, Nicholas se deitou na grama, observando o vidro bem acima de si e a escura água do mar através dele, então, continuou esperando.
      A tarde inteira também se passou, mas o jovem não se moveu. Aquela altura, a preocupação já o corroía por dentro, pois, durante o tempo em que aguardava seu amigo, o Nicholas se lembrou de que o Ruy lhe avisara, no dia anterior, que o tal “teste de professores” ocorreria naquele dia, pela manhã. Mas já era quase seis horas da tarde. O garoto engoliu em seco quando notou que as luzes da A1 ficaram mais fortes, indicando que a noite estava se aproximando. Confiante de que havia dado tudo certo no exame e que o seu amigo fosse voltar, o menino fechou os olhos e, mais uma vez, esperou.
      — Nicholas?!
      A voz do Ruy o acordou. As luzes fracas da academia indicavam que era de manhã – o rapaz havia passado a noite ali. Quando os seus olhos dispararam até o do professor, o garoto se levantou com um pulo, mas não pela presença do homem, e sim pelo estado em que ele se encontrava. O nariz de seu amigo estava enfaixado, como se alguém o tivesse quebrado, um de seus olhos estava inchado e roxo, além disso, pela forma inclinada na qual o professor se mantinha de pé, não foi difícil constatar que haviam outros tipos de ferimentos por baixo da roupa que ele usava, que era um uniforme com o símbolo da K2 – não A1 – estampado ao lado esquerdo do peito.
      — O-O que aconteceu com você? — perguntou, com os olhos meio arregalados de puro espanto; quando o Ruy baixou o olhar, uma tristeza e raiva se instaram dentro do garoto. — Quem fez isso?
      O professor imediatamente ergueu a cabeça ao ouvir a fúria emitida através da voz do mais novo; o homem forçou um sorriso que, se o Nicholas não o conhecesse tão bem, poderia jurar que aquele gesto era sincero.
      — Não foi nada, essas coisas acontecem durante os testes — informou, mas o Nicholas ainda o analisava com os olhos âmbar queimando, quase como se estivesse memorizando cada detalhe dos ferimentos de seu amigo para reproduzi-los identicamente na pessoa que havia feito aquilo com ele. — Nicholas, eu... — o professor engoliu em seco quando a visão do jovem parou em seus olhos. — ... não passei.
      Naquele momento, a mente do jovem pareceu se distanciar da realidade. O seu olhar ficou distante, os ombros caíram e um nó se formou em sua garganta, engolindo a sua voz. Como o Ruy não havia passado? Ele era tão espetacular! E o Nicholas não dizia isso somente pelo esforço que o seu companheiro havia tido nos treinos, mas porque até mesmo ele havia melhorado em seus exercícios de tiro ao alvo graças as dicas do Ruy, que ensinava as coisas de uma forma simples e divertida, coisa que ele nunca viu antes. Aquele homem havia nascido para ensinar, para guiar, como não haviam visto isso? Como? Como? COMO?
      — Eu terei que voltar para a minha academia, a K2 — o jovem ouviu aquilo, mas não pareceu processar; a sua mente ainda não conseguia captar direito as coisas ao seu redor. — Partirei agora, pois é um longo caminho até lá. Eu demorei para falar com você porque não queria ir, mas... — ele suspirou, e os olhos queimaram. — ... nem tudo é como a gente quer. Desculpe, eu...
      — Não! — exprimiu Nicholas, abraçando o professor, o protetor, o cuidador, o guia, o amigo. Ruy rangeu os dentes para aguentar a dor que emanou pelo seu físico diante do abraço do rapaz, já que haviam algumas feridas escondidas por baixo de sua vestimenta, todavia, ele não deixou que o Nicholas notasse isso. — Não! — repetiu; a voz afinando devido ao choro.
      — Eu virei te visitar sempre que tiver a chance — garantiu, retribuindo o abraço.
      Nicholas balançou a cabeça de forma negativa. Ele já passava o ano inteiro esperando a visita das pessoas que amava, o mesmo não queria ter que continuar fazendo isso com todas as pessoas que se aproximavam de si. Não era justo, não era! Por que ele não podia ter alguém também?! O que tinha de errado com a sua existência? O que tinha de errado consigo?! Ele soluçou quando o choro tomou conta de si.
      — Não — implorou. — Se você for embora, eu vou ficar sozinho de novo! Deixe-me ir para a K2 com você, por favor. Por favor.
      Ruy o apertou contra si com mais força, ignorando as suas dores; lágrimas queimavam nos olhos do professor, que ergueu a cabeça para encarar a imensidão do mar além do vidro.
      — Eu tentei, mas o diretor não permitiu que você se fosse — respondeu; já não era mais possível esconder a tristeza que se formara em sua voz. — Você é...
      — Eu vou escondido! — exclamou, cortando a fala do mais velho, que riu levemente pelo nariz diante da sugestão da criança.
      — Hora ou outra eles descobririam que você escapou e iriam te trazer de volta para cá, além disso, eu ainda poderia perder o meu cargo de professor por fazer algo assim — admitiu, afastando-se do menino e levantando o punho na direção do mesmo, que observou a mão erguida com uma certa curiosidade. — Eu prometo que irei voltar sempre que puder e que verei você se tornar o menino mais forte desse mundo. Se eu não cumprir essa promessa, arrancarei o meu próprio punho fora!
      Os olhos de Nicholas arregalaram.
      — Cortar o próprio punho?! — questionou, surpreso. — Você está doido?
      Ruy sorriu, um sorriso sincero dessa vez.
      — Não se preocupe, isso não vai acontecer, pois eu nunca quebro as minhas promessas — garantiu.
      Quando o jovem, ainda meio hesitante, bateu o seu punho contra o do homem, um certo peso percorreu por todo o seu braço, indicando que o juramento entre ambos era verdadeiro e que agora ele estava, oficialmente, selado.
      — Estremeça esse mundo, Nicholas.

      Depois de ter se despedido do pequeno Nicholas, Ruy passou em seu quarto para pegar a sua mala grande antes de ir até a sala do diretor. Ele deixou a bagagem do lado de fora para entrar naquele cômodo com o intuito de tentar, uma última vez, convencer o homem a permitir que o rapazinho fosse para a K2 junto ao mesmo.
      Mais uma vez, o diretor negou veementemente a saída do garoto daquela academia, alegando que nenhum aluno da A1 sairia dali para uma inferior sem que o próprio decidisse isso. Ruy não teve escolha se não aceitar.
      Ao sair de dentro do local que falara com o superior, Ruy pegou a sua mala e fez um certo esforço para puxa-la, como se a sua própria bagagem pedisse para que ele não se fosse. O professor engoliu em seco para, em seguida, puxar os pertences com mais força. Quando chegou em frente a porta de entrada daquela academia, Ruy tocou a sua palma direita no portão e, depois, cobriu a sua mão com uma luva preta. Os passos que o professor dava rumo aos dutos que o levaria a superfície eram lentos e pesados, e o mesmo observava o ambiente ao seu redor atentamente na esperança de que encontrasse o Nicholas uma última vez, porém, o rapaz não estava ali.
      Ele procurou o aluno uma última vez antes de entrar dentro de um elevador de vidro que o levaria até a superfície. Uma tristeza o percorreu por dentro por não ter conseguido ver o seu amigo antes de partir, mas ele tentou tirar os pensamentos a respeito da criança de sua mente.
      Ao chegar em terra seca, o homem adentrou no reino de Bry, mas não ousou se aventurar nas profundezas da floresta, optando, então, por ir pela lateral da parte oeste do território, seguindo para o porto que se encontrava ao norte, próximo a terra das ruínas, que era uma ilha sem lei que, mesmo estando entre os três reinos do oeste, não tinha afiliação ou aliança com nenhum – aquela área não passava de um ponto onde marinheiros, viajantes, piratas e qualquer outro que se aventurasse pelos mares e reinos se encontravam e vendiam os seus tesouros sem que ninguém questionasse de onde o produto veio ou como o conseguiram. O lucro gerado pela pequena ilha era suficiente para que o governo aceitasse deixa-la intacta, contanto que, mensalmente, lhe pagassem um bom percentual para que as práticas continuassem ocorrendo.
