Trinta e Cinco
“Se prepare para um ataque, garoto. Um ataque dos grandes” — foi o que o Duende me disse. Sua voz não deixou minha cabeça por um instante que fosse. Desde esse dia, não nos encontramos mais. Admito que fiquei um pouco decepcionado, já que esperava contar um pouco mais com seu conhecimento sobre Salieri, mas não posso parecer ingrato também, todas as informações que ele havia me dado até ali já eram mais do que o suficientes.
Era uma noite sem lua, sem estrelas e assustadoramente silenciosa. Como fazia nessas últimas semanas, treinava meu poder, mesmo que sozinho. Não foram as semanas mais agradáveis do mundo. Não consegui ficar um dia sequer sem pensar em Salieri. No dia seguinte seria a inauguração da exposição, mas isso não fazia muita diferença. Lá estava Salieri, para me atormentar a cabeça. Nesses últimos meses eu podia ouvir com clareza Nestor, Ária, Apolo. Todas as pessoas que foram açoitadas pelas ações dessa monstruosidade perversa, cada cicatriz no meu interior, cada alma que deixou esse mundo, gritar para que eu fizesse alguma coisa. E Salieri seguia como um opositor que tinha prazer em destruir o meu caminho. Igual meu primo maldito. Mas, diferente dele, Salieri cruzou uma linha muito maior, um limite que Anthony, em toda a sua perversidade, nunca passou perto de cruzar. A fronteira entre a vida e a morte. Salieri definiu quem merecia morrer a partir de suas próprias convicções e assim, matou todas aquelas pessoas. E, agora, para abalar a todos nós, para abalar todas as comunas, as pessoas comuns de meu país e toda nossa esperança no futuro, ele pretendia matar o imperador. E, essa era a preocupação que corroía meu peito.
Eu devo sim ter soado um pouco grosseiro com o senhor Rutherfeller e com meus companheiros de viagem — tirando Martin Já que não fazia muita questão de agradá-lo mesmo —, porque eu passava a maior parte do tempo do lado de fora, no jardim, treinando e trocava com eles uma ou duas palavras no dia inteiro. Mas eu tinha consciência no fundo, da prioridade em continuar a fortalecer meu poder. Não, eu ainda não acredito em destino, mas sabia que minha vida e a vida daquele demônio, de alguma forma que não sei explicar, estavam entrelaçadas. Isso ficava claro a cada vez que nossos caminhos convergiam. Desde que nos encontramos a primeira vez na floresta, até minha visão no navio. E todas as vezes que ajudei a frustrar suas ações. Nós iríamos lutar e, isso era um fato. Eu estava com medo.
Então, para partir essa amargura azeda que me abraçava sem ternura alguma debaixo daquele céu escuro, alguém apareceu. Primeiro, sua mão gentil se recostou em meu ombro, uma mão familiar, quente e reconfortante.
— Professor Tobias! O senhor... — ele estava lá, alto, sorridente e imponente.
— Vejo que continua se esforçando. Como sempre, não é Franz?
— Bem, eu faço o meu melhor. Ainda que meu poder não esteja lá evoluindo muito. Mas de vez em quando eu já consigo visualizar o futuro com mais clareza.
— Isso é um progresso em tanto!
— Eu esperava encontrá-lo amanhã, professor.
— Todos os outros estão no hotel, mas resolvi passar aqui para te ver antes da exposição. Ver como você tá. Mas pelo visto já posso voltar. — ele sorriu orgulhoso.
— E quanto a segurança do imperador? Salieri não voltou a atacar?
— Estranhamente não. — seu rosto ficou sério de repente.
— Mas Salieri ainda deve nos atacar, professor. Até o final dessa viagem, ele deve nos atacar.
— Como tem tanta certeza disso?
— Alguém importante me disse, alguém que conhece de perto os barbarians e o próprio Salieri.
— Bem, neste caso — ele olhou para cima, acho que procurava alguma estrela para devanear seus pensamentos, mas não encontrou nenhuma. —, a última chance dele é durante a exposição internacional.
— Como assim, por quê?
— O imperador decidiu que voltará mais cedo para casa.
— Se não me engano, ele pretendia ficar até Julho, não é? Acho que Salieri não estava esperando por isso... Se não, ele não prorrogaria tanto assim seu ataque.
