Vinte

Comigo, carregava mais de mil motivos para ficar atônito, principalmente depois de tudo com o que meu único olho encontrou. Mas o que vi não era tão complicado. O delta estava desenhado na luva, ela brilhava em amarelo e, algum tipo de particularidade me ocorreu; em outras palavras, simplesmente meu medo se manifestou e meu poder apareceu. De frente a janela da taberna suspirei, talvez estremeci, então engoli em seco o nervosismo. Sim, o que eu tanto ansiava finalmente aconteceu, por mais estranho e assustador que tenha se sucedido. Por fim, virei o rosto e encontrei o professor Tobias mais uma vez. Ele parecia já ter entendido a situação toda melhor do que eu. Pensei em perguntar para ele o significado de suas palavras, mas não foi preciso, já que vi seus lábios se mexerem antes mesmo de qualquer coisa.

 — A maldição dos olhos dourados. — ele me encarou com seriedade. Minha íris ainda brilhava neste mesmo tom. Brilhante, ofuscante, brilhava em amarelo. — O que você viu, Franz?

— Vi o barbarian que lutamos. — pausei, organizei os fatos — Uma mula com a cabeça flamejante, de fato. A vencemos. O senhor disse que poderiam ter mais desses barbarians, então consumiu as memórias da mula para que os encontrássemos. Antes de seguirmos adiante, dois adolescentes, provavelmente da idade de Nubia, apareceram. Pelos braceletes deles, o senhor concluiu serem da Comuna de Alexandria. — então a visão do pescoço de Haaka sendo contorcido me veio a mente, mas não prossegui com a história.

 — Impressionante. — ele não piscava uma única vez — De fato, parece decisões que eu tomaria. Eu também nunca te contei sobre a Comuna de Alexandria. Você possui mesmo a maldição dos olhos dourados!

 — Espera um minuto! — Áquila se pôs a nossa frente, tinha um rosto impaciente — Não seja tão egoísta professor, você sabe que eu não tô entendendo nada! Acabou de acontecer um negócio bizarro aqui. Que raios de maldição é essa?

 — Por favor, professor — dessa vez eu tomei a palavra —, também gostaria de entender. Além disso, o senhor mencionou algo sobre eu ter medo do futuro. Consegue explicar melhor?

O professor Tobias estalou as juntas das mãos, levantou as sobrancelhas e concordou com a cabeça.

 — Antes de mais nada, preciso contar que tudo o que eu sei, vi no Livro dos Terrores. É um livro milenar, guardado pelos Rhodes há gerações. No caso, o que eu li foi só uma cópia, que não tem todas as informações completas. Mas, mesmo nessa cópia, você encontra detalhes da maioria dos medos que existem, que uma pessoa pode ter. — o professor nos contou detalhes sobre o livro e a documentação precisa que ele continha sobre todos os medos conhecidos na humanidade. Todos. O que incluía medo de aranhas, insetos, altura, lugares apertados, certos rostos, certos formatos, certas criaturas entre outros infindáveis. No final de contas, o livro deixava claro que todos os medos, independente do quão particulares fossem, podiam nos dar poder. — Lá, alguns medos são classificados como muito comuns, já outros, muito raros. — afirmou o professor.

 — E deixa eu adivinhar — Áquila o interrompeu — Pela sua cara aposto que o medo de Franz deve ser muito raro!

 — Não. — ele disse incisivamente — Não há informação alguma sobre o medo de Franz neste livro. Nem o quão raro ele é. Por algum motivo a página estava ilegível, quase como se estivesse censurada. — me senti estranhamente desconfortável. Assustado, talvez fosse o mais correto de se dizer — Na época em que estava lendo o livro, não procurei entender mais afundo o porquê disso, já que outras páginas estavam assim também e poderia ser só um erro de cópia. De todo modo, o que eu consegui ler foi somente isso que sei agora. “Os olhos de quem possui medo do futuro são amarelos e reluzentes como o ouro polido e, esses olhos, entregam a essa pessoa a visão do futuro.” Por algum motivo que eu não sei, é chamado de “a maldição dos olhos dourados.

 — Então o Franz pode ver o futuro? — Áquila virou o pescoço, me encarou de maneira afiada, com empolgação. Tobias assentiu com a cabeça.

— Você pode ver tudo o que vai acontecer? — escutei Haaka pela primeira vez. Senti um aperto no estômago — Então sabe onde esses barbarians estão escondidos? E sabe quem está causando isso?

 — Ou ou ou... — Áquila interrompeu — Espera um minuto! Você consegue ver futuros distantes? Como por exemplo, se um dia eu vou me casar ou como vou morrer?!

Fugi o rosto até Tobias, em busca de livramento. Ele soltou um riso baixinho.