      A caminhada que o Ruy teria de fazer até o porto, para pegar um barco rumo a Hope, duraria em torno de algumas horas caso pegasse um macaco ou um esquilo voador para se locomover rapidamente por aquela floresta densa, então, enquanto perambulava pela área, o homem não deixou de olhar para os galhos em busca de algum animal para auxilia-lo. A mata estava calma, contudo o mesmo caminhava com dificuldade não só por conta da mala pesada, mas também por causa das feridas que estavam espalhadas pelo seu físico; graças as dores, o homem teve que parar para descansar, mesmo tendo dado apenas poucos passos, pois sua costela, onde um corte havia sido desferido por um de seus adversários no exame, queimava devido aos pontos. Voltar a pensar no teste fez com que um semblante tenso surgisse no rosto do professor. Os demais não tiveram piedade ou pena quando estavam testando se ele era digno de ficar na melhor academia – não era. O mesmo suspirou, e se encostou numa árvore para tomar fôlego enquanto a dor diminuía um pouco. Provavelmente os machucados atrasariam sua chegada a K2.
      O professor não pensou que fosse tão... inferior ao ponto de sair do exame tão acabado quanto estava. O homem sempre desejou ser um bom profissional e, mesmo tendo dedicado toda a sua vida àquilo, ele se viu completamente impotente contra os outros da A1. Ser bom ensinando não era a única coisa que a “melhor academia” ansiava, eles queriam os melhores soldados para guiar os pequenos; não desejavam que as crianças se tornassem guerreiros honrados e fortes, queriam assassinos, vingadores, sanguinários. Ruy sabia que estavam vivendo um período conturbado, mas eles realmente precisariam ser transformados naquilo para que conseguissem sobreviver? Por um instante, ele temeu pelo Nicholas e, ainda mais, pelas crianças da idade dele que, mesmo sendo tão pequenas, já tinham engolido a filosofia que a A1 os forçava a imitar. O pior era que se a “melhor academia” estava fazendo e apoiando essas práticas, as outras, hora ou outra, iriam fazer a mesma coisa para não ficarem para trás – o que poderia acabar destruindo a todos de dentro para fora, coisa que facilitaria o trabalho do governo.
      O farfalhar de folhas deixou o homem alerta, tirando-o de seus pensamentos para que prestasse atenção ao seu redor. Houve um barulho de algo se aproximando, e isso fez o Ruy entrar em posição de combate, levando a mão até um dos compartimentos de seu cinto, todavia, quando um macaco uniformizado surgiu entre as árvores, o professor, instintivamente, soltou um suspiro.
      — Hã... Preciso que me leve ao porto — comentou, analisando o grande animal com vestimenta. Ele nunca se acostumaria com aquilo.
      O macaco chegou perto do Ruy e virou as costas para ele, indicando que o homem subisse ali. O professor observou o local onde teria de sentar por um tempo antes de se virar para pegar a mala que carregava.
      — Arght! — arfou, quando o animal, girando mais rápido que o professor teve tempo de acompanhar, chutou a lateral de sua costela, bem no local onde haviam colocado pontos há poucos dias. Sentindo o ferimento se abrir, Ruy caiu de joelhos no chão e rangeu os dentes para aguentar a dor; o sangue já manchava a grama verde quando o macaco, que agora havia se transformado em um homem, colocou a sola da bota nas costas do professor, pisando-o com força para mantê-lo no solo.
      — Olha só o que temos aqui.
      Ruy reconheceu aquela voz sem nem mesmo ter precisado olhar na cara do dono dela. Rey, seu irmão gêmeo. A única diferença entre os dois era que um usava o uniforme verde escuro da  Divisão, enquanto o outro usava um azul escuro da K2. Era coincidência demais que o seu irmão estivesse ali exatamente na mesma hora em que ele havia saído da academia – e que o parceiro do Rey tivesse acertado em cheio a parte mais sensível de seu corpo.
      Alguém o havia delatado. Existia um traidor na A1, e um muito bem informado.
      — Não vai cumprimentar o irmãozinho? — questionou Rey, sacando, casualmente, uma arma brilhante que fez o Ruy o encarar com ódio nos olhos, porém, notando a fúria que se acendia no professor, o metamorfo pisou nas costas do homem com mais força, fazendo-o urrar de dor ao sentir o corte na lateral esquerda de seu corpo se abrir ainda mais, impedindo-o de se mover. — Parece que você ainda não entendeu a situação em que se encontra. Deixe-me “acorda-lo”.
      Um barulho de tiro ecoou, e o grito que saiu da garganta de Ruy foi alto em resposta a bala que passou de raspão em sua face – que, diga-se de passagem, já possuía uma boa dose de arranhões e inchaços. Para a sorte do professor, aquele não era um projétil de Dinks ou de Sub-x.
      — RUY?! 
      Naquele momento, o homem desejou com cada fibra de seu ser que aquele berro bastante familiar que foi soado de dentro da sua bagagem fosse apenas fruto de sua imaginação. Mas não era. Tanto é que, ao ouvir aquela voz, uma das sobrancelhas do Rey se ergueu, e, quando ele chutou a mala, a reclamação de uma criança foi emitida. O terror nos olhos de Ruy fez um sorriso diabólico se abrir nos lábios do irmão.
      — Vamos ver o que você está levando aqui dentro — alegou, com um tom grave e intimidador, e, assim que a mala foi aberta, a visão da pessoa que estava lá dentro fez o queixo de Ruy cair.
      Nicholas White estava espremido entre as poucas roupas que restaram ali enquanto abraçava o Ralph contra si.
      — Ruy! Você est...
      Ao ver dois homens idênticos, o rapaz se calou, balançando a cabeça entre um e outro, como se tentasse descobrir qual era o verdadeiro. Ele levou apenas um segundo para diferenciar o Ruy do Rey. Quando os seus olhos âmbar foram em direção ao sangue na lateral do corpo de seu amigo e ao corte recém aberto em sua face, o menino ergueu as sobrancelhas, em choque.
      — O que você fez?! — gritou, levando a sua vista até o metamorfo, que pisava nas costas de Ruy, e, em seguida, até o Rey, que riu de forma irônica diante da raiva estampada na voz e na face do mais novo.
      Antes que o integrante do governo pensasse em responder, Nicholas deixou Ralph no chão e correu em direção ao homem; ele fechou o punho com força e o desferiu no abdômen do Rey sem nem pensar duas vezes. O general nem se mexeu. O uniforme verde que o mesmo trajava tinha uma proteção para aquela área de seu corpo, e, quando o jovem notou que o seu soco não adiantou nada, o Rey não deixou que a audácia da criança passasse impune. Mais rápido que um piscar de olhos, a cara de Nicholas foi levada ao chão com tudo, fazendo-o grunhir de dor quando a sua bochecha bateu contra o solo fortemente uma vez. Duas. Três. Quatro. Cinco. O grito que o rapaz havia dado na primeira vez em que havia recebido o golpe sumiu já no terceiro ataque; terra, sangue e lágrimas se mesclavam em sua face. A visão do jovem já estava embaçada quando o Rey ergueu a sua cabeça do chão outra vez... Pelo Ômega, por que a sua invulnerabilidade não funcionava em horas como essa?!
      A dor que perpassou por si quando, através de seus cabelos, Nicholas foi puxado para cima foi tão latejante que o fez soluçar devido ao choro; quando o Rey estava prestes a acerta-lo pela sexta vez, um grito ecoou.
      — NÃO!
      Aquilo fez o general parar na hora, deixando a cabeça da criança a poucos centímetros do solo. O homem ergueu o olhar para encarar o irmão que, para a surpresa de Rey, tinha lágrimas nos olhos. Então aquele pirralho era importante para o Ruy. Interessante.
      — Qual é o seu nome, garoto?
      Nicholas não abriu a boca. Uma risada áspera saiu da garganta do general quando ele guardou a arma e pegou uma faca no lugar, colocando-a contra a garganta do rapaz. Aquilo fez o corpo do mais novo tremer, e a respiração dele ficou irregular.
      — Qual é o seu nom...
      — Nicholas White! — exclamou Ruy.
      Um sorrisinho um tanto quanto sádico se formou nos lábios de Rey, que voltou a encarar o irmão pelo canto dos olhos.
