Vinte e Seis

O professor Tobias apareceu.

Naquela manhã insuportavelmente quente, eu estava abrindo os caixotes de madeira que acabaram de ser descarregados, quando vi, ali, entre a madeira podre e o vidro trincado, sua silhueta magra e esguia.

— Vejo que já começou sem mim. — disse o professor, enquanto abria a porta e entrava naquele galpão vazio. E eu temi, de verdade, que aquelas dobradiças rompessem e toda aquela carga de madeira caíssem sobre suas costas. Era capaz que Tobias desmontasse igual um boneco de vareta se isso acontecesse. — Nossa — ele fez careta e depois espirrou. — Isso mata minha alergia.

— Não tive tempo de limpar tudo ainda. Cheguei a menos de uma hora. — respondi.

O professor me ajudou a abrir as demais caixas. Foi difícil e demorado, BEM DEMORADO, já que o empacotador inventou de enfiar um prego maior que minha mão nos caixotes. Se brincar, eram os mesmos que pregaram Cristo. Deus que me perdoe.

Ao fim, aproveitamos para passar a vassoura e jogar um pouco d’água no chão afim de tirar aquele cheiro pútrido de bolor. Sim, era estranho dois homens fazendo esse tipo de serviço, mas todas as colegas mulheres da comuna que convidei para me ajudar, coincidentemente tinham outros compromissos. E assim nós fizemos, apenas nós dois, Tobias e eu, levando quase uma hora. Eu esperava também tirar as teias do canto das paredes e passar um pano entre as janelas, mas a porta se abriu, escutei uma risada e uma voz que não queria estar escutando.

— Ora, ora, esperava encontrar com Franz e Tobias, mas pelo visto só estou vendo duas mocinhas fazendo o serviço de casa — virei-me para trás. O conhecia, infelizmente.

— Senhor Dom Sélquis? — disse sem um relevo de ânimo.

— Se não fossem tão feias, eu até levava para a cama. — ele gargalhou mais.

Soltei o espanador e tirei o pó das roupas. Depois, mudei de assunto ignorando completamente o que ele disse.

— É uma surpresa vê-lo aqui, senhor Dom.

— Que localzinho mais bizarro — ele disse, também me ignorando. Ele passeou o rosto pelo lugar. Não tinha muito o que ver, para falar a verdade. Era uma sala pequena, vazia, com o papel de parede descascado e manchado. — Então aqui vai ser o seu jornal? Gostei quando escutei por aí que você seguiria com a ideia.

— O nome vai ser “Correio Comunal”

— Lembra a palavra “comuna”. — ele disse.

— Lembra “comunidade”. É um jornal de todas as comunidades, de todo o povo.

Ele seguiu caminhando pelo lugar. Olhava para cima e para baixo, viajava as írises pelo papel de parede, como se analisasse bem cada um dos defeitos que encontrava, cada um dos rasgos, das fissuras e das manchas que via.

— E a contabilidade? — perguntou.

— Estou a três meses planejando. Só agora consegui alugar esse espaço e comprar também um pouco de papel e equipamentos. — suspirei com a última frase, ele percebeu.  

— Você sabe que se não tiver lucro logo, vai ficar no vermelho, né?

— Não precisa me lembrar disso, eu sei. Com o que eu ganho nas missões mal dá para arcar com o valor dos papéis e equipamentos, quanto mais o aluguel do prédio.

Ele enfim parou de analisar o papel de parede e voltou a atenção para onde estávamos.

— Vou falar a verdade, você não vai ter lucro nenhum agora, nem depois, nem daqui há um, dois, ou três anos. Você vai ficar no vermelho e, inevitavelmente, vai falir. — estremeci, mas só um pouco, porque fiquei bravo logo em seguida.

— Se você sabia disso, por que raios disse para eu abrir um jornal?

— É assim que funciona os negócios. Você tenta, tenta, se não der certo, acontece. Não há garantia nenhuma que um negócio dará certo se for aberto. Você não tem dinheiro para investir...

— Eu estou investindo com Franz — Tobias o interrompeu. — sou sócio da empresa.

Dom Sélquis ficou em silêncio, parecia refletir em algo, mas não deveria ser nada tão importante, já que depois prosseguiu sem mudar um milímetro a expressão:

— Ainda assim não é o suficiente. Você precisa de mais investimento, de mais dinheiro. Seu negócio não vai pra frente só com disposição e uma ideia bonita.

— Com todo o respeito senhor, mas o que o senhor sabe sobre isso? — Dom Sélquis facilmente ficaria ofendido com aquilo, mas desta vez não. Estranhei, ele gargalhou, depois se virou e voltou a vislumbrar o papel de parede – que por sinal nem era tão interessante assim – em silêncio.