— Devemos manter a diligência, Franz. Principalmente amanhã. Eu fico mais aliviado que você tenha evoluído seu poder um pouco. Mas ainda não é o suficiente. Se você perceber algo suspeito ou se Salieri chegar a aparecer para você, não ouse lutar contra ele sozinho. Sua prioridade será relatar aos demais. Acredito que nem mesmo eu teria capacidade de derrotar Salieri sozinho.
— Professor... Existe algo que ainda me atormenta a cabeça. Além de recuperar minhas terras, acho que jamais encontraria paz nessa vida se também não vingasse todas as pessoas que Salieri matou, todos meus companheiros de batalha.
— Franz, você...
— Eu vou obedecê-lo, professor. Irei relatar aos outros se encontrar com Salieri. Mas não me peça para não participar da luta contra ele.
Ele não me respondeu imediatamente. Primeiro, esperou que os ventos chicoteantes daquela noite passassem por nós. Depois ele suspirou profundamente e concordou com a cabeça.
— Eu nunca te pedi ou te pediria isso. — ele olhou para o céu. Um forte relâmpago reluziu e um trovão estourou em seguida. — Ainda tem medo? — não o respondi, mas ele viu pela minha expressão que sim. — Prepare sua adaga. Vamos treinar uma última vez nesse país. Tem ainda uma coisa que não te ensinei.
————||————
Por volta das nove da manhã, saímos da mansão. Foi uma despedida, já que como o imperador pretendia zarpar para casa no dia seguinte, passaríamos a última noite junto com nossos companheiros no hotel. Agradeci ao senhor Rutherfeller a hospitalidade e tomamos a estrada até a locomotiva.
Chegamos na Filadélfia em torno das dez. Nós três congelamos quando demos o primeiro passo para fora do trem. Sim, aquilo era estarrecedor. Haviam centenas, não, haviam milhares de pessoas, de todas as cores de pele, de cabelo e de todos os tipos de aparência que se pode imaginar, andando para lá e para cá. Não se via o cinza das ruas, somente vestidos, ternos e chapéus, milhares de chapéus que transitavam por todos os lados. Escutei espanhol, alemão, francês, russo, italiano e línguas que jamais conseguiria identificar.
— Todos eles estão aqui para a exposição internacional? — Martin perguntou. Pude ver seus olhos arregalados.
O senhor Mendes balançou a cabeça.
— É a primeira de vocês, não é? Na verdade ainda está bem vazio. Estive na exposição que aconteceu em Viena. Foi bem pior. — senti minha barriga esfriar mais do que a noite mais fria de inverno em São Paulo. Dessa vez não era de medo. Eu sorri fraco. Estava animado, e como estava. — Chega de enrolação, vamos logo ao nosso ponto de encontro!
Seguimos cortando os homens e abrindo espaço para as mulheres. Passamos como malabaristas entre as crianças e desviamos dos idosos. Eram tantas pessoas que as vezes precisávamos nos espremer entre suas costas. No total, chegaram a Filadélfia para aquele dia em torno de dez milhões de visitantes, na qual 37 países tiveram alguma participação no evento. No próprio terreno da exposição – que por sinal, custamos muito a chegar – haviam por lá mais de 200 edifícios cercados por quase cinco quilômetros de comprimento. Já chegamos a conhecer um ou outro antes da inauguração da exposição, o senhor Rutherfeller nos fez questão de mostrar todo seu investimento milionário para aquele dia. De todos os edifícios desenhados a cada espaço, os cinco mais importantes do evento eram o Edifício Principal de Exposições, Memorial Hall, Machinery Hall, Agricultural Hall e Horticultural Hall. Cada um seguindo sua premissa, na qual proporcionavam aos visitantes uma experiência mais organizada deixando um roteiro de visitas mais fácil de se seguir.
Na décima primeira hora, encontramos nosso grupo na fachada do Memorial Hall. Diferente dos outros lugares, ali a multidão foi afastada deles por alguns metros. Imaginei que fosse por conta da presença do imperador, porém, não levei muito tempo para descobrir que não era esse o motivo. Observei um homem peculiar que apertava a mão do nosso monarca. Não que sua aparência fosse peculiar, não, na verdade ele era só um senhor qualquer na casa dos cinquenta, calvo e barbudo. O que eu digo é que havia uma energia em volta dele que o diferenciava dos demais homens de meia idade. Talvez eu sentisse isso porque quase todo mundo não tirava os olhos dele, desde a multidão, até mesmo meus companheiros de Cartago. Pela primeira vez o imperador não era o centro das atenções.