      — Oh, parece que o queridinho dos papais foi com a cara desse pirralho idiota — seu sorriso se alargou quando um terror se apoderou dos olhos de Ruy ao notar que um pouco de sangue descia pela garganta do Nicholas. — Durante toda a vida ele sempre foi o “melhor” por causa dos poderes, mas olhe só para você agora, maninho, incapaz de salvar uma mera criança — comentou, levando o olhar até a faca no pescoço do menino. Qualquer mísero movimento em falso do mais novo poderia ser fatal. — O poder em si não quer dizer absolutamente nada! — afirmou, tirando o objeto cortante do pescoço de Nicholas e empurrando o rapaz contra a terra para pegar a sua arma outra vez. — O verdadeiro poder advém da mente. Você fracassou, irmão — riu, e ergueu o revólver na direção do Ruy, que ainda estava com os olhos fixos no Nicholas.  — Como você é idêntico a mim, vou lhe dar o prazer de ter uma morte rápida. Uma pequena benção que darei por amor... a minha imagem.
      O olhar do Rey se tornou ainda mais perverso quando os olhos do Ruy, idênticos aos seus, fixaram-se em si. Nenhum pingo de compaixão ou arrependimento perpassou pelo olhar do Rey ao encarar seu irmão; não havia nada além de orgulho e prazer por estar, finalmente, um nível acima de seu irmão – quarenta e oito segundos – mais velho.
      — Espere! — exclamou Nicholas, erguendo-se na frente da arma. Ruy parou de respirar perante essa ação do garoto, e o Rey ergueu uma das sobrancelhas, um tanto quanto surpreso pela coragem do mais novo em entrar na frente de seu revólver, ainda mais no estado deplorável que o rosto do jovem estava. — Eu faço qualquer coisa se você o deixar vivo! — um indício de risada ameaçou sair da garganta do general, então, com ainda mais firmeza e com um olhar frio, Nicholas repetiu; — Qualquer coisa.
      Rey o encarou em silêncio por longos minutos. A cada segundo que o seu irmão mais novo passava encarando o seu aluno, mais rápido o coração de Ruy batia; o professor podia sentir o cheiro da morte pairando pelo ambiente.
      — Você deve ter algum tipo de relevância já que aquele inútil... — apontou para o irmão com o queixo. — ... parece estar tão disposto a te proteger — o Rey observou o semblante do Ruy e do Nicholas alternadamente, como se estivesse pensando no que iria fazer; um sorriso medonho em seus lábios foi a clara resposta de que o mesmo havia tomado uma decisão; — Eu sempre fui melhor que você em tudo irmão, mas como eu não nasci com poderes, ninguém me deu o devido valor que merecia.
      — Mentiroso! — rosnou Ruy. Nicholas arregalou os olhos perante o ódio na voz do professor, mas não ousou sair da frente da arma. — Os nossos pais sempre deram atenção a nós dois, mas você esteve tão cego tentando ter as habilidades que eu tinha que enlouqueceu. Você nos delatou para o governo, nossos pais foram torturados e morreram porque você disse que eles acobertavam a mim, um inumano. Você se aliou aos homens que mataram os seus pais e que me escravizaram, você se sentiu bem com isso porque, finalmente, achou que era melhor que eu e se sentia bem em ser bajulado pelo governo — ele riu, um riso cheio de escárnio e nojo. — Diga-me, o que você sente depois de ter feito tudo isso e, mesmo assim, não ter conseguido me superar?
      Depois de ouvir aquelas palavras, uma escuridão tão latente e hedionda tomou conta dos olhos do Rey que o Nicholas quase caiu de joelhos devido ao medo que lhe atingiu.
      — Você se reviraria no túmulo se eu transformasse o seu precioso aluno em meu escravo? Ou melhor, se eu o deixasse igualzinho a mim?
      Ódio. Isso era tudo o que passava tanto pelos olhos de Rey quanto pelos de Ruy.
      — Pode se considerar um homem morto — sibilou o professor.
      Rey deu um sorrisinho quando o metamorfo pisou com mais força nas costas do Ruy, fazendo o homem chiar de dor. Os olhos azuis claro inebriantes do general foram de encontro com os olhos dourados de Nicholas.
      — Jure lealdade a mim, e eu deixarei o Ruy viver.
      O professor estava pronto para pedir que o Nicholas não fizesse aquilo, mas o metamorfo o pressionou novamente, impedindo-o de fazer qualquer coisa que não fosse se concentrar em suas dores.
      — Você jura que não mata ele?
      — Eu juro.
      — Então eu seguirei você.
      Aquela declaração alargou o sorriso de Rey na mesma proporção que aumentou o terror nos olhos de Ruy.
      — Agora não tem mais volta.
      Mais rápido que o Nicholas pudesse reagir, o general deu um passo para o lado e atirou no Ruy, que arfou antes de se contorcer de agonia no chão. O metamorfo riu, retirando o pé de cima do professor baleado. Aquela cena trouxe a fúria de Nicholas à tona, e, quando o jovem pensou em partir para cima do Rey, o homem socou a sua face já machucada, fazendo-o cair desnorteado no chão.
      — Mentiroso... — rosnou o mais novo, proferindo essa palavra com a mesma intensidade que o Ruy havia falado instantes atrás. A sensação de ter sido traído fora uma das mais ruins que ele já havia experimentado, sendo até pior do que a solidão. — Mentiroso, mentiroso, mentiroso!
      — Essa é uma das minhas qualidades mais notáveis.
      O Rey se orgulhava daquilo, orgulhava-se de ter conseguido engana-lo. Idiota, burro, ingênuo e estúpido eram xingamentos que o jovem direcionava a si mesmo. Ele se odiou com todas as suas forças por ter acreditado em um integrante da Divisão.
      — Ei! — exprimiu Rey para o metamorfo ao mesmo tempo em que dava as costas para seguir o seu caminho. — Pegue o meu novo subordinado e...
      — EI! — exclamou o parceiro do general quando o Ruy se levantou do chão como uma fera indomável. Mesmo com a lateral de seu corpo ensanguentada devido aos pontos abertos e o tiro que havia pegado em seu ombro o atormentando até a alma, o professor não se permitiu parar. Ele preferia morrer ao viver e, futuramente, ter que ver o Nicholas ser igual ao Rey. Ah, aquilo sim era pior do que a própria morte.
      Ruy pulou sobre o Nicholas, abraçando-o contra si, e, em seguida, bateu a sua mão direita no seu próprio corpo. Ao fazer isso, o seu físico saiu do chão e começou a seguir rumo ao alvo que havia sido marcado na palma de sua mão.
      A porta de entrada da A1.
      Percebendo aquela situação, Rey segurou sua arma com força e correu para impedir que a fuga ocorresse. Se o Ruy morresse, as habilidades dele sumiriam. Mirando bem na cabeça de seu irmão, todo o foco de Rey estava naquele tiro que, quando foi soado, acertou em cheio.
      O ar.
      Nicholas conseguiu ver, por cima do ombro saudável do Ruy, o momento exato em que a sua vida foi salva por alguém que ele nunca esperava que fizesse isso. Ralph. Os olhos dourados do rapaz se encheram de lágrimas quando o Rey escorregou no ursinho, sendo este o motivo do tiro não ter acertado o Ruy. Quando o general notou que não havia mais como impedir aquela fuga, o urso que o havia atrapalhado foi incinerado. Nicholas fechou os olhos para não ver aquilo, e se encolheu nos braços de seu professor.
      — Obrigado, Ralph.

      Durante a volta até a A1, Nicholas permaneceu de olhos fechados enquanto lágrimas quentes desciam pelo seu rosto ferido, no entanto, quando as costas de Ruy bateram contra o elevador de vidro e foram com tudo até o chão, ansiosas para alcançarem o alvo, o gemido de dor que ecoou da garganta do professor fez com que um grande pavor se apoderasse do rapazinho. Ruy deu tudo de si para segurar o Nicholas contra si, mesmo que o ombro e a lateral do corpo lhe garantissem uma agonia alucinante. A visão do professor estava turva devido a grande perda de sangue e a força dele foi diminuindo durante o caminho.
      Quando saíram de dentro do elevador, agora melado do sangue do homem, as pessoas que estavam perambulando pela área exterior da academia ficaram boquiabertas com a imagem de alguém ensanguentado voando sobre as suas cabeças. Quando as costas de Ruy bateram com tudo na porta de entrada da A1, a aflição que irradiou pelo seu físico foi insuportável, fazendo com que o mesmo largasse o Nicholas antes de cair no chão junto ao jovem.