 — Não faz nem uma hora que Franz acabou de manifestar o poder dele. Não acho que ele tenha a resposta para isso. — desta vez seu rosto sério se refez — Também imagino que ele nem mesmo saiba controlar esse poder. — assenti com a cabeça.

Meus olhos continuaram dourados no resto daquela noite, assim como a luva permaneceu com a inscrição delta cravada em seu centro, eximindo minha cabeça de inventar qualquer dúvida para tudo isso. Tivemos uma reunião estratégica ao fundo da taverna. Maquiavel há muito já dormira sobre o balcão. É claro que Tobias não permitiria que ele escutasse tudo o que dissemos, no máximo, eu apostaria que ele chegou a ver meus olhos mudarem de cor, mas do jeito que estava bêbado, duvido que sequer acreditasse no que sua própria visão entregou.

Desta vez não poupei detalhes sobre a luta contra o barbarian de fogo, os ataques que cada um utilizou e a forma particular com que foi derrotado. Logo, enfim cheguei a parte que interessava. As silhuetas sinistras que se desdobraram dos cantos soturnos das vielas.

 — Eles são perigosos. — ali em seu rosto, Tobias estava desprovido de qualquer serenidade, àquela que costumava carregar consigo. Agora, sentia preocupação prender-se em cada centímetro de seus lábios esticados — Quando se fala na Comuna de Alexandria, tudo o que vem à cabeça, são histórias intimidantes. Seria imprudência desafiá-los.

 — O que o senhor quer dizer com isso, professor? — perguntei, com olhos presos e o coração tremendo para a resposta.

 — Eles possuem um poder tão impressionante quanto o nosso. Só que, diferente de nós, a força que os move, é o desprezo. — nos entreolhamos. Áquila, parecia o mais incomodado. Ele que sempre teve um forte senso de justiça, já era de se esperar.

 — Não parece meio errado? — o ruivo questionou.

 — Não é — Tobias fugiu o rosto para o lado — Pensem por um minuto, se vocês pudessem expurgar do mundo aquilo que vocês mais desprezam, não acham que o mundo seria um lugar melhor? — sim, eu pensei. De fato, um mundo sem uma família gananciosa, sem juízes corruptos e amigos traiçoeiros certamente seria uma maravilha. O desprezo talvez pudesse ser até mais cativante que o medo.

 — Tá legal — Haaka intrometeu — E por que a Comuna de Alexandria seria uma ameaça? Eles não podem tipo, ser companheiros nossos? São uma comuna também, afinal. Os barbarians que são os verdadeiros inimigos. — inocente. Se ele soubesse...

— Alexandria guarda uma rivalidade grande contra outras comunas, principalmente contra Cartago. — Tobias pausou e refletiu por alguns segundos. Talvez ponderasse se deveria continuar aquela conversa — Diferente de nós, eles não são uma comuna cardinal, e a vida de uma comuna que não é oficial do governo, não é lá muito fácil, já que eles não costumam receber muitas requisições. — ele rondou os olhos pelo papel de parede descascado da taverna — Anos atrás, não havia muitas regulamentações entre as comunas, ou seja, não haviam muitas regras do que elas podiam ou não fazer. Assim, haviam disputas entre as próprias comunas para cumprir missões, até porque lembrando que quanto mais especial for uma missão, mais dinheiro está envolvido nela e mais prestígio também. Muitas pessoas morreram nessas disputas entre as comunas. Atentados, terrorismos, uma verdadeira guerra, uma guerra debaixo do tapete da sociedade que nunca fora divulgada. Hoje, há leis e regulamentações sobre missões.

 — Se existem leis sobre missões, porque Alexandria nos atacou? — perguntei.

 — O quê eu sei sobre Alexandria, é que eles não se importam em descumprir as leis, desde que não hajam testemunhas para provar seu crime. O que eu quero dizer é que, depois da sua visão, eles provavelmente pretendiam matar todos nós, Franz, para ocultar o crime deles. — vislumbrei a minha volta, vi todos estarrecidos e imagino que teriam ficado assim antes se eu não tivesse escondido que Alexandria realmente matou Haaka friamente na frente de todos não muito distante no futuro. Tobias, analista como sempre.

— Esses desgraçados estão nos subestimando? — Haaka berrou — Nós que vamos matá-los!

— O que me intriga, é tentar entender o motivo que trouxe a Comuna de Alexandria para uma missão júnior, classe delta, tão inferior como essa. O que eles tem a ganhar aqui? — Tobias coçou a nuca, pensou, depois riu sem humor — Tá na cara que essa missão não é nível Júnior coisa nenhuma.

O silêncio nos abraçou por longos segundos, perpetuando uma massa insana de tensão.

Até que ousei quebrá-la:

 — Acha que deveríamos voltar para o Rio?

