Quarenta - Parte 1
Medo...
Como eu o senti. Ele corria e escorria pelas minhas artérias. Ele pulsava no meu coração, enchia meu cérebro e contornava cada uma de minhas vértebras e ossos. O medo estava em toda parte, em todas as dimensões físicas e até em pensamentos. O medo abraçava-me e cobria-me como um manto de seda, era largo e arrastava-se ao chão, passava do pescoço e me ofuscava com um capuz. O medo roubava minha sanidade, meus planos e minha própria existência. Ao menos era desta forma que eu vivia. No final, este não é um poema melodramático ou parnasiano de como estava entregue ao meu medo...
Maio de 1876, Filadélfia - Pensilvânia, Estados Unidos.
Esta é a história de como finalmente derrotei meu medo.
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Atingi outra adaga em sua jugular. Tentei me lembrar qual número era aquela mula, mas logo desisti – quando cheguei no quadragésimo nono deixei de contar. No final, era só mais uma carcaça vazia interditando o chão. Mais mulas começaram a se aproximar. Lutando com dezenas de mula-sem-cabeça pude perceber uma coisa: Havia um ponto vital que se atingido, as fariam morrer em poucos segundos. Se eu lutasse normalmente com cada uma delas o sol nasceria e eu não teria matado nem metade. Com isso e também com a ajuda de Apolo e Martin terminaríamos em menos tempo do que o imaginado.
— Eu odeio esse cheiro de sangue. — Martin reclamou — Parece... Sei lá... Vômito misturado com ferrugem.
— O professor Tobias me disse uma vez que quanto mais forte é o cheiro do sangue de um barbarian, mais poderoso ele é. — afirmei
— Imagino o cheiro de Salieri então. — Martin cuspiu sangue da boca.
Apolo estalou a língua e, mesmo com todos os rugidos, gritos e ruídos de carne, ossos e tecidos sendo estilhaçados, todos ouvimos sua língua estalar.
— Concentrem-se, pessoal!
— Não precisa nem me dizer — reclamei. — Temos que terminar isso logo para voltar e ajudar o professor Tobias.
Eu estava com o olho preso na batalha, mas notei Martin me encarar.
— A proteção do imperador é nossa prioridade. Vamos levá-lo primeiro a um lugar seguro.
— Você pode ir se quiser, mas voltarei pelo professor Tobias.
Subitamente, no horizonte das batalhas, onde as estrelas se perdiam na imensidão do céu noturno, uma linha púrpura e reluzente como uma agulha, emergiu. Ela brotou tímida, tênue e despretensiosa. Mas então a agulha se engrossou e tornou-se um feixe de luz chamativo. De repente a noite tingiu-se de vinho e o céu estava claro por conta deste raio de luz que o delineava.
“A invocação...” — balbuciei a mim mesmo, mas Apolo escutou. Estávamos todos admirados com o feche de luz, até mesmo as mulas mal se moviam na batalha.
— Eu preciso voltar e tem que ser agora!
— Não dá — Martin reclamou — Não conseguiremos vencer todas essas mulas sozinhas.
— Vá, Franz! — Apolo contestou quase que imediatamente — Você também pode ir embora se quiser, Martin. Posso tentar segurá-las aqui.
— Não venha com essa — Martin replicou — não tem chance de você conseguir. Vai morrer.
— Se assim tiver que ser... Mas farei o possível para que não aconteça.
— Não seja tão dramático.
— Esperem! — chamei a atenção dos dois — Talvez, se essas mulas forem atraídas até o meio da floresta, tenhamos uma chance de fazer as duas coisas. Nossos reforços estão por lá, talvez apareçam. Acham que conseguem segurá-las só pelo tempo necessário até que alguém chegue?
— É arriscado — Martin contestou — Podemos não aguentar até chegar lá. E, mesmo que a gente consiga, o que garante que irá aparecer alguém para ajudar?
— Sim... — ponderei por um instante — É, você tem razão. — suspirei.
— Mas na guerra existem riscos. — o próprio Martin levou-se a responder — E estamos no meio da maior guerra das nossas vidas. Pensando bem, nunca vamos vencer se não arriscarmos e contarmos com a ajuda do outro. — ele pausou, vi seu rosto se afligir em amargura por um singelo momento. — Sabe, tem algo que eu queria contar para vocês. — Martin estava eufórico, pareceu refletir por um instante. — Não, esquece. Só vá até Tobias. Faremos nosso trabalho aqui. — acenei com a cabeça. De qualquer forma, estávamos no meio da batalha, mas aquilo permaneceu na minha cabeça. Depois, virei de costas e corri. — Franz! — ele bradou quando eu já estava longe — Aproveite a viajem e mate Salieri também!
Pela primeira vez na vida, concordei com uma coisa que ele disse.