— Que felicidade, vocês chegaram! — o imperador exclamou ao botar seus olhos em nós. — Por favor, cumprimentem esse tão estimado cavalheiro, o senhor Presidente dos Estados Unidos, Ulysses Grant.
— É um prazer conhecê-lo, senhor presidente. — o senhor Mendes foi o primeiro a dizer e nós fizemos o mesmo em seguida.
— Vossa Majestade já me contou sobre vocês, agentes de comunas. — o presidente Grant disse, logo após apertar nossas mãos. — Fico invejado de encontrar com jovens tão habilidosos. Meu apreciado colega Lincoln dizia: “O que quer que você seja, seja o melhor nisso”, nunca vi tanto sentido nessas palavras ao conhecê-los.
Depois de uma cerimônia singela só para a inauguração da exposição, as portas foram abertas. O presidente Grant seguiu para as demais instalações junto com o imperador e, aquela pressão sufocante de estar ao lado de duas figuras tão importantes, cessou por um momento, assim, pude cumprimentar direito meus demais colegas.
Os olhos de Áquila brilharam ao me encontrar. Ele estapeou minhas costas com força e me entregou um chapéu de linha novinho que comprou para mim.
— É popular em São Francisco. — ele disse. O ruivo sempre me tratou como um irmão mais novo. Não é atoa que na parte de dentro do chapéu, estava escrito: “Para o garotinho Franz, meu irmão de eras”
Piatã parecia um pouco tenso, mas ele soube esconder isso bem, ainda que eu conseguisse enxergar de alguma forma. Apertamos as mãos um do outro.
— É bom te ver de novo. Foram só algumas semanas mas parece que faz anos! — ele disse. Depois cumprimentou Elizabeth com um abraço demorado. A relação entre os dois lembrava a minha com Áquila, de irmãos.
Escutei o professor Tobias incentivar Haaka a falar comigo, já que o bombado carrancudo não aparentava estar se importando muito com toda aquela comoção. Ele ignorou o professor também. Contudo, quando Haaka quer fazer alguma coisa, a vida sempre o obriga a fazer exatamente o contrário. Sua namorada Eliz brotou de trás de suas costas de repente, como um fantasma, e o obrigou a me dar seus cumprimentos na base do terror.
Apolo se aproximou e me reverenciou. “Meu senhor...” — ele disse. Já eu, bem, não ficava tão constrangido desde a vez em que Áquila e eu fomos a um restaurante e o ruivo foi pego pelo gerente roubando os talheres do local com a desculpa de que não havia vencido ainda seu velho hábito.
— Eu não sou o imperador, Apolo.
— Sim, eu sei senhor. Mas isso não muda o fato de que sou seu servo. — rangi os dentes escutando aquilo e desapareci dali fingindo que não conhecia nenhum daqueles adolescentes esquisitos. Encontrei Liliana no caminho.
— Estou indo para as exposições de comida. — ela disse — Acho que não tem maneira melhor para começar o passeio.
“Para uma esganada não tem mesmo” — seu papagaio reclamou.
— Posso te acompanhar? — perguntei —Preciso fazer um folhetim de tudo, acho que essa parte seria interessante. Afinal, ninguém liga para máquinas inovadoras ou obras de arte mesmo.
Primeiro paramos numa barraca que oferecia uma bebida amarronzada cheio de espuminhas. Era uma espécie de suco não alcoólico, com um leve gosto de produto de limpeza. “Veja meu root beer! Ela pode curar a dor de cabeça, joanete, dor nas costas, afta, diarreia, queda de cabelo e até catarata!” — o dono da receita bradou a nós. Primeiro que nenhuma dessas enfermidades faziam sentido, uma não tinha nada a ver com a outra. Segundo, aquilo por acaso era algum elixir? Eu anotei todas as informações no meu bloco de notas mágico – digo mágico porque tinha um porta-tintas fantástico na parte de cima. Não precisava mais sair por aí carregando um frasco de tintas. Graças ao professor Tobias —, anotei tudo mesmo, desde o gosto questionável, até mesmo a cor de barro meio metálica. Por fim, para não causar estranhamento nos possiveis leitores, “aportuguezei” o nome da bebida.