      O professor da K2 sentia cada vez mais dificuldade para respirar, e o sangue que se aglomerava em sua boca e escorria pela lateral de seus lábios fez com que o Nicholas ficasse sem reação. Ao lado do seu amigo, o mais novo o observou tossir sangue enquanto o líquido vermelho também vazava pela lateral do corpo, encharcando as roupas da criança, que tremia.
      — R-Ruy! — gaguejou, com a voz falhando. Quando os olhos azuis do professor se fixaram nos do menino, o mais novo engoliu em seco, tentando não entrar em pânico por conta do que estava vendo. — V-Vamos para a enfermaria? V-Você... — seus olhos dourados seguiram até o seu próprio corpo, e ver o sangue do seu amigo em suas vestimentas o fez derramar lágrimas; o mesmo segurou a vontade de vomitar. — V-Você prometeu que ia me ver ser forte... Eu ainda não sou. V-Você vai cumprir essa promessa, não é? Você v-vai ficar vivo e me ver crescer, não vai? — perguntou, em busca de um fio de esperança para se agarrar. — Por favor, Ruy... — continuou, voltando os olhos cheios de lágrimas até os do professor, que também estavam ensopados. — Você é meu único companheiro. Por favor, eu estou implorando. Por favor.
      O choro irrompeu do interior do garoto com tanta força que ele nem se importou com a multidão de curiosos que se aproximavam dali para verem o que havia acontecido com o homem ensanguentado voador.
      — Nic... — Ruy tentou falar, mas se engasgou com o próprio sangue.
      As gotas avermelhadas espirraram no jovem quando o professor tossiu, fazendo o rapaz arregalar os olhos, aterrorizado. Ver o seu amigo lutando para continuar vivo era algo que o destruía por dentro.
      — UM MÉDICO! — gritou, para as pessoas a sua volta. — ALGUÉM CHAME UM MALDITO MÉDICO, POR FAVOR! O MEU AMIGO ESTÁ MORRENDO! — repetiu, com raiva, dor e tristeza. Apenas quando o menino viu alguns correndo para chamar ajuda que ele voltou os olhos, arregalados de medo, para o Ruy. — Vai ficar tudo b... NÃO!
      A atitude do professor o deixou em choque, quase como se o mundo inteiro o estivesse pressionando só para ver até onde ele aguentaria. Graças ao Ômega, Nicholas havia conseguido puxar a adaga da mão de seu mentor antes que ele conseguisse terminar o que pretendia fazer: cortar o próprio punho fora.
      — Você está louco?! — as palavras já começavam a sair com dificuldade devido a alta adrenalina que percorria nas veias do mais novo.
      Entretanto, quando aquele olho azul claro observou o Nicholas com firmeza, os ombros do jovem caíram, quase como se o peso do mundo tivesse dobrado. O Ruy não iria conseguir cumprir a sua promessa de vê-lo crescer. A respiração da criança ficou tão acelerada quanto seu coração.
      — Prometa para mim... — iniciou Ruy, com todo o restante de forças que lhe havia sobrado; a voz dele, tão rouca e distante, fez com que o Nicholas mordesse fortemente os lábios na intenção de segurar o choro para ouvir atentamente o que o seu amigo tinha a dizer. — Prometa que não vai se juntar a Divisão, que vai continuar sendo quem você é e que não deixará que nem a A1 nem ninguém mude a sua essência, pois você é um garoto admirável. Prometa.
      A súplica na fala do professor fez com que os soluços de Nicholas se intensificassem e, ao ver que o homem havia fechado o punho, o rapaz imediatamente entendeu o recado e bateu o seu contra o do amigo.
      — Eu prometo! — declarou, com uma firmeza que o menino não sabia de onde vinha. A resposta dele fez com que um sorriso fraco surgisse no rosto do homem. — Aguente firme! Os médicos já vão chegar e... e... — a palidez e a frieza daquele corpo não eram normais, porém, só quando o olhar do Ruy pareceu desfocar que o Nicholas entrou em estado de choque. — R-Ruy?
      Silêncio. Aquele som acompanhou o Nicholas por muito tempo, e o jovem já estava bastante familiarizado com ele, contudo, ali, a ausência de som foi diferente. Ele nunca havia experimentado aquilo de uma forma tão dolorosa e fria quanto provava agora.
      — R-Ruy? — perguntou, baixinho, enquanto apertava a mão gélida do homem que mudara a sua vida. — Ei... — insistiu, encarando aqueles olhos azuis com esperança de que eles se voltassem para si outra vez. — RUY! — exclamou, como se pudesse acordar o professor com um berro.
      — O cara já era — comentou um homem, sem um pingo de sensibilidade.
      Os olhos de Nicholas dispararam em direção aquele indivíduo com tanta fúria presente neles que o sujeito acabou recuando um passo por puro instinto.
      — CADÊ O MÉDICO? — gritou, explodindo em raiva. — TRAGAM ALGUÉM PARA CURAR ELE AGORA! — exigiu, e a maioria apenas encarou o menino com uma certa pena.
      — Não tem como curar o que já está morto, criança — disse o homem na qual os olhos de Nicholas ainda estavam fixos. Aquelas palavras atingiram o jovem como se fossem tiros, e a vista do mesmo se voltou para o Ruy e para o sangue dele em seu corpo. — Sinto muito pela perda, mas esse tipo de coisa acontece se você não tiver capacidade de se defender sozinho. Apenas os fortes sobreviv...
      — AAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!
      O garoto usou todo o fôlego que tinha para gritar. O sangue do Ruy, que estava em seu corpo, pesava, quase como se estivesse culpando o menino por cada gota derramada; essa sensação o consumiu por inteiro conforme vários pensamentos contraditórios surgiam em sua mente. A única pessoa que estava com ele lhe fora tirada pela Divisão sem nenhum motivo, e aquela A1, aquela maldita academia, não tinha aceitado o homem que poderia ter sido o melhor professor daquela instituição apenas porque, na visão atrofiada deles, o Ruy não era digno nem forte o bastante para representa-los – assim como o rapaz também não era.
      Uma onda de raiva encheu o seu corpo quando as pessoas ao seu redor começaram a murmurar sobre o homem morto, tentando adivinhar o que havia acontecido com ele. A Divisão e a A1 eram farinha do mesmo saco. Ambos se sentiam tão superiores, tão intocáveis, tão perfeitos. Diante deste pensamento, o ódio e a dor de Nicholas se intensificaram, e, quando ele tomou fôlego para dar outro grito, alguém colocou a mão em seu ombro e o puxou com força para trás, tentando afasta-lo do corpo do Ruy, do corpo do seu primeiro e único companheiro.
      — TIRE A PORCARIA DA MÃO DE MIM! — rugiu, e, naquele instante, algo dentro de si se acendeu, quase como se o limite de sua fúria tivesse sido alcançado e, agora, todo o seu interior só conhecia essa sensação; e ele não fez o menor esforço para reprimi-la.
      Todos ali, que se achavam tão superiores a tudo, mereciam experimentar a agonia que o rapaz estava sentindo.
      Convicto disso, Nicholas abriu os braços, afastando a mão do homem de seu ombro graças a esse gesto e, sem nem pensar duas vezes, o garoto mergulhou na escuridão que inflamava dentro de si. As veias do rapaz queimaram quando ele simplesmente parou de se importar com tudo – inclusive com ele próprio. Nada mais importava, nada que não fosse fazer com que todos ali sentissem o que o mesmo sentia. Então, mergulhado dentro de suas forças, Nicholas bradou e, junto ao grito, tudo o que um dia estava contido dentro de seu físico explodiu.
      Incontáveis portais foram criados pelo ambiente. Cada habilidade se abriu em diferentes tamanhos e formas, mas todas mantinham uma colocarão azul escura que, devido a quantidade enorme delas, acabou transformando o lugar numa noite escura. Tão escura quando o ódio que habitava dentro de si.