Peguei Tobias me encarando com surpresa.

— Você não sabe? — ele perguntou. Neguei com a cabeça. — O senhor Sélquis é o dono de uma das maiores empresas de fabricação de papéis de parede de todo o continente. Ele também é acionista majoritário da Hillary Steel Company americana. Dizem que a onde ele vai, começa a chover libras com uma porção de dólares. — paralisei. Era sério isso mesmo? Um magnata estava bem aqui no meu galpãozinho esquecido numa rua sem saída?  

Comecei a ponderar mil coisas, mas uma delas era óbvia, eu precisava pedir um investimento, era a minha chance.

— Senhor Dom...

— Nem pensar. — ele foi incisivo, ainda de costas.  

— Mas você nem sabe o que vou dizer.

— Vai me pedir dinheiro, não vai? Geralmente é isso que as pessoas pedem ao saberem quem sou. Estranhei que não tivesse feito isso até agora. — ele se aproximou novamente de mim — Sabe, Franz? — e deu um sorriso de canto de boca — eu poderia, com toda a facilidade do mundo, recuperar aquelas terras para você. Com o dinheiro e influência que tenho, consigo fazer até mesmo o papa excomungar aqueles miseráveis que lhe fizeram aquilo. Você nunca mais iria vê-los. Mas não quero fazer isso. — não vou negar, fiquei sim com raiva. — Eu comecei do zero, exatamente do mesmo lugar que você. NÃO, pior, eu era um escravo, miserável e preto. Sou tão preto quanto a tinta dessa janela. Lembro-me das pessoas pensarem: “Como posso comprar algo de um criolo miserável?”, precisei lutar muito, contratava brancos para me representarem, usava nomes falsos, fingia ser um deles. No final, se um preto conseguiu ficar rico, um branquelo inglês filho de nobre também consegue. É por isso que não quero e nem vou te ajudar.

Suspirei alto e o encarei de canto, com mágoa.

— Tudo bem. Eu também gosto de fazer as coisas do meu jeito.

— Não me entenda mal — ele tomou novamente a palavra — Não faço isso por raiva, rancor ou qualquer coisa dramática assim. Só que esse caminho difícil, é um caminho importante, que vai te ensinar muita coisa. Se o seu negócio chegar a dar certo um dia, será graças a tudo o que você passou que ele permanecerá crescendo. Agora, se eu te der tudo de mão beijada nesse começo, na primeira dificuldade, você vai fazer merda e vai se dar mal. — ele recostou sua mão gigante em meu ombro — Vai por mim, foi graças a tudo o que passei que me tornei essa pessoa incrível que sou hoje. Imagina só? O mundo seria uma lástima sem mim!  — se o senhor Dom Sélquis era ou não alguém responsável e respeitável, ainda era algo a se questionar, mas, naquela vez, senti como se ele estivesse com a razão. — Mas só um adendo, Franz! Não importa o que você faça ou quem se torne, sempre serei o senhor Dom Sélquis para você, tudo bem?

Revirei os olhos.

— Então tá, com sua licença, senhor Dom Sélquis. — decidi por entrar na questão principal daquela manhãzinha, logo — Afinal de contas, o que trás o grandioso classe alfa de Cartago a um galpão como esse? Suponho que não seja apenas para me dar dicas de negócios. — ele sorriu imponente, ficou satisfeito com a bajulação. Se me conhecesse bem saberia que foi sarcasmo. Tobias percebeu, e escondeu o riso com a mão.

— De fato — ele riu — Eu não perderia meu tempo fazendo isso. — ele pausou, depois me olhou com desalento — Não que você seja um desperdício de tempo, mas, sendo sincero, existem coisas mais importantes que eu poderia estar fazendo. Mas enfim! Vim a pedido do Conselho de Cartago.

— O QUÊ? — O professor Tobias exclamou estarrecido. Ele se deu conta da indelicadeza e se sentiu envergonhado — Que... Pe-perdão. Quero dizer, o que o conselho tem a tratar conosco?  

— Por acaso é algo sobre o atentado? — sugeri. — Já dei meu depoimento ao professor Hamicota, não escondi nenhum detalhe.

— Não, não é sobre o atentado — Dom Sélquis revirou os olhos — Por Deus, me deixem concluir! — ele bufou como um cachorro cansado — É sobre uma missão, uma missão muito importante. Talvez, a missão mais importante de toda a sua vida melancólica, Franz. E ela está bem acima das nossas cabeças. — Fiquei confuso, olhei para o teto, ponderei que raios de missão seria essa. Por acaso era num balão? — Não, idiota! Em cima, quero dizer que é nos Estados Unidos da América. — ele bateu a mão na testa, exaurido. Quem deveria estar irritado era eu, oras! — Vamos, eu não tenho o dia todo! Os demais classes alfa também não. Todos eles já estão te esperando.