— Refrigerante, vou chamar. — disse em voz alta a Liliana, ela gostou. — Certeza que se eu tomar mais dois desses, meu intestino vai derreter. — essa última frase disse a ela em português, já que estávamos bem na frente do vendedor.
Depois, escutamos uma balbúrdia bem familiar ali perto. Falavam em português então já podia imaginar quem era.
— Essa merda não tem gosto de nada! — era a voz ranhenta e carrancuda de Haaka.
— Detesto concordar com esse vira-lata maluco, mas realmente professor, parece que tô comendo papel. — dessa vez, foi Áquila quem disse.
— Eu já falei para vocês! — o professor Tobias respondeu — O cozinheiro da loja disse que precisava comer com sal, se não ficaria ruim mesmo. — me aproximei deles. Vi, que Áquila segurava nas mãos um punhado de massinha branca. Pareciam pequenos origamis de papel e tinham uma bolinha amarela no meio deles.
— O que é isso? — perguntei ao professor.
— É milho estourado numa panela. O cozinheiro disse que se chama Pop Corn.
— Corno? — Haaka dobrou a testa. — É um petisco de corno?
— NÃO! — o professor exclamou. — Corn quer dizer “milho”, em inglês.
Experimentei um punhado. De início realmente não tinha gosto de nada. Talvez de papel, igual Áquila tinha mencionado, mas não era nada especial. Depois, coloquei mais alguns na boca, só que salpicados com uma colher de sal por cima. O gosto melhorou duzentos por cento. Era viciante mastigar aquilo, tanto pelo gosto quanto pela sensação que dava na boca. Anotei no bloco, anotei e anotei. Não tínhamos muitos alimentos crocantes lá no Rio. As pessoas com certeza ficariam curiosas.
— Que nome você vai colocar? — Haaka perguntou. — Saiba que ninguém que for ler seu jornal vai ficar com vontade de comer o petisco de corno. Por mais bom que isso seja. Acho melhor dar outro nome pra isso.
Bem, diferente da bebida que acabei de provar, o nome não era difícil e não vi problema nenhum em reproduzi-lo no jornal. Mas se não mudasse a palavra Haaka me encheria a paciência o resto da vida por promover o “petisco para corno”.
— E que nome você sugere? — perguntei.
Ele pensou, analisou a massinha, a cheirou e depois a experimentou novamente. Enfim, vi que ele encontrou a resposta perfeita.
Contudo, Áquila se intrometeu na sua deixa:
— Que tal “Crachk” — ele colocou uma massinha dentro da boca. — é o barulho que faz enquanto mastiga. — fingi gostar, mas com certeza não colocaria aquela vergonha alheia de nome no meu jornal.
— Não me interrompe, curupira maldito! — Haaka o empurrou — Vai ser “Pipoca”.
Concordei com a cabeça.
— Hum... Gostei. Algum motivo especial pra esse nome?
— E precisa de um? Por acaso a beterraba tem esse nome por que tem rabo? Ou o mamão tem mão?
Não era tão ruim, embora não fosse o nome mais interessante. Só que como estava sem ideia alguma, seria aquele mesmo.
Seguimos e experimentamos a variedade de sabores a cada canto do galpão. Desde frutas híbridas nunca antes criadas, até pratos com peixes vindos das águas mais frias do ártico. Alguns produtos eram bons, outros nem tanto, mas de qualquer forma, acabou sendo uma experiência única.
De todas as exposições, a que realmente me chamou atenção foi o bloco repleto por frascos de vidro cheios de um líquido vermelho.
— É um molho de tomate — traduzi aos outros o que o vendedor havia dito.
— Um molho de tomate? — Áquila questionou em desdém — Não parece lá muito inovador. O vendedor me encarou com olhos brilhando de curiosidade.
— O que eles disseram? — o vendedor me perguntou. Era um senhor de uns trinta e poucos. Tinha uma expressão de um cachorro encarando bem a frente um osso.
— Sinto muito senhor, não sei se vale a pena falar...