      Nesse instante, em que todo o local havia sido infestado pelas habilidades recém despertadas do jovem, a equipe médica, várias pessoas e o diretor – que fora ver o homem ensanguentado na qual todos comentavam – arregalaram os olhos perante todos aqueles portais. Entretanto, não demorou para a surpresa deles se transformar em pavor quando cada uma daquelas passagens, que abriam caminhos para diversos locais, começaram a expelir o que haviam dentro de si. Fogo, água, raios, vento, gelo, metal... Cada portal disparava algo para fora de si, fazendo com que a multidão que estava entre aqueles poderes começassem a gritar enquanto usavam as suas próprias habilidades para se protegerem. O diretor observou tudo aquilo de queixo caído, porém, quando os seus olhos seguiram até um portal preto que se abria vagarosamente próximo ao corpo do homem morto, um arrepio percorreu a sua espinha.
      As pessoas que estavam cercadas pelos portais lutavam para não serem atingidas pelos diferentes tipos de ataques que eram direcionados para elas, contudo, como a quantidade dos portais era muito grande, era inevitável que muitos não acabassem sendo, hora ou outra, golpeados por algo. Os gritos, que eram uma mistura de determinação e desespero, intensificavam-se com o passar do tempo, pois os portais que estavam ali dobravam de tamanho a cada segundo, quase como se tentassem se equiparar a fúria que emanava do interior do Nicholas.
      Todavia, quando uma risada demoníaca ecoou pelo portal preto, que se abria lentamente entre o corpo de Ruy e o do rapaz, todos se calaram, espantados. A risada foi aumentando, como se o ser estivesse se aproximando deles e, naquele momento perturbador, os gritos, que antes pareciam ser de guerreiros que lutavam bravamente, ficaram cheios medo e terror. Não havia ninguém que não conseguisse sentir o cheiro da morte e da destruição vindo do portal escuro. 
      Que tipo de besta havia do outro lado?
      Nicholas não escutava os gritos, a risada que se aproximava e nem mesmo percebeu os portais que ele mesmo havia criado. Tudo o que o garoto conseguia identificar era a agonia que queimava seu interior e o obrigava a colocar para fora toda a energia que o sobrecarregava por dentro. Toda a frustração guardada estava sendo liberada naquele momento, e o rapaz queria mais, queria... Ele bradou outra vez, numa tentativa de aliviar a tensão que o consumia. O Nicholas queria matar aquele povo, que não conseguiam ver o valor das pessoas. Queria fazer todos sentirem o desespero e a dor dele, queria provar para cada integrante da A1 que eles não eram tão perfeitos quanto acreditavam ser. Uma escuridão rugiu dentro de seu ser, como se houvesse um portal se abrindo dentro de si também, como se alguma coisa quisesse possuí-lo. Ele não lutou contra aquilo, pelo contrário.
      O garoto abriu as mãos e jogou a cabeça para trás, abraçando aquele poder que se manifestava dentro de si sem freio. Ao fazer isso, a parte externa de seu corpo foi tomada por uma aura azul escura, da mesma colocarão dos portais, que o cobriu como se fossem chamas, e, quando o jovem sentiu que aquele poder, tudo aquilo que estava adormecido dentro de si por tanto tempo, estava totalmente ao seu controle, Nicholas se preparou para liberta-lo e varrer todas aquelas pessoas da face da terra.
      Ao fechar os punhos para dispensar tudo o que tinha – aquele poder, a benção do espírito dos portais de seu pai que, agora, era uma habilidade sua, tornando-o no nível de um espiritual –, o seu braço direito emitiu uma dor e pesou, fazendo com que o menino levasse o seu olhar até essa área de seu corpo.
      O punho na qual o mesmo havia feito um juramento com o Ruy estava tenso. “Não deixe que mudem a sua essência, você é um garoto admirável”. Admirável. Um nó se formou na garganta de Nicholas. O que o Ruy pensaria a respeito dele agora? Por Envyr, o mesmo havia acabado de jurar que não permitiria que mudassem a sua essência!
      O arrependimento que ele sentiu foi como uma luz que extirpou a escuridão do ódio que estava dentro de si. A fúria voltou a ser tristeza e, quando aquele sentimento o tomou, as suas forças se esvaíram. A sua vista baixou até o Ruy, que o encarava com aqueles olhos distantes e frios, mas, de alguma forma, por um momento rápido, aquele homem, o seu amigo, pareceu sorrir, como se estivesse feliz pelo ataque de raiva ter sido interrompido. Nicholas tentou falar algo, mas a sua voz tinha sumido após gritar tanto, então tudo o que ele pôde fazer foi encarar o seu professor com os olhos cheios de lágrimas enquanto caía sobre o sangue do homem. Os portais do garoto desapareceram junto com o seu vigor, e, quando os seus olhos pesaram, puxando-o para um outro tipo de escuridão, uma voz gentil cheia de orgulho e admiração – a voz do Ruy – sussurrou uma última vez.
      “Meu garoto”.

      — Os portais que você conseguiu criar advém de um espírito que o abençoou ao nascer. Atualmente, esse ser está com o seu pai. O seu poder de manipular a densidade do corpo, o qual você herdou de sua mãe, não era muito bem controlado por conta das habilidades do espírito do portal que estava adormecida em seu interior. O seu pai nasceu sem poderes, por isso ele e a sua mãe decidiram fazer com que o espírito te amparasse, porém, pelo que vejo, você não só herdou os poderes de sua mãe, mas também o meu, de se teleportar, e, agora, o do espírito de seu pai! Mesmo tendo tudo isso, você ainda pode escolher o espírito que quiser para virar um espiritual, e... — Nico, o avô de Nicholas, parou de explicar as coisas quando notou que o seu neto não estava prestando atenção.
      Haviam passado três semanas e meia após a morte do Ruy, e, mesmo assim, o rapaz ainda estava sem voz devido aos gritos que havia dado quando soube que perdera o seu companheiro para sempre. O garoto tinha parado de comer também, e isso preocupou muito o avô, que sabia do grande apetite que o menino tinha. Nesse pouco tempo, o Nicholas, que costumava ter um certo peso, estava seco – tanto que o Nico chegou a pensar que os poderes dos portais estavam sugando rapidamente as reservas de energia do jovem. Se o mais novo continuasse assim, logo não haveria mais o que alimentar as habilidades latentes do mesmo, o que acabaria levar o rapaz a desmaiar – ou pior. Nico observou o neto com dor e arrependimento, inconformado por ver que o Nicholas, uma criança de apenas seis anos, já tinha olheiras profundas ao redor dos olhos inchados, tinha cabelos bagunçados e sujos, uma magreza nada normal, uma expressão morta e sem esperança pairando em seu rosto e... O velho engoliu em seco.
      — Cadê o Ralph?
      O mais velho se arrependeu da pergunta na mesma hora em que aqueles olhos sem vida de seu neto se apagaram mais ainda, quase como se a indagação tivesse ativado uma memória que o menino queria tanto esquecer. O coração de Nico se apertou.
      — Sei como é difícil perder alguém que amamos... — sua voz saiu rouca, carregada de ressentimento e tristeza. — Quando perdi a sua avó, eu senti como se a vida não fizesse mais tanto sentido.
      Os olhos âmbar de Nicholas focaram no avô quando ele começou aquela conversa. Era a primeira vez que o homem falava de sua avó, porém, quando o rapaz percebeu que o ancião não ia mais conseguir prosseguir com o assunto, o mesmo tentou falar algo, contudo, não teve voz. A sua rouquidão era tão profunda que até engolir a saliva fazia a sua garganta arder. Sendo assim, Nicholas se levantou de sua cama em direção a escrivaninha no canto do quarto para pegar caneta e papel, onde escreveu apenas uma coisa.
      K2.
      Nico pareceu entender o recado na hora, e a mudança no tema daquela conversa acabou tirando o semblante abatido e arrependido da face do idoso.
      — Eu soube que o... — ele se interrompeu antes de proferir o nome do Ruy. — Soube que ele era um professor da K2. Imagino que você queira ir para lá... Essa academia fica mais próxima do local onde trabalho do que a A1, mas eu não terei tanto acesso nesse lugar. Não é estranho que eu venha para a “melhor academia” de vez em quando, porém, se após a sua partida, eu começar a ir para a K2, as pessoas poderão descobrir que temos uma conexão. Ou seja, não poderemos nos ver com tanta frequência.
      Nicholas deu de ombros, e aquilo, de certa forma, feriu o mais velho. Ele só visitava o neto uma, no máximo duas, vezes por mês, mas saber que agora só poderia ver uma vez a cada alguns meses e as escondidas era um baque. O pior é que o Nico sabia que, se aquilo era difícil para ele, para o seu neto deveria ser ainda mais.