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Não costuma nevar nos Estados Unidos em maio, pelo menos foi o que li em algum livro. Mas naquela noite nada normal, nem mesmo o céu teve vontade de seguir as leis que lhe foram impostas. Sim, uma poeira branca, fria e mágica dançava com os ventos do céu ao chão. O que era um leve sopro, tornou-se uma tempestade, uma tempestade de neve. Desde pequeno, enquanto despendia horas com o rosto preso ao batente da janela durante os dias mais frios do ano ansiando por uma migalha sequer de neve, nunca imaginaria que seria nestas condições que a encontraria finalmente. Não levou muito tempo para o chão verde e escuro tornar-se branco, plumoso.
Mas sua beleza não era nada gentil.
Ao passo que eu cavalgava pelo caminho que vim, os cascos do cavalo se desprendiam do chão com dificuldade. A chuva branca ofuscava o horizonte. A neblina era assustadora e gelada. A tempestade se intensificava a cada segundo e cada vez que piorava era difícil imaginar como ela poderia ficar pior, mas ela conseguia ficar pior. Talvez eu morresse ali, antes de chegar até o professor. Não era difícil de acontecer. Meu corpo já estava frio e minha mente lenta. Mas então o cavalo parou sozinho. Olhei para seus olhos e depois para baixo então compreendi, havia uma cratera gigantesca a poucos metros.
O campo de batalha.
Desci do cavalo e deslizei pela neve. Talvez tenha sido uns vinte, trinta metros de profundidade, mas a neve me derrapava lentamente e não caí ao chão de maneira violenta. Não havia neblina por lá, uma luz chamativa vinha do centro. Me aproximei e vi uma sombra de pé. Havia algo preso em seu peito. Apertando bem os olhos vi que era uma lança e, como ela reluzia... Se continuasse a encarando me cegaria. Ela atravessava-o da frente para trás e, na sua ponta de cortar o olho só de ver, respingava gotas vermelhas. Meu corpo se enrijeceu. Me faltou ar por alguns segundos. Aquela era a visão que outrora tive. A pessoa empalada pela lança era a dona da cartola que eu segurava naquele instante. O professor Tobias.
— Só há um modo de vencer a escuridão. — a voz vinha logo a sua frente. A pessoa que segurava a lança, Salieri — É com a luz. — depois ele riu. O que aquele desgraçado estava achando engraçado?! — Por que será que levei tanto tempo para pensar nisso?
Eu corri até o professor. Salieri retirou a lança de seu peito e ele desabou no chão.
— Professor! — gritei. Me agachei e apoiei sua cabeça em meus joelhos. — Respire professor, respire, respire...
— Fra... — ele engasgou-se com sangue — Franz. A verdadeira luta não está aqui. — com a força que lhe restava ergueu a mão e apontou a Salieri. — fechei os olhos por alguns segundos. Pareciam levar horas. Peguei seu chapéu e encaixei sobre sua cabeça. Ele já não estava mais acordado, mas sabia que ele gostaria de ficar com o chapéu.
Então me levantei.
— Ele não deveria ter ficado no meu caminho, o plano não era matá-lo. Nunca foi — Salieri revirou os olhos — É isso que dá. E, se insistir, o próximo será você.
Gritei e corri até ele. Peguei meu saxo e algumas adagas, arremessei duas de uma vez, ele as rebateu com a lança, mas se distraiu demais com elas. Com isso apontei a faca até seu peito e segui com a ofensiva. Tentei cravá-la, mas ele agarrou minha mão que segurava o cabo. Salieri levantou o joelho sobre meu estômago, golpeou meu rosto com um soco e depois me chutou. Corri até ele mais uma vez. Agora, em vez de estocar o saxo, pretendi abrir um corte em sua garganta. Próximo a ele, apertei a mão sob o cabo da faca e a levantei, ele contudo golpeou meu braço e desviou a trajetória do ataque. Golpeou meu abdômen mais uma vez, depois me segurou pelo cabelo e enfiou o punho fechado no meu rosto. Urrei e corri mais uma vez até ele, não tive a chance nem mesmo de iniciar uma ofensiva, ele me atacou antes com um soco devastador. Fui arremessado alguns metros. Caí no chão sem mais forças. “Que patético Franz...” — pensei. “Foi para isso que treinou nos últimos doze meses?” — meu olho começou a desabar em lágrimas silenciosas. Agarrei e apertei a neve ali no chão, tentando de alguma forma inútil exprimir minha angústia. “Por que eu sou fraco? Se eu não fosse fraco ninguém teria morrido...” — depois gritei. Não era um grito de batalha, de ódio, medo ou tristeza, talvez tivesse arrependimento nele, mas com certeza havia impotência. E em seguida veio a tristeza. “Professor...” — o corpo do professor estava a minha vista. Chorei mais um pouco.