— Me conte, por favor! — não era difícil sentir seu ânimo aflorado. De todos os homens que encontramos até então, ele sim tinha a cara de um inventor maluco. — Me conte! — repetiu — Mesmo que seja algo ruim.
Suspirei profundamente e, assim eu fiz. Já esperava por uma reação negativa ou entristecida dele, igualzinho os outros vendedores fizeram quando mostramos que não havíamos nos interessado muito nos produtos deles. Mas não foi isso o que aconteceu.
— Diga a eles que esse não é um molho de tomate comum. Não, esse é o mais revolucionário e intransponível molho de tomate já criado na história da humanidade. Peça que ao menos eles provem, por favor! — e assim nós fizemos. Ele nos ofereceu um pedaço de carne, um tanto mofada, com o molho por cima. — Veja! Vocês conseguem sentir o gosto da carne podre? É claro que não. Por que esse é o mais revolucionário molho de tomate já criado! Ele disfarça qualquer gosto ruim e torna qualquer comida não tragável, deliciosa! Vejam! O gosto é esplêndido, não? — de fato, a carne não tinha um resquício sequer de amargor. O molho era forte, levemente ácido, mas dava para sentir o gosto do tomate.
— Perdão, mas o senhor se importaria em nos dizer o que utilizou nele? Na nossa última experiência aqui, tomamos um chá com excrementos de rã, meu companheiro acabou vomitando com isso. E também confesso por mim mesmo que não foi uma das melhores sensações.
— Não se preocupem! — ele bradou. Pelo volume parecia querer que todos a nossa volta escutassem. — No meu molho utilizo apenas o bom e irresistível tomate maduro e vermelhinho, além de algumas especiarias, açúcar, vinagre, sal e cebola. Mais nada além disso. Sim meus garotos e todos os que estão ouvindo, é disso que é feito o meu molho revolucionário, mas, para ficar mais fácil de lembrar, chamem apenas por Ketchup!
— Parece uma excelente ideia. — lhe respondi. — A carne realmente está com outro gosto.
— Para falar a verdade, — Haaka comentou — Isso ficaria melhor com aquele petisco de corno.
Áquila escondeu o rosto com a mão, envergonhado.
— Você quer dizer pipoca, né? Ainda bem que todo mundo aqui não entende a gente.
O vendedor agarrou minha mão. Começou a encarar bem o fundo de minha íris e disse com bastante ênfase.
— Por favor, meu jovem. Conte a todos que você conhece, sobre o meu Ketchup. Conte sobre mim, o fabuloso e incrível cozinheiro Henry Heinz. Conte sobre o que experimentou aqui e sobre como eu criei este molho fantástico! Conte aos seus pais, aos seus avós, aos seus familiares. Conte ao seu professor — isso não seria necessário, já que ele estava bem atrás — Conte ao mundo todo! Darei quantas amostras quiser, até que você tenha um ano de Ketchup para se deliciar. Mas conte, conte a todos sobre o fabuloso Ketchup Heinz. Nenhuma outra indústria faz um molho assim, ninguém faz melhor que Heinz.
Seguimos o caminho depois dessa breve epifania. Ao fim, meu olho se deparou com os cabelos louros de Martin.
— Que pena — ele disse ao nos ver — Estava tudo tão bom por aqui. Mas tinha que aparecer o subúrbio das comunas para contaminar o ambiente. — depois ele começou a tossir. Pareceu algo forçado — Essa aura insignificante que vocês passam está me intoxicando.
— Quem esse engomadinho tá chamando de insignificante? — Haaka se revoltou, como esperado. Mas o professor Tobias o conteve.
— Olha só quem está falando. — desta vez foi Áquila quem tomou a nossa frente — Você fala que nossa comuna é insignificante, né? Mas fomos nós quem enfrentamos Salieri até agora. Enfrentamos ele sozinhos, desde a floresta de Ouro Preto, até lá no Theatro, onde se não fosse por nós, Salieri teria matado todo mundo. — o professor colocou a mão no ombro do ruivo.
— Não discuta com ele. — disse o professor.
A expressão de Martin não mudou um único milímetro. Ele seguia com aqueles olhos estreitados carregados de desprezo. Ele riu, depois voltou a dizer:
— Esses olhos vermelhos que você tem. — dizia a Áquila — Por acaso é um daqueles amaldiçoados?