      Nicholas voltou a escrever, fazendo com que o mais velho o observasse com um olhar reflexivo.
      “Eu vou treinar e controlar os meus novos e antigos poderes, aí o senhor não vai precisar se preocupar comigo. Vovô, eu não quero mais ficar nessa academia. Eu me recuso a permanecer aqui pois, quando eu me tornar o homem mais forte do mundo, quero que todos saibam que vim da K2, da academia do Ruy, e não da A1, que não conseguiu reconhecer o potencial tanto do meu amigo quanto o meu. Para mim, essa não é a melhor academia, e sim a pior.”
      Nico leu cada palavra com atenção, e, em certo momento, os olhos do mais velho arderam. Com a morte do Ruy, o seu neto agora iria passar pela solidão outra vez, mas de uma forma pior, porque agora ele sabia como era a sensação de ter alguém com você a todo momento. O ancião se xingou mentalmente por só poder observar o jovem passar por tudo aquilo só para que continuasse seguro e vivo. Se o pequeno soubesse a dor que os seus progenitores sentiam com a ausência dele e com o fato de não poderem estar presentes para ajudá-lo...
      Mas era um mal necessário.
      Se descobrissem de quem o Nicholas era filho, o menino iria ser caçado até os confins do mundo para que, com a sua captura, pudessem atingir os seus pais, que estavam numa posição muito alta e perigosa. E o Nico sabia que, se o Nicholas fosse pego, os progenitores dele não mediriam esforços para resgata-lo, o que poderia acabar destruindo a pouca esperança de um futuro melhor. Manter a identidade do menino em segredo era vital.
      — Entendi — declarou o idoso, após terminar de ler o que o jovem havia escrito. — Eu mesmo te treinarei. Eu virei às escondidas uma vez a cada duas semanas para ver o seu progresso e saber se está fazendo tudo o que mandei. Não poderei ensinar tudo o que sei ainda, mas te darei instruções o suficiente para que você consiga controlar as suas habilidades e usa-las para o que quer que precise.
      Ao ouvir as palavras de seu avô, um sorriso agradecido se abriu nos lábios de Nicholas – o primeiro riso há semanas – e o mesmo correu para abraçar o idoso. Nico retribuiu o gesto com força, quase como se pudesse tirar o neto daquele mundo e teleporta-lo para um melhor por meio do abraço – se ele pudesse realizar isso, o homem não pensaria duas vezes antes de o fazer.
      Um suspiro forte saiu da boca do idoso por saber o que a criança teria de aguentar enquanto permaneceria na A1. Além da solidão, agora o menino teria de aguentar outro tipo de dor, mas o Nico não queria pensar tanto nisso, então, para tentar consolar o seu neto antes que ele passasse pelo que iria passar, ele declarou;
      — Algumas pessoas merecem morrer.


      Nicholas iniciou o treinamento.
      Dia após dia, ele seguiu as instruções dadas pelo seu avô. Além dos ensinamentos de seu familiar, o menino não deixou de sempre ir até a área onde ele, Ruy e Ralph treinavam juntos e, ali, o garoto arremessava as adagas em diferentes alvos e de várias maneiras diferentes, pois, enquanto aperfeiçoava a sua mira, o jovem sentia que ao menos uma parte do Ruy estava viva.
      As palavras que o Nico havia lhe falado em relação a morte das pessoas fez sentido para o Nicholas quando ele teve que sair do quarto e enfrentar os demais. Após o ocorrido com os portais, a notícia de que ele machucou e matou algumas pessoas – entre elas, o garoto com metade do cabelo verde e a outra metade azul – rodeou pela academia, e o temido portal negro que abriu passagem para uma criatura de risada demoníaca lhe conferiu um apelido diferente de Esquisitholas, sendo agora conhecido em toda a A1 como ovelha negra. Para evitar que a culpa engolisse o Nicholas e o arrastasse de volta para o estado de luto em que ele se encontrava antes, o Nico havia tentado preparar o rapaz psicologicamente com aquelas palavras.
      Algumas pessoas merecem morrer.
      Além dos jovens, os adultos também lançavam comentários terríveis para o garoto, contudo, agora, isso não afetava tanto o Nicholas. O foco dele não era mais se integrar – não àquela gente. Mesmo em meio a ataques psicológicos, solidão, olhares de desprezo e muitas outras coisas que eram direcionados para si, o menino jurou, batendo o seu punho um contra o outro, que ele seria diferente. O rapaz não julgaria, e sim acolheria, protegeria. Ademais, o passado dos outros não seria critério para que o mesmo se aproximasse ou não de alguém, porque o jovem estava cansado de ser julgado pelo que fizera com as pessoas da A1. Ele queria ter matado o povo, e uma parte de si ainda não se arrependia desse ato, e era exatamente por conta disso que Nicholas buscaria entender os outros, porque ele mesmo nunca fora entendido.
      Ninguém iria passar pela solidão, ninguém merecia viver só e esquecido. Ninguém morreria sozinho, e ninguém seria julgado pelo seu passado se apresentassem uma mudança nas suas atitudes. Se a luta por um mundo melhor dependesse da força dele, Nicholas jurou que não pouparia esforços para fazer o que o Ruy lhe pedira.
      “Estremeça esse mundo, Nicholas”.
      Ah, nada o pararia. Nem a A1, nem a Divisão; nem os comentários terríveis, nem os olhares de nojo; nem a solidão, nem o silêncio; nem as fraquezas, nem o cansaço; nem as academias, nem os reinos; nem o país, nem o mundo. Nicholas não iria parar, não até conseguir estremecer aquele planeta e construir um totalmente novo.
      E ele não quebraria esse juramento.

      Um ano e dois meses.
      Esse foi o tempo exato que o Nicholas passou treinando, aguentando a solidão, a zombaria, o bullying, a opressão dos professores e das crianças, os insultos e mais um monte de ataques psicológicos que muitos não suportariam. Mas ele não cedeu. No dia dez de outubro, em seu aniversário de oito anos, o rapaz saía da A1 com malas em mãos e com um semblante alegre e orgulhoso na face. Os olhares de repúdio que lhe eram desferidos pelo caminho já eram algo tão comum que o garoto nem mais os notava.
      Ele os havia vencido.
      O menino estava indo para a academia do Ruy, para um lugar completamente novo. Nicholas White havia prometido a si próprio que, nessa nova instituição, seria ele mesmo, independente de qualquer pessoa ou coisa. O tempo de se encolher ou ficar calado havia terminado. Ademais, não importava para o jovem se a recepção na K2 fosse idêntica a da A1, pois o simples fato dele poder carregar o símbolo do K2 em si – o símbolo que o Ruy carregava – já era uma vitória. Pelo seu amigo, o homem que o tirou da solidão e o salvou de si mesmo, o rapaz enfrentaria tudo.
      Quando estava se aproximando do elevador de vidro que o tiraria daquele lugar, Nicholas parou para dar uma última olhada no ambiente ao seu redor, e, ao fazer isso, o mesmo notou o olhar de uma garota sobre si. Os olhos ônix dela estavam fixos nele, uma tiara dourada estava acima dos cabelos crespos, que tinham as laterais presas a tranças enquanto a parte de trás estava solta e volumosa, dando a menina uma grande imponência que, junto aos ombros erguidos e o semblante confiante, retratavam tudo sobre quem ela era: Cássia Castilho, filha do diretor da A1, a criança prodígio destinada a grandeza ou, como os professores costumavam chamar, princesa púrpura. Nicholas abriu um sorriso para a moça, que o olhou de cima a baixo antes de dar de ombros – o máximo de consideração que ela expressaria para o mesmo.
      O jovem voltou a sua atenção ao elevador de vidro, e ele não olhou para trás nem uma única vez quando entrou naquele espaço e se distanciou de sua antiga academia. Quando chegou em terra firme, Nicholas esperava que o seu avô estivesse lá para guia-lo até a K2, porém, o mesmo arregalou os olhos ao ver que não seria o Nico quem o levaria até lá. Um homem alto, com um pouco mais que 1,80 de altura, de cabelos marrons curtos nas laterais e esvoaçantes na parte de cima, um rosto em formato quadrado, com maxilares marcantes, olhos num tom um pouco mais escuro que os seus cabelos e lábios cheios e bem desenhados sorriu para o menino, que rapidamente riu de volta.
