Trinta e Dois
Tivemos um ou talvez dois dias para explorarmos o que podíamos da cidade. O hotel em Nova York, por si só, já era tão esplêndido que a própria vista conseguia se tornar um entretenimento. Dividimos todos o mesmo quarto e, para falar a verdade, acabou sendo mais agradável do que minha imaginação chegou a cogitar. Pelas manhãs, caminhávamos pelas ruas rindo do jeito enrolado como as pessoas falavam, como crianças estúpidas. Eu até entendia o que eles diziam, desde a infância criei um repertório em inglês com os livros que meu pai trazia de suas viagens e já pratiquei bastante a pronúncia – embora falando eu parecesse igual alguém que virou três garrafas de rum. Só que ficar ali, vendo Haaka imitar perfeitamente mal aqueles homens bigodudos falando, era impagável, tanto que arrancava risadas até do certinho do professor.
Pelas tardes visitávamos as ilhas da cidade, alguns prédios turísticos e comércios. Aproveitei a deixa para comprar alguns livros, Áquila levou dois bonecos de cerâmica que vestiam algum uniforme de guerra, Piatã comprou um cesto de frutinhas azuis azedas que nunca tinha provado, já Haaka experimentou um tal de “Hot Dog” que um alemão barulhento vendia as margens da Baía de Newak. Quando lhe contei o que o nome significava, podia jurar que vi seu rosto inchar de enjoo. – Foi difícil convencê-lo de que não era cachorro de verdade.
Elizabeth seguiu muda o passeio todo, se é que eu já havia escutado sua voz antes. Ela não tinha nenhum problema com a voz ou na fala, Piatã me garantiu isso certa vez, apenas que, conversar não era muito do seu feito. Dentre todos, possivelmente a relação mais fria fosse entre nós dois. É claro, talvez eu pudesse incluir Apolo nisso? Mas acho que não posso dizer que minha relação com Apolo era fria, só diferente mesmo. De todo modo, se já não éramos muito próximos antes, aquela viagem pareceu nos afastar ainda mais. Ela parecia ter receio de andar pelas ruas, olhava para os lados como uma fugitiva e hesitava quando eu me punha ao seu lado. Se era para se comportar assim, o que a trouxe aqui?
— Ela tem os motivos dela — Piatã disse, ao passo que nos trocávamos para dormir — Não insista em querer saber. — seu tom foi mais duro do que o normal.
— Sinto muito. — encarei seus olhos negros — Vocês se conhecem há muito tempo, né? — e então, estes mesmos olhos se apertaram. Agora ele parecia aflito.
— Ela já salvou a minha vida. — respondeu. — Há coisas que eu sei sobre ela e há coisas que ela sabe sobre mim que ninguém mais sabe.
A noite foi fresca e silenciosa. Acordei com cantos diferentes de pássaros. Ainda possuía um pouco dessa situação tensa reservada em minha mente e isso piorou quando encontrei com Elizabeth no desjejum. Ela tinha o costume de comer o dobro de pães que comíamos e tomar o triplo de café, porém, naquela manhã o pão não chegou em sua boca e seus dedos nem mesmo encostaram na xícara. Ela permaneceu na mesa conosco em respeito, por fim, retirou-se na primeira oportunidade formal.
————||————
Tirei o resto daquela manhã para escrever. Como ninguém tinha vontade de sair, não havia nada melhor para fazer. Até que o professor Tobias bateu na porta e entregou-me um convite incomum. Antes de o ler o professor me adiantou que o convite se referia a um passeio na cidade junto a companhia de um conhecido senhor agradável. Me questionei quem seria esse e da onde vinha tamanha confiança para ter tanta certeza que sua companhia seria agradável. Ou ele talvez tivesse um humor bem questionável. No convite não mencionava nome. De todo modo, me vesti adequadamente, coloquei a melhor cartola e fui ao encontro desse “conhecido senhor agradável” na porta do hotel. Então o imperador chegou.
Não foi tão fácil reconhecer o imperador. Talvez porque ele estivesse usando roupas tão comuns que até se parecesse com um idoso qualquer, ou talvez porque ele, ali em pessoa, estava me esperando. Reis não esperam, certo? Os outros que esperam por eles.
Fora isso...
O que raios o imperador estava fazendo ali?!
— Não sou o imperador nesta viagem. — ele me repreendeu. Já havíamos caminhado bastante e foi difícil trocar palavras até então. Mas bastou eu chamá-lo por “Vossa Majestade” que seu rosto repeliu-se da luz do sol e ele parecia se ver pronto no que dizer — Enquanto estivermos aqui, eu sou Pedro, Pedro de Alcântara. — pedi desculpas e lhe perguntei o motivo disso. — Essa não é uma visita de estado. — ele voltou os olhos para o caminho que tomávamos — Estou aqui como turista.