— Olha Franz, eu realmente não quero te matar. Vou te dar uma chance de ir embora, você sabe que não pode vencer. Desta vez é sua última chance. Se você me atacar de novo não terei piedade.
Fechei o olho. As lágrimas secaram. Fechar o olho... Me concentrar na minha alma, no meu interior. Sim, foi a última coisa que o professor Tobias me ensinou. E depois, despertar aquilo que já está em mim. Meu olho levou mais tempo para se abrir do que eu esperava, mas assim aconteceu, mesmo que depois de anos. Finalmente estava na hora de me levantar.
— O quê? — Salieri exclamou surpreso — Olhos amarelos? Acha que eu tenho medo do seu poder?
De inicio não consegui correr até ele imediatamente. Havia um peso no meu corpo. Era poder, energia. Como se eu carregasse cinquenta litros de água de uma vez. Mas então o peso sumiu e em alguns segundos dei a arrancada inicial.
O primeiro ataque seria por baixo, seria despretensioso, sutil, letal. Corri até Salieri, apertei o cabo do saxo com força e o levei até seu peito. Ele bloqueou. Salieri disse que me mataria se eu atacasse de novo, eu não duvidava disso e contava com isso. Primeiro ele me afastou com um chute, pegou sua lança brilhante e rapidamente a empurrou até minha garganta. Exatamente como eu esperava que acontecesse. Desviei para a esquerda. Como ele era destro não teria tanta eficácia se continuasse com a ofensiva, seria um ataque descuidado; com isso, encontrei um espaço para espetar seu braço com o saxo. O corte deveria ser preciso, num ponto específico. Rompi o tendão e toda a musculatura que conectava seu braço, da mão. Ele derrubou a lança e a peguei. Finalmente, a finquei em sua perna, cravando de um lado ao outro. Sim, o primeiro ataque seria por baixo.
Deixei a lança lá e tomei uma distância segura para reavaliar o plano.
— Acha que isso será o suficiente? — ele puxou a lança de sua perna com brutalidade.
Corri mais uma vez até ele.
— Sabe, Franz... Minutos antes de morrer Tobias estava tão feliz. Ele tinha lançado aquele ataque todo poderoso dele e podia jurar que tinha chances de vencer. Bem, isso até de repente ele encontrar uma lança no seu peito literalmente do nada. — ele começou a rir baixinho. — Essa vida é irônica. Ela adora nos dar o gostinho de uma conquista pra nos tirar depois sem piedade nenhuma.
Lancei duas adagas até seu rosto. Ele as bloqueou. Lancei mais adagas, de todas as direções possíveis e ele seguiu bloqueando-as. Aproveitei de seu breve descuido para iniciar uma ofensiva em seu estômago. Quase o acertei, mas ele bloqueou meu ataque como da outra vez, segurando meu braço.
— Acha que vai conseguir me acertar assim? — levantei as sobrancelhas e olhei para cima brevemente. Ele acompanhou meus olhos e viu uma adaga vindo rapidamente do céu. Com a distração para desviar do ataque, acertei um chute em sua perna ferida, ele não conseguiu se equilibrar e caiu no chão. Estoquei o saxo em seu ombro. Ele gritou de dor. — Seu pirralho de merda.
Me afastei mais uma vez para avaliar o ataque seguinte.
Salieri se levantou e dessa vez ele quem correu até mim. Ele já não tinha um rosto entediado e debochado.
— Depois de te matar talvez eu leve sua cabeça para seu irmão. Tenho certeza que ele vai gostar. — ele seguiu com ataques somente de lança. Eram velozes e precisos. Eu bloqueava os que podia e desviava dos demais, mas nem sempre era possível e ele inevitavelmente acabou rasgando parte de meu rosto e alfinetando meus braços e pernas. Se não fosse meu poder, provavelmente já estaria morto. Meu olho brilhava com mais e mais intensidade. A melodia metálica de minha lâmina e de sua lança se chocando se tornava a única a ser escutada. Depois, vinha nossos rugidos de guerra. O acertei no outro ombro, ele me acertou na virilha. O acertei no braço esquerdo, ele me acertou no tornozelo direito. O acertei no peito, ele me acertou no estômago. Meu corpo tingia-se de vermelho e minhas veias desenhavam-se na pele. Ele gritou e com um impulso levou a lança até meu peito. Pus a mão para bloqueá-la e assim consegui, mesmo embora a ponta da lança tenha atravessado minha mão.
Tomei distância e voltei a arremessar mais adagas.
— De novo com isso? — ele disse ofegante. — Não vou cair no mesmo truque duas vezes.
— E quem disse que tem algum truque? — uma adaga atingiu seu braço, outra sua virilha e outra seu estômago. Desta vez não corri até ele. — Você está fraco, lento e com movimentos repetitivos. Não é o Salieri que vi lutando com o professor Tobias mais cedo.