      Nicholas tinha puxado os olhos âmbar e o cabelo castanho claro ondulado à sua mãe, mas o formato do rosto, os lábios cheios e o sorriso eram definitivamente iguais aos do seu pai, que o encarava com uma felicidade imensa.
      A viagem até a K2 deveria levar semanas, mas ele e o pai a fizeram em uma. Nesse tempo em que ficaram juntos, ambos conversaram sobre  o Ruy, os novos poderes do Nicholas, o treinamento que o avô lhe passara, sobre como a sua mãe estava e muito mais. A viagem dos rapazes foi rápida porque, no meio do caminho, os dois competiam um com o outro, criando portais e se teleportando rapidamente para ver quem chegava em certo local primeiro. Acabou num empate. Aquele tempo serviu para que o Nicholas conhecesse mais o seu pai, descobrindo que o mesmo era tão incrível quanto o Ruy, e isso o deixou muito contente.
      Quando chegaram em frente a uma floresta que protegia a K2, Nicholas automaticamente se arrependeu de ter apostado corrida com o seu pai. O jovem queria que aquele tempo entre eles durasse mais. O homem parecia sentir o mesmo, pois, quando se abaixou para se despedir do filho, uma tristeza perpassavam por sua face.
      — Será que algum dia eu serei tão legal quando o senhor ou... o Ruy?
      A pergunta fez o mais velho erguer as sobrancelhas, mas logo um sorriso percorreu os lábios cheios do homem. Depois daquela semana, Nicholas já havia decorado o tom castanho escuro com leves manchas marrons presentes nos olhos do pai, além daquele símbolo estranho em forma de círculo que havia na testa dele, que era relacionado ao espírito dos portais – ser este que ele conhecera durante a jornada.
      — Não, não será.
      A resposta fez com que o Nicholas arregalasse os olhos. De uma hora para a outra, o chão pareceu ser arrancado de seus pés. Claro, o Ruy fora uma pessoa admirável e, agora que conhecia mais o seu pai, o menino viu que ele possuía aquela mesma determinação e brilho no olhar. Ele não passava de uma ovelha negra, nunca iria conseguir ficar no mesmo nível... Ouvir isso dos outros não o havia machucado tanto, mas ouvir do seu pai havia sido doloroso.
      — Você será melhor! — o homem apressou-se em responder, ao ver que o semblante de seu filho descaíra. — Você vai superar nós dois — afirmou, e um brilho se instalou naqueles olhos âmbar. — Eu não conheci o Ruy, mas pelo que você me contou, tenho certeza de que ele ficaria orgulhoso tanto de quem você é hoje quanto de quem você será no futuro.
      Nicholas sorriu, fazendo com que o seu pai fizesse o mesmo. O homem abriu a boca para falar, mas fechou, como se estivesse hesitante em falar aquilo, contudo, quando os seus olhos se encontraram com os do seu filho, ele não teve mais dúvidas.
      — Eu sou o guerreiro escarlate — as sobrancelhas de Nicholas se ergueram ao ouvir aquele apelido. Guerreiro escarlate. Aquele era um nome maneiro. — Sou procurado pelo governo e por esse e outros motivos eu não posso permitir que qualquer um descubra a sua identidade. Mas eu prometo que um dia eu irei gritar para todo Envyr que sou seu pai — Nicholas riu, assentindo com a cabeça, e o homem sorriu. — Os seus portais têm uma aura azul... Quem sabe não haverá um guerreiro safira no futuro? Alguém forte e honrado como imagino que o Ruy fora.
      Aquelas palavras trouxeram uma feição de estima para o menino, que observou o seu progenitor com admiração. Mesmo tendo que ficar longe daquele homem e que não pudesse contar para muita gente quem ele era, Nicholas estava grato por aquele cara em sua frente ser seu pai. O garoto não o trocaria por outro, não quando o seu progenitor atendia a todas as expectativas dele – e muito mais. Sem pensar duas vezes, Nicholas abraçou o guerreiro com força, como se estivesse roubando uma parte daquela determinação e grandiosidade para si.
      Ruy e o guerreiro escarlate. É, até que ele tinha exemplos muitos bons para seguir.
      — Eu te amo muito, meu pequeno...
      — ... guerreiro safira — completou o garoto, fazendo o mais velho rir com um certo orgulho, mostrando-se feliz com o fato do filho ter tanto apreço por sua pessoa, mesmo que ele estivesse tão longe na maior parte do tempo.
      O abraço ficou mais forte.
      — Sim, meu guerreiro safira.

      Guerreiro Safira.
      De dentro da escuridão de agonia e dor dos poderes de José, que atingia o psicológico de suas vítimas e fazia com que elas sentissem angústias que na verdade não existiam, os olhos âmbar de Nicholas se abriram. O dourado queimado de suas pupilas brilharam perante a sua coragem repentina, e, em resposta a esse sentimento, as suas veias, começando pelas próximas a de seus olhos, começaram a serem infestadas por uma forte e luminosa aura azul escura, que rapidamente se espalhou por cada fibra de seu físico – igual ao dia em que o jovem havia despertado os seus poderes na A1, após a morte de Ruy.
      Aquela claridade brilhou, afastando a escuridão que a aura preta trazia para o ambiente. Sentindo o poder irradiar fortemente pelo corpo, Nicholas permitiu que a sua invulnerabilidade protegesse o seu corpo, porém, depois de sentir tantos tormentos, a sua habilidade se manifestou de uma maneira grandiosa, chegando a fazer com que o chão abaixo do garoto rachasse devido ao alto nível de poder que estava acumulado ali. Sem ter aquela aura de seu oponente lhe tocando, as dores sumiram, e, quando o Nicholas se ergueu, o solo abaixo de seus pés cedeu mais, quebrando devido a concentração de força. Naquele estado, o menino estava intocável. Assim que os olhos dourados brilharam em meio as chamas azuis, a aura negra recuou, e José, que antes estava oculto entre elas, surgiu, revelando uma expressão de espanto e descrença em seu rosto.
      Nicholas observou a si mesmo por alguns segundos, e a felicidade em seu olhar deixou claro que ele estava bastante animado com o que acabara de fazer, porém, quando o mesmo cruzou os braços em forma de X em frente ao seu corpo, todo o local parecer ficar em silêncio, quase como se soubessem que uma explosão de poderes estava prestes a ocorrer. E foi exatamente isso o que aconteceu. Quando o rapaz abriu os braços de modo brusco, as suas habilidades explodiram para fora. O fulgor azulado que pairava o seu físico serpenteou pelo ar, e, sempre que os seus poderes se encontravam com os de José, eles sugavam aquela aura escura, como se cada partícula estivesse sendo sugada para portais invisíveis à vista. Em questão de segundos, o poder do inimigo foi totalmente engolido, restando apenas as habilidades de Nicholas flutuando pelo ar, à espera do que mais podiam absorver.
      Do lado de fora da barreira, tanto Alephe quanto o Rey encaravam as faíscas azuladas com as sobrancelhas erguidas e olhos arregalados. Nicholas tinha poderes num nível semelhante ao de um espiritual, mesmo que não fosse um. Enquanto a surpresa de Alephe se transformou em alegria e admiração, a do Rey se tornou em uma feição assombrosa. Agora, mais do que nunca, o general queria que o Nicholas fosse seu. Talvez fosse isso que o Ruy havia visto no rapaz anos atrás. Um sorriso demoníaco surgiu nos lábios do homem. Ter aquele menino sob seu comando seria prazeroso.
      Quando os olhos de Nicholas, que resplandeciam tanto quanto a aura que fazia as suas veias e o redor de seu físico brilharem,  fixaram-se nos de José, o garoto da A1 engoliu em seco, temeroso. Ao dar um passo, o chão abaixo dos pés do guerreiro safira quebrou ainda mais, levando rachaduras para todo o espaço, e isso continuou acontecendo a medida em que ele se aproximava, vagarosamente, até o seu rival, que estava espantado demais para conseguir se mexer – os olhos arregalados, o tremor no corpo, e o queixo caído eram a prova disso. Quando Nicholas chegou a distância de um braço do seu adversário, José conseguiu reunir forças para proferir, com a voz falha;
      — O que é você?