Eu sei que talvez não fosse da minha conta e, talvez ali nem fosse o momento para perguntar isso e provavelmente o professor Tobias me trucidaria se soubesse que perguntei, mas não pude evitar questioná-lo:
— Perdão senhor, mas o que trouxe o senhor a esta viagem? Se não é uma visita de estado, por que está arriscando tanto a vida de nossos agentes? Poderia ao menos ter aceitado nossos classes alfa para lhe guarnecerem. — vi suas sobrancelhas se levantarem por um instante. Depois ele sorriu apaziguadoramente. Por que raios ele estava tão calmo? Até a pessoa mais tonta do mundo perceberia os espinhos nas minhas palavras.
— Eu sei que foi arriscado. — ele parou de andar e fiz o mesmo. Agora seu rosto ficou sério. Será que o que eu disse fez este efeito? Será que fui rude demais? Que o professor Tobias não descobrisse! — Você já ouviu falar na Grande Crise de 1865, meu jovem?
Refleti e a resposta veio quase que imediatamente:
— Sim, esse nome me é familiar. Mas não sei ao certo o que significa.
Ele olhou para cima e vi, sutilmente, seus lábios tremerem.
— Foi a época mais terrível da história da humanidade. — ele pausou e pareceu refletir em algo — E pensar que quase todo mundo não faz ideia do que aconteceu.
— Perdão senhor, do que estamos falando?
— De uma guerra... — ele soltou um suspiro cheio de aflição — Perdão, eu deveríamos falar sobre isto aqui. De qualquer forma, foi um ano terrível para todos nós e dizem que algo parecido pode voltar a acontecer e, se isso pode voltar acontecer, não podemos, em hipótese alguma, tirar nossos classes alfa do país. Eles são a última barreira que nos resta.
— Eu entendo senhor. Permita-me ponderar uma última coisa, serei breve. — ele acenou com a cabeça — Pensei que todos os classe alfa já fizessem missões regulares para fora do país.
— Não mais. Já faz dois anos que nenhum classe alfa passou um único pé para o outro lado da fronteira. Mas mantemos o sigilo das missões para a própria segurança deles e, para confundir nossos inimigos. — ele suspirou mais uma vez — Sei que pode parecer desesperado dizer isso, mas se perdêssemos um classe alfa sequer, estaríamos condenados. — depois ele olhou para mim e viu meu rosto estupefato. Ele sorriu — Perdão, não queria deixá-lo assim.
— Não, obrigado por confiar em mim e me contar, senhor.
— Não precisa agradecer por isso. Você já provou que é digno de confiança mais de uma vez.
— Se me permitir, posso fazer só mais uma pergunta? — sei que estava exagerando, mas não importava, ele consentiu de todo modo — Não seria mais fácil não ter vindo? Assim o senhor pouparia todas as nossas forças. — passado alguns segundos, me assustei com minhas palavras — Perdão se pareci insolente. Afinal, quem sou eu para dizer o que o senhor deve ou não fazer?
— Não se preocupe com isso. Mas para responder a sua pergunta, você terá que ver a exposição internacional que deve ocorrer em breve. Por mais que os barbarians sejam um flagelo para nós, não podemos atrasar o progresso de nosso povo diante da humanidade. E eu, como líder, tenho o dever de fazer essa ponte. — “Só um homem forte carrega um espírito de batalha forte.” O professor Tobias disse-me isso certa vez. É, talvez o imperador não fosse o velho tolo que pensei que era.
Seguimos o passeio até a outra extremidade da ilha de Manhattan. Entramos numa biblioteca de esquina. Seu repertório era maior do que a fachada parecia mostrar.
— Pelo visto gosta de livros também. — o imperador sorriu ao ver-me deslizar os dedos entre os principais volumes de Charles Fourier.
Concordei com a cabeça.
— É incrível que aqui tenha tantas traduções que jamais encontraria lá no Rio.
— Teoria interessante, o fim da dicotomia entre trabalho e prazer. Embora pessoalmente, creio-a ser errônea. — ele viu meu rosto ficar confuso. Gargalhou rudemente. Acho que entendeu o porquê de eu estar assim. — Sei o que esta pensando, não é um tipo de leitura que um monarca deveria fazer.
— Perdão senhor, mas não acho que um monarca faça qualquer tipo de leitura.
— Não, eles não costumam fazer. — ele pareceu refletir, ao passo que viajava os olhos pelos livros nas prateleiras — Mas eu encontrei na leitura uma fuga desse mundo tão cheio de amarguras. Me faz pensar e, quando eu penso, minha mente não fica vazia. Você sabe o que dizem sobre mentes vazias, não sabe garoto?