— Amaldiçoados? — escutei a voz de alguém surpreso.
— Então vocês não sabem? Bem, não vai ser eu que vou contar. Só saiba que vermelho não é uma cor natural para um olho. — ele soltou um risinho baixo por alguns segundos. — E, quanto ao que você disse, sobre sempre vocês lutarem com Salieri. Na verdade, vocês não deveriam se orgulhar disso. — ele olhou para mim — Acho que eu nunca te disse, né Franz? Eu estive na floresta de Ouro Preto. Alguns agentes de outras comunas foram convidados para tomar nota do exame e eu e meu professor fomos assistir. — um silêncio nos rondou até que ele decidisse continuar. — Nunca vi nada mais patético. Primeiro que vocês tiveram a proeza de deixar um barbarian de verdade invadir o exame, a segurança falhou miseravelmente. Segundo que não apareceu um único professor de prontidão para intervir, deixando que o próprio examinador do exame — ele encarou brevemente Haaka — e que um dos candidatos fosse tomado por Salieri e se tornasse sua marionete. E, no fim, dois alunos morreram. Cartago é mesmo a comuna séria que tanto dizem? A tal comuna cardinal? Vocês treinam alguma coisa lá, ou seus treinamentos são deitar num travesseiro e não fazer nada? — senti meu sangue esquentar. Afinal de contas, o que esse desgraçado pensa que estava falando? Dei um passo para frente, se não respondesse ele logo era capaz de meu punho fazer isso por mim. Tenho certeza que os outros se sentiam da mesma forma. Mas o professor Tobias me bloqueou.
— Não. — ele olhou para mim de lado. — Não vamos deixar as emoções nos tomarem conta. — depois ele entregou sua seriedade assustadora em direção a Martin — E você não deveria falar sobre coisas tão sigilosas em público desta forma. Só porque estamos conversando em português não quer dizer que ninguém aqui não possa compreender. Tenho certeza que seu professor te ensinou sobre o sigilo do nosso trabalho.
— Nossa, me desculpe. — ele levou os olhos de um lado ao outro com desdém.
— E, outra coisa. — de repente, uma fina camada de escuridão nos encobriu. Ela nos rodeou como um domo e, em seguida, seu tom escuro desapareceu e tornou o domo transparente. — Deste modo ninguém além de nós poderá escutar. Preste atenção porque vou falar uma só vez. Não se atreva a menosprezar Cartago de novo, seu moleque. — seus dentes estavam cerrados, quase esmagavam um ao outro. — O que você viu lá na floresta, não foi uma comuna fraca. Nossos candidatos, no momento mais crítico de suas vidas, não fugiram ou sentaram no chão para chorar de medo. Não, na pior das situações buscaram ajudar seus colegas. — ele levou seus olhos gentis a mim por um instante — Talvez, se não tivessem feito isso, aquela noite não se resumiria a somente duas mortes. — ele aumentou seu tom — Cartago pode sim ter cometido alguns dos erros que mencionou, nenhuma comuna escapa de cometer seus erros. Mas uma coisa ficou clara e você com certeza percebeu, aquele dia não provou nossa fraqueza, mas sim toda nossa resiliência.
Nossa energia se renovou e o fogo no nosso sangue se dissipou. — com exceção de Haaka, é claro — Afinal de contas, o que aquele tal de Martin sabia sobre nós? Sobre como era passar por uma provação daquela e sobre como era perseverar apesar de tudo? Haaka não mentia quando o chamava de “engomadinho”. Ele era sim um mauricinho idiota que não tinha a noção do que era pôr sob pressão todas as suas forças, ou ultrapassar seus limites, ir além de tudo.
Nestor e Ária morreram pelas ações de Salieri, mas isso não derrubou a nenhum de nós. Salieri seria derrotado e os dois vingados. Precisávamos garantir isso, e faríamos de tudo por isso, até mesmo contar com a ajuda de alguém como Martin e sua comuna de Alexandria. E, só o fato de lutar ao lado de alguém como ele, já provava que tipo de comuna nós éramos.
No final das contas, Martin me fez refletir em algo importante: Se apesar de tudo nós continuávamos de pé, então não precisava temer Salieri da forma que estava desde então.
Já que, de qualquer forma...
Cartago estava mais do que pronta para a guerra contra esse desgraçado.
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