————||————

Não havíamos voltado a Petrópolis desde o atentado. O Congresso das Comunas fora abolido sem expectativa que uma nova data fosse marcada e, de repente, ninguém mais se lembrava que um dia existiu um Theatro Imperial em Petrópolis. Esse é um daqueles mistérios em que se é melhor deixar os motivos por isso mesmo e não ficar procurando explicações, sabe-se lá em que buraco eu me enfiaria se isto fizesse.

E cá estávamos novamente, sujando as galochas nas calçadas de barro e respirando o ar empoeirado da cidade imperial. Dom Sélquis seguia a nossa frente. Quem me acompanhava era o professor Tobias. Ao que parece, essa reunião com o Conselho de Cartago não seria na nossa comuna lá no Rio de Janeiro. “Será na nossa central” — ele havia dito. “Cartago, assim como todas as outras Comunas, possuem Polos de atividades espalhados por todo o país. No total são quatro. Só que, diferente dos polos, é na central que as coisas realmente acontecem.” E é para lá que estávamos indo.  

Chegamos a um palacete rosa sofisticado na esquina da avenida principal da cidade. Uma estrutura alta, glamurosa, de invejar os vizinhos. Uma escadaria ampla nos recebia para duas portas de carvalho escuro. A recepção jazia virada bem em direção da esquina mesmo. Havia uma abóboda rosada sobre a entrada, esta, era carregada por colunas romanas em ambos os lados. Vi dois andares de janelas, todas emolduradas a tinta creme, na qual, logo bateu a vontade de comer bolo. Essas eram as cores que se via na fachada, rosa e creme, uma combinação saborosa. Não era tão comum ver um prédio com esses tons, mas parecia agradável e aconchegante.  

Subimos as escadas, senti um vento cavernoso vindo lá de dentro. As portas foram abertas. Nos eram entregues pisos de tacos de madeira, paredes vestidas em papéis de paredes enfeitados com flores beges e amarelas e lustres gigantescos e adornados com todo tipo de desenho em vidro. Vi quadros grandes e pequenos, emoldurados em madeira escura, de pessoas desconhecidas a mim, homens e mulheres. Vi vasos, MUITOS VASOS e relógios espalhados em volta. Entramos numa sala ampla. Três poltronas, uma mesa ao centro com livros e um tapete persa. Por ali se via mais outras salas a direita e a esquerda, só que as portas estavam fechadas para a tristeza da minha curiosidade. Seguimos reto. O senhor Dom Sélquis não se conteve em abrir duas portas gigantescas de madeira, que pareciam levar para algum lugar importante. Entramos no que aparentava ser uma biblioteca. Havia um caminho que era marcado por um tapete vermelho e, a nossa volta, fileiras e fileiras de estantes repletas de livros. Me senti tentado a invadir uma dessas estantes mas o senhor Dom me encarou de canto, desencorajando-me completamente. Ao fim, subimos duas escadarias brancas curvadas que davam meia volta na sala. Finalmente, paramos de frente a uma porta de madeira escura, com dragões esculpidos do seu contorno ao centro. Passei a mão pelos desenhos, gostei da sensação que deixou nos dedos, da aspereza, do cheiro.

Dom Sélquis abriu a porta e um raio de luz me cegou imediatamente. Escondi os olhos com o braço. Caminhei dois passos e enfim pude ver a grandiosidade do lugar onde ousei colocar os pés. Os Olhos do Dragão, costumam chamar. Era o coração e cérebro da Comuna de Cartago, onde as coisas aconteciam, onde as decisões eram tomadas e onde a história era escrita. Uma sala larga, talvez não fosse a mais alta, mas certamente era a mais larga de todas. Clara, pois haviam uma dúzia de janelas nos quatro cantos e lustres que faziam fila perfeitamente em três verticais. Aquela claridade era acalentadora, como esquecer? Um sol aconchegante, nostálgico de se lembrar. Era acolhedor as dezenas de vasos espalhados aos cantos, as dezenas de mesinhas com livros e retratos, e o barulho monótono dos relógios de chão. Meus olhos trouxeram-me uma vibração pacífica, senti profundamente meu corpo e o coração bater com serenidade dentro dele. Só que então, meu rosto encontrou com uma mesa bem ali ao centro, mesa esta em formato de arco, que levou minha paz embora ao ver quem me aguardava por lá. Os classes alfa, os Dragões Lendários de Cartago.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top