 — Não — ele massageou o queixo — Não, já estamos aqui. Sabe-se lá o que está acontecendo aqui. Eu sou um classe beta, tenho a obrigação de descobrir a fundo isso tudo. Normalmente eu mandaria vocês embora e investigaria sozinho, mas, sem você, Franz, provavelmente nem saberíamos desse caso, então acho que não dá para contar muito comigo mesmo. Se importariam de me ajudar nisso? — ele não precisava nem perguntar, é claro que concordamos. Eu, pessoalmente, nem hesitei. Afinal de contas, já estive cara a cara com um dos barbarians mais casca grossa de todo o mundo, o que era um bando de adolescentes mimados de uma outra comuna comparado a isso?

 — E então — Áquila se levantou — Qual é o plano?

 Tobias esvaziou o peito, fechou os olhos e estalou a língua.

 — Por hora vamos apenas aguardar.

 — Mas e quanto ao barbarian? — Haaka perguntou.

— E Alexandria? — dessa vez fui eu. — Não seria um problema eles capturarem o barbarian primeiro?

Tobias virou o rosto a Haaka:

 — Bem, o barbarian não deve causar muitos problemas além dos que ele já costuma causar, as pessoas daqui já sabem lidar com ele. — por fim, pausou e me encarou — Há meses esse barbarian tem aparecido. Alexandria resolveu interferir justamente quando chegamos. É claro, existe uma chance pequena de ser só uma coincidência e de eles terem acabado de chegar também, mas quero acreditar que não.

 — Eles estariam investigando o barbarian? — questionei

— Talvez. Mas não tem como fazer especulações com base em especulações. Isso só nos atrapalharia. — Tobias se levantou — Enfim, por hoje não há muito o que possamos fazer. Mas se preparem que amanhã, ao despontar do sol, partiremos.

Preferimos por não voltar e nos hospedar na igreja. A taberna parecia um lugar bem mais aconchegante, por mais que isso não  ajudasse a manter nossos disfarces.

Eu não dormi naquela noite. Fiquei ali, de frente ao vidro da janela do quarto, vendo meu olho dourado cintilar junto as luzes alaranjadas das lamparinas. Vez ou outra o ronco de Haaka me distraía ou os buchichos que Áquila dava enquanto dormia me assustavam, então, me pegava imaginando até onde aquele poder poderia me levar. Encarei minha mão, vi a inscrição alfa e, próximo a ela, a mancha do sangue de Nestor.

“Aqui, bem aqui a inscrição Alfa será marcada, um dia!” — escutei sua voz no horizonte nebuloso da minha mente.

Cerrei a mão. Fechei o olho. Talvez pudesse tentar usar meu poder novamente. Agora que não fomos atrás do barbarian, certamente o futuro não deveria ser mais o mesmo. Fiz força, abri o olho.

Foi inútil. Ao menos parecia ter sido.

Tentei novamente. Abri e cerrei o punho. Nada. Mas espera! Como poderia saber se o que estava vendo naquele instante era meu presente de fato, ou o futuro na minha cabeça? Da outra vez parecia tão real que nem desconfiei que estivesse usando meu poder.

O que eu poderia fazer para ter certeza de que estava usando ou não o meu poder?

Sim, eu me lembrei no mesmo instante do professor Tobias e da Invocação de Outono. Nos meus últimos dias de treinamento, quando eu não estava tendo resultado algum com meu poder, como último recurso, o professor tentou me ensinar a Invocação de Outono para ver se eu conseguia manifestar alguma coisa. Aquele gesto de formato de borboleta com as mãos, unindo os polegares. No meu caso, eu teria que abaixar quase todos os dedos, deixando apenas os indicadores levantados, parecendo duas pistolas. A Invocação de Outono Delta. Sim, agora, sendo classe delta, eu poderia usá-la e poderia ter um vislumbre com mais afinco do meu poder. Assim eu fiz, abracei os polegares entre si e levantei os indicadores.

 — Invocação de Ou...

 — Melhor não fazer isso. — olhei para trás. Vi o professor.

————||————

O professor Tobias detestava ficar acordado até tarde. Ele era uma criança quando se tratava de dormir cedo. Algo como depois das oito era inadmissível para ele, a não ser que estivesse no meio de uma missão ou, como naquela ocasião, temeroso com alguma coisa.

 — Você podia ter matado todos nós agora pouco, sabia? — o professor tomou um gole de água com açúcar e eu de Rum. Ele não costumava beber álcool. Ele me encarava e encarava o meu copo, tinha a impaciência de um velho.

 — Não foi o senhor quem me ensinou a usar a Invocação de Outono? — lhe soltei um olhar insolente e ele um cheio de desaprovação. O professor balançou a cabeça e tomou de mim o copo com Rum.