      O integrante da K2 encarou o rapaz em sua frente em silêncio antes de olhar para a sua mão direita, na qual havia feito o juramento para o Ruy e para todos aqueles que ele amava. As veias azuis que marcavam a sua palma e a luz que brilhava ao redor de sua pele o fez abrir um sorrisinho antes de erguer a cabeça outra vez, pronto para responder àquela pergunta.
      — Eu sou o guerreiro safira, integrante da K2, o baderneiro da equipe X, a ovelha negra, Esquisitholas, Idicholas... — a sua voz saiu mais suave no último apelido. — Não importa como eu me chame ou quem eu seja, e sim o que irei fazer — ele virou a cabeça, encarando o Rey por cima do ombro. — Derrubarei o governo e estremecerei esse mundo.
      O general o olhou de maneira predatória, como se estivesse o desafiando a ousar fazer isso. Nicholas voltou os olhos âmbar para o José, que o observava como se ele fosse algum tipo de aberração.
      — Você matou o meu amigo! — rosnou, com ódio.
      O menino de cabelo verde e azul. Nicholas respirou fundo antes de permitir que as palavras saíssem de sua garganta;
      — Algumas pessoas merecem morrer.
      Em seguida, o jovem colocou a sua mão sobre a face de José e, velozmente, levou a cabeça de seu rival ao chão que, como já estava rachado, acabou se quebrando por inteiro devido aquele golpe. O impacto da parte de trás da cabeça do rapaz da A1 contra o solo foi forte o bastante para apaga-lo de imediato. Sem perder tempo, Nicholas se teleportou para fora da barreira criada pelo Rey e agarrou Alephe, porém, antes que o garoto pudesse tentar fazer qualquer movimento, toda aquela concentração de seus poderes sumiu, impedindo-o de usa-los, e uma súbita fraqueza o atingiu, fazendo-o cair de joelhos no chão.
      — O seu tornozelo! — apontou Alephe, mostrando o motivo de seu irmão ter perdido as suas habilidades. Quando o Rey havia conseguido colocar aquela tornozeleira de Dinks ali? — ESPERE! — gritou, e, quando o Nicholas pensou em tirar os seus olhos da algema para guia-lo na direção em que Alephe olhava, o barulho do tiro ecoou mais rápido que seus sentidos.
      Agora o José estava definitivamente morto.
      — Trato é trato! — proferiu o general, assoprando o local por onde a bala, que havia atingido o centro da testa do antigo integrante da A1, saiu. Quando aqueles inebriantes olhos azuis saíram do jovem baleado para o Nicholas, o jovem se ergueu um pouco para se posicionar como um escudo para Alephe. 
      — Corra! — ordenou para o mais novo, sem ousar tirar os olhos do general, que brincava com a arma que tinha em mãos. — Corra! — repetiu, e a sua voz saiu com tanta firmeza que o Alephe não ousou retrucar.
      — Vou chamar ajuda! — sussurrou o pequeno, de forma quase inaudível, antes de virar as costas e correr.
      Notando a tentativa de fuga da criança, o Rey apontou a sua arma na direção do mesmo, todavia, antes que pudesse atirar, o Nicholas rapidamente se levantou, colocando-se na frente da bala. Um sorriso irônico surgiu no canto dos lábios do general.
      — Acho que já vi essa cena antes, White — zombou. — Você morreria mesmo por esse pirralho?
      O olhar de Nicholas se tornou sério de uma maneira desafiadora.
      — Teste.
      O sorriso do membro da Divisão se repuxou ainda mais para cima, e, como o Alephe já havia virado um corredor a essa altura, o homem baixou a arma.
      — Nós dois poderíamos nos dar muito bem, há coisas em você que vejo em mim. Algumas atitudes suas me arrepiam e, com os meus ensinamentos, você poderia se tornar imbatível. Eu poderia transforma-lo no maior soldado que esse mundo já viu.
      Algo no interior de Nicholas queimou. Se fosse o Rey quem o tivesse encontrado chorando na moita após ter sido o “vilão” no treinamento, o mesmo não duvidava de que ele aceitaria aquela proposta sem nem pensar duas vezes. Se os gêmeos tivessem sido trocados de lugar, se o Ruy não fosse para a A1, se, se, se... A sua vida poderia ser muito diferente, ele seria diferente.
      Os olhos dourados do garoto encararam a face do general, a mesma face de seu primeiro amigo. Um nó se formou em sua garganta por conta daquela aparência familiar, mas o mesmo não se deixou enganar por ela.
      — O Ruy que me fez ser quem eu sou hoje — declarar o nome de seu antigo professor fez com que o semblante do Rey se fechasse de raiva e desprezo. — Ele me salvou, e, enquanto eu viver... — a sua mão direita, a mesma que fizera o juramento, pesou. — ... recuso-me a me juntar ao governo ou ao homem que participou de sua morte! — bradou, sem ligar para o olhar ameaçador do general sobre si. — Desista. Se hoje sou bom, é porque ele foi um professor, guia, mestre e amigo extraordinário, não você. Mesmo que ele esteja morto, você ainda não conseguiu supera-lo, seu mentiroso desgraçado.
      A profunda fúria que se instalou nos olhos e na face do Rey não fez com que o Nicholas desviasse o olhar ou abaixasse a cabeça. Aquela era a verdade, o general que a engolisse.
      — Eu tenho meios de conseguir tudo o que eu quero! — rosnou.
      Nicholas riu. Esse som fez o Rey fechar os punhos com força.
      — Só há uma única forma de você conseguir fazer com que eu pare de lutar contra a Divisão... — uma das sobrancelhas do general se ergueu, mostrando que o homem estava interessado em saber o que era; — ... me matando.
      Um sorriso diabólico surgiu nos lábios do Rey, e isso foi tudo o que o Nicholas conseguiu ver antes do homem alcança-lo. A velocidade do homem era gigante, quase sobre-humana; quantos anos de treino ele havia tido para conseguir se mover daquele jeito?! O rapaz não teve tempo para pensar nisso, pois, em menos de segundos, a sua cabeça foi lançada direito contra o solo. Rey segurou a cabeça do mesmo com força, sem ligar para o sangue que escorreu da face do menino devido ao impacto repentino.
      — Você tem coragem, White, mas a falta de conhecimento que você tem sobre a Divisão irá te levar a ruína. Se você não quer seguir as minhas ordens por bem, há como fazer com que as obedeça por mal! — Nicholas sentiu algo ser enfiado em seu pescoço, e, quando o líquido da seringa entrou em sua corrente sanguínea, o seu corpo foi adormecendo. — Quando chegarmos no setor Karosa, no meu território, eu te mostrarei que até mesmo o homem mais resistente pode se render ao governo. Eu quebrarei o seu espírito, a sua força interior, da mesma forma que fizemos com a antiga Classe S.
      Aquela informação fez o garoto da K2 erguer as sobrancelhas, surpreso, porém, o líquido que foi injetado em seu interior começou a lhe causar uma dor gritante seguido de uma fraqueza, formigamento e paralisação corporal. Sub-x. Rey colocara uma quantidade pequena daquele material no rapaz, mas era o bastante para deixa-lo desacordado por alguns minutos, todavia, antes que a escuridão pudesse reivindica-lo, Nicholas ainda pôde ouvir as palavras finais saírem da boca do general.
      — Eu juro, e dessa vez não minto, que cumprirei a minha palavra de que o transformarei em alguém igualzinho a mim. Isso fará o Ruy se revirar no maldito e imundo túmulo, mas não terminará por aí. Depois de garantir que não há mais nada relacionado ao meu querido irmão dentro de você, eu te transformarei no subordinado mais fiel de toda a Divisão — uma risada sádica e grave ecoou do fundo de sua garganta. — Você vai desejar ter morrido com o Ruy, Nicholas White.

E aí gente, tudo bem?
Estou passando no final do capítulo pra lembrar vocês de deixarem uma estrela ☆ e um comentário dizendo o que vocês acharam ♡
Por Hope, como assim antiga Classe S?! E que teorias vocês têm sobre isso? Ah, e é muito bom ter algumas das dúvidas em relação ao nosso Idicholas explicadas, não é? Agora podemos dormir em paz 🤧
Por hoje é só, até breve, galeraa! ✊

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