O imperador me presenteou com os volumes mais recentes traduzidos para o inglês. Depois seguimos a caminhada pela cidade. Um homem nos parou na rua acreditando que éramos avô e neto e por isso nos ofereceu desconto para uma fotografia. Mais tarde o imperador nos comprou dois Hot Dogs, eu acabei manchando a gravata de molho e, o imperador, sua longa barba branca.
O sol já deitava-se no horizonte e tomamos o rumo de volta ao hotel.
— Agradeço o convite, senhor. Foi um dia esplêndido.
— Digo o mesmo, meu rapaz. — ele já parecia cansado. Não dava para julgar, andamos como touros.
— Senhor, se me permitir... — ele acenou com a cabeça — O que levou o senhor a me convidar especificamente? Há tantos outros agentes incríveis na comuna. Eu sou só um garoto que ninguém conhece.
Ele apoiou a mão esquerda em meu ombro.
— Quando nos encontramos lá no navio, não prometi que teríamos um momento para conversar melhor? Não se diminua, você é muito maior do que pensa.
— O senhor diz isso, mas eu só consegui fazer o que fiz lá no theatro, por acidente. Eu na verdade mal consigo controlar meus poderes.
— Isso é só um ponto, um ponto que é possível superar e que não diminui seu valor. Mas não é só pelo o que você fez no theatro que eu digo isso, rapaz. — levantei o rosto, confuso — Afinal, eu sei quem você é, Franz Silvertoch — quando ele mencionou meu sobrenome, minha barriga parecia ter congelado. — Não achou que poderia esconder de mim, achou? — ele gargalhou desengonçadamente — Você é igualzinho o seu pai mesmo, aquele tolo do Alexander.
— Como que...
— Alexander foi um amigo imensamente querido por mim, jamais esqueceria do nome do filho dele que conheci quando era só um recém nascido. Não vou contar como descobri, mas digo que não foi difícil. — então seu rosto se fechou. — Eu também sei o que aconteceu com suas terras. Bastou eu enviar um de meus agentes para fazer uma breve investigação que descobri o porquê de você não querer contar seu sobrenome. — percorreu-nos ali um silêncio maçante, agora nós dois estávamos tensos — Sei o que está pensando, meu jovem, e já adianto minhas desculpas, infelizmente não tenho poder para devolver suas terras. — Não fiquei tão decepcionado quanto esperava. Desde que conversei com o senhor Dom Sélquis era só um palpite, mas, pelo visto agora era certeza, o imperador me confirmou em seguida: — No lugar de onde viemos existem pessoas mais poderosas do que eu. Perigosas. Eles que controlam como as coisas funcionam e, me derrubar a coroa não seria uma tarefa muito difícil para eles.
— Os latifundiários? — ele concordou com a cabeça.
— Fazem parte da elite. Todos ali se conhecem, no âmago se odeiam, mas trabalham juntos para destruir quem vier a se tornar uma pedra no caminho deles. Se seu nome ousar incomodá-los, os barbarians não serão a única coisa que ameaçará sua vida e a vida de seus amigos.
— E o que eu devo fazer, senhor? Desistir?
— Este seria o último conselho que lhe daria, meu rapaz. Só há uma forma de vencer o poder, vir a se tornar ainda mais poderoso. Eu descobri que está criando uma gazeta. Quis lhe trazer até esta missão para justamente lhe ajudar com isso. Teremos um evento internacional em breve, mas não há uma única comitiva de imprensa do nosso país aqui. Quando chegarmos em casa, posso promover seu jornal se você criar um folhetim sobre a exposição. É claro, vai depender também se o folhetim for bem escrito ou não. — meu olho brilhou. Lembrei o que o classe alfa Dom Selquis disse sobre o bom homem de negócios não deixar passar uma única oportunidade sequer.
— Eu aceito, senhor. Também lhe garanto que farei o melhor folhetim que o senhor já leu.
— Se um dia sua gazeta lhe trouxer ganhos, compre terras e um título de nobreza. Terei o maior prazer em lhe conceder. Com isso, você terá o arsenal necessário para enfrentar aquelas onças selvagens.
— Eu agradeço os conselhos, senhor.
Antes de entrarmos, ele se virou uma última vez para mim.
— A propósito rapaz, recebi um convite de um dos patrocinadores da exposição para fazer uma visita e conhecer os preparativos que estão sendo feitos para o grande dia. Eu confirmei presença, mas surgiu um imprevisto e não poderei ir. Seria uma desfeita enorme remarcar, por isso, gostaria que fosse no meu lugar, se possível.
— O senhor está falando sério? Seria uma imensa honra!