 — Que tipo de criança fica tomando álcool? — balançou a cabeça de novo, estalou a língua e prosseguiu: — Pelo visto, você se esqueceu do que eu disse no dia em que te ensinei a usar a Invocação de Outono. Eu disse que não era para você usar irresponsavelmente.

— Não, o senhor me disse que não era para eu usar toda hora. O que é bem diferente.

 — Invocações só devem ser usadas em batalhas e por agentes experientes. Não para brincadeira.

 — Então é isso que acha que eu estava fazendo?

 — Tudo bem. — ele suspirou — Tudo bem, tudo bem. Me desculpe por não ter sido tão claro antes. Só tome cuidado a partir de agora. Como eu disse antes e repito, uma invocação de poder, pode literalmente te matar.

O olhei de canto emburrado e respondi baixinho:

 — Me desculpe pela imprudência. — pausei e por fim, me pus a perguntar algo que me incomodava desde que desci — Mas o senhor me chamou aqui em baixo só para me dar esse sermão? Não acho que o senhor se incomodaria de fazer isso lá em cima, mesmo que acordasse aqueles dois preguiçosos.

 — É, você tem razão. — ele desceu toda a água com açúcar de uma vez e limpou a boca com o braço. — Eu encontrei o esconderijo do barbarian de cabeça de fogo — senti meu peito bater mais lentamente. Minha reação ficou clara para o professor. — Enquanto vocês estavam lá em cima, eu espalhei minhas trevas pelas ruas da cidade a procura de cada relevo, cada pegada, que aquele monstro possa ter deixado. Eu encontrei uma trilha até a igreja abandonada ao sul da cidade. Depois desse esforço todo, agora eu tô completamente esgotado, quase desmaiando aqui, já que nunca estendi tanto minhas trevas, nem sabia se daria certo mesmo, mas fico feliz que tenha dado.

— Por isso que nós vamos partir de manhã?

 — Exatamente. Mas queria antes confirmar com você uma coisa. — pude ver no rosto dele. Eu nem precisava ver o futuro para saber o que era.

 — É sobre Alexandria, né?

 — Você viu mais alguma coisa, Franz? Algo que, sentiu receio em contar na frente dos outros? — O professor Tobias era o mestre em analisar situações. Já era de se esperar que a história que eu contei tenha deixado lacunas até demais na sua lógica. — Algum de nós morreu? Fui eu? — fiquei em silêncio, uma linha maçante de aflição — Me desculpe por ser direto assim. Sabe por que eu acho isso? A primeira vez que seu poder deu sinais de aparecer, quando você sentiu uma dor aguda em seu braço antes de ser atingido, foi o dia do atentado que levou Nestor. Foi ali também que você chorou antes mesmo de ficar triste. Sabendo disso, não é razoável crer que seu poder manifestou do nada.

 — Haaka. — estremeci — Foi Haaka.

— Como aconteceu?

— Foi aquela garota.

— A com o guarda-chuva, correto? — concordei com a cabeça. Eu já havia contado a Tobias os menores detalhes sobre eles. Sabia que seria estúpido esconder isso dele. — Entendi... — ele pausou e pareceu refletir — Então, resumindo, nossos inimigos são dois adolescentes com a idade de mais ou menos dezessete anos? Cada um com um poder único, uma pode controlar as pessoas de longe...

 — Mas eu não sei o poder do outro.

 — O outro provavelmente consegue anular os nossos poderes.

 — O quê? Como sabe professor?

 — Por mais atemorizante que a Comuna de Alexandria seja, acho pouco provável que eles conseguissem matar qualquer um de meus companheiros, comigo tão perto. — Tobias voltou a pensar. Finalmente, prosseguiu: — A não ser que algum de seus membros tenham uma habilidade surpreendente devidamente treinada. Ou seja, é esse garoto que temos que nos preocupar. Se é que ele é um garoto.

— Vamos enfrentar eles inevitavelmente, né? — O professor assentiu.

— Mas não precisa temer, Franz. Se um dia você quiser chegar na classe Alfa, esse é o tipo de crise que você precisará lidar com calma. — Para quem estava falando de calma, subitamente, vi os lábios do professor Tobias se esticarem e tremerem de tensão. Vi seu pescoço engolir saliva. Vi seus olhos se estreitarem. — De repente, — sua voz estava embargada — De repente senti a presença de um poder... arrebatador.

Fui eu que comecei a tremer desta vez. Cerrei meus dentes. Certamente sabia quem era.

 — Salieri?

 O vi balançar a cabeça, negando.

 — Não. Eu conheço essa presença. É de um classe alfa lá da comuna. Essa missão, pelo visto está muito mais fora do nosso alcance do que eu imaginava. — O professor escondeu o rosto com a mão — Foi um erro. No que diabos a gente estava se metendo?

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