Ele rosnou com os dentes cerrados:
— E daí?!
— Aquele ataque do professor Tobias... Nem você sobreviveria. Precisou usar todo o seu poder para não morrer, né? Aí, o que te restou foi só essa lança mesmo. — ele soltou um sorrisinho cheio de raiva. Eu estava certo.
— Isso não importa. Eu não vou perder para um moleque que nasceu ontem. — Salieri acelerou novamente em minha direção e o som das lâminas se chocando retornou.
— Em questão de aparência você também parece que nasceu ontem. Me disseram que na sua aparência original você possuía chifres cumpridos e uma pele roxa, como um diabinho mesmo. Bem, sua identidade já caiu por terra, então por que continuar com essa aparência? — isso pareceu ter espetado seu humor, sua raiva se intensificou. — Por que usar a aparência desse garoto? — o ruído das lâminas começou a ficar mais e mais ardido. Então, Salieri atingiu a mão que eu segurava o saxo e acabei derrubando-o. Depois disso, atravessou a lança no canto de meu abdômen. Ele seguiu empurrando o cabo em minha direção lentamente, até a metade da lança passar por mim e ele se aproximar o suficiente. Agora ele estava com o rosto próximo aos meus ouvidos, ele sorria carregado de desdém.
— Adiantou? — o barbarian sussurrou em meus ouvidos e girou a lança. — Adiantou alguma coisa? Você chegou até aqui para ter seus órgãos dilacerados, não é? Para quem consegue ver o futuro, isso é patético. Eu já disse, você não pode me derrotar. — depois ele notou que eu queria falar alguma coisa.
— É... — arfei, engasgando-me com sangue — Eu não posso te derrotar sozinho. Já me disseram isso também. Mas você melhor do que ninguém já deveria saber que em Cartago, não lutamos sozinhos.
Um grito ecoou do horizonte:
— AGORA!— um estrondo seguiu, o barulho de um tiro. Depois outro e outro. Salieri virou o rosto para trás, assustado. Logo depois disso, uma explosão. Ela me separou dele por metros de distância. Quando reavi meu raciocínio, vi que não foi a explosão que me distanciou de Salieri, nem mesmo fui atingido por ela. Alguém me segurava apoiando-me em seu ombro. Era um corpo morno, com um cheiro familiar e uma aura acalentadora, era Áquila.
— Não podia chegar numa hora melhor. — disse assim que desvencilhei dele.
— Quando Apolo nos contou viemos correndo. — era a voz bronca de Haaka. Vi que estavam tão debilitados quanto eu, mas continuavam de pé. — Achou o quê? Que iria ser o único a sair no tapa com esse desgraçado?
— Mas e o imperador?
— Pode ficar tranquilo. — Áquila disse — Eliz e as outras meninas estão o levando para um lugar seguro.
— Eu não ficaria tranquilo — Haaka arregalou os olhos — Se Eliz está com ele eu ficaria tudo, menos tranquilo.
— A propósito — Áquila se virou a Haaka. — Desde quando você aprendeu a usar a carabina dela?
— Teoricamente é minha carabina, já que ela faz parte do meu poder.
— Deixa ela te ouvir falando isso.
— Pessoal... — chamei-lhes a atenção para Salieri. O demônio ria e com mais raiva. Escutar aquela risada chegava a eriçar todo o corpo.
— Que fantástico! — ele vociferou — Agora são mais dois pirralhos.
— Quem tu tá chamando de pirralho, seu índio mequetrefe?
— Segura a língua, Haaka. — Áquila o censurou.
— Então era com isso que você estava contando, Franz? — Salieri cuspiu — O que vai salvar o dia vão ser dois moleques que nem passaram da puberdade ainda?
— Não seja idiota — Haaka gritou —, eu tenho dezesseis então já passei da puberdade!
— Cale-se! — Salieri bradou, depois começou a coçar a nuca incontrolavelmente mais uma vez — Atraso, atraso, atraso ATRASO. Isso tá me atrasando! Olha, eu nem queria, mas agora eu tô com uma vontade GIGANTESCA de desintegrar essa comunazinha de merda. São pulgas irritantes, eu mato uma e mais e mais surgem no lugar. Depois que eu der o mesmo fim a vocês que dei ao seu professor, vou me divertir um pouco com seus amigos.
— Professor? — escutei Áquila balbuciar baixinho. Após isso, seus olhos encontraram com o corpo de professor Tobias ao chão. Haaka também viu. Por alguns segundos, segundos estes que pareciam que nunca acabavam, eles não disseram nada. A aura deles mudou. Depois levantaram o rosto, se puseram ao meu lado. — Vamos fazer isso, Franz! — Áquila concluiu.
E a batalha de verdade começou.
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