— Que ótimo! Sua companheira de equipe, Elizabeth, também concordou em ir. Eu pedi para que fosse, já que o pai dela é o patrocinador do evento que lhe falei.
— O pai dela?
— Não lhe contaram? O pai dela é o famoso magnata da indústria americana de petróleo, o senhor Rutherfeller. — o pai dela era rico? Isso sim foi uma surpresa. — Também pedi para que lhe fizesse companhia um rapaz da sua idade. Ele é da Comuna de Alexandria. Se não me engano, chama-se Martin, fala um inglês perfeitamente bem e será um ótimo representante. — ótimo, o passeio não seria mais agradável. — Você pode começar o esboço de seu folhetim desde já, o que acha?
— Farei isso, senhor. Agradeço a oportunidade.
— Pegarei um trem e partirei com os outros para São Francisco amanhã pela manhã. Devemos nos encontrar novamente na Pensilvânia em 10 de maio para a cerimônia de abertura da exposição. Um de meus empregados ficará com você para cuidar da hospedagem e servir como representante legal. Tudo bem para você, Franz? Ficará longe de seus amigos por alguns dias.
— Eu admito que não me dou muito bem sem eles. Mas, como qualquer outra missão, darei todo meu empenho em cumpri-la. Senhor, será um prazer representá-lo.
E, desta forma se sucedeu.
Acordei cedo na manhã seguinte, o sol mal havia despontado. Ainda sentia sono mas duvido que voltaria a dormir. Para conter a ansiedade, tomei minhas roupas e me aprontei. Seria só por alguns dias, mas eu odiava esse tipo de despedidas. Não ficou mais fácil nesses quase quatro meses que realizei missões. É claro, já tive que ir nos cantos mais remotos do país e tive que suportar me despedir do professor Tobias e de meus colegas todas essas vezes, mas toda despedida seguia sempre de uma insegurança de nunca mais nos encontrarmos. Ali talvez fosse mais duro para Apolo, ele que sempre esteve comigo nas missões. Ele havia se tornado “minha espada”, como ele mesmo costumava dizer, e se orgulhava profundamente disso. Soube que ele até tentou pedir ao imperador para que pudesse me acompanhar, mas seu desejo foi indeferido. Senti pena dele. Por isso, quando todos nós passamos a nos reunir na porta do hotel, entreguei-lhe a moeda que o professor Tobias havia me dado.
— Confio a você — eu disse — Quero que me devolva quando nos encontrarmos. — ele a tomou — Você é minha espada, e, minha espada deve guarnecer o imperador. — encostei a mão em seu peito — Com seu espírito impertérrito essa espada cortará montanhas se necessário, para cumprir seu dever.
— Falou bonito — Martin surgiu logo atrás de mim — Só espero que, se um dia nossa situação vier a se complicar, você seja tão poderoso quanto tagarela.
— E eu que você seja tão impressionante quanto fuxiqueiro. — seu rosto se apertou — A propósito, que tipo de homem escuta a conversa de outrem na surdina? — ele levantou suas sobrancelhas louras em surpresa, depois virou o rosto e saiu dali.
Em seguida, foi a vez de Áquila brotar de repente ao meu lado.
— Esse cara... — ele o encarava com afinco — Eu sinto algo estranho nele.
— Como assim?
— Não sei explicar. É só que, parece que ele tá escondendo algum segredo. — fazia tempo que eu não escutava um dos julgamentos de Áquila. Ele dizia que seu poder de analisar as pessoas estava ficando enferrujado. De qualquer forma, quando se manifestava, as chances de falhar eram quase nulas. Martin era de Alexandria e, se escondia alguma coisa capaz de fazer Áquila ficar com um pé atrás, deveria ter toda a minha desconfiança. Depois, Áquila estendeu a mão e prosseguiu: — Boa sorte lá na pocilga, Franz!
Gargalhei e lhe correspondi:
— É Pensilvânia. E obrigado Áquila.
Quando fui até Haaka para me despedir ele estava com o braço estendido e o punho cerrado.
— O que é isso? — perguntei.
— É uma nova forma de cumprimento. Se chama soquinho. Você só tem que socar meu punho assim ó. — e ele fez a demonstração — Viu só? — eu lhe correspondi, mesmo com um tanto de constrangimento. Ele sorriu e disse para eu matar todos os barbarians que encontrasse pelo caminho.
— Não seja estúpido — Já previa que Áquila iria o repreender — Ele tá indo para um evento, não vai ter barbarians por lá. — e assim eles seguiram com mais uma briga igual duas crianças, um chamando o outro de curupira maldito e o outro chamando-o de porco imbecil.
Talvez, a parte mais difícil dessas quatro semanas longe, seria não poder rir destes dois boçais.
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