Epílogo
Os ipês floresciam.
Havia um tapete de pétalas rosas ao chão. Tanto que a carruagem mal fazia barulho na estrada. Da janela, conseguia ver as plumas delicadas pairando no ar. Eram tantas que eu parecia estar olhando para um quadro.
Então o carro parou e escutei alguém anunciar: “chegamos”.
— Deixem-me ir sozinho. — eu disse e segui pela estrada enfeitada.
Havia um festim, músicas de corda, gargalhadas insuportáveis, cheiro de vinho e carne, além de escravos correndo de um lado para o outro. Como eu odeio confraternizações assim, sinto vontade de vomitar. Juro que preferiria me jogar num poço do que ter que comparecer a esses eventos. Mas aquela ocasião era especial.
A noiva estava deslumbrante, admito. E, mesmo que não fosse ela ou a família dela quem pagou por tudo, todas as atenções estavam em seu vestido bordado e nos longos cabelos trançados.
Mas também haviam aqueles que prestavam atenção ao noivo.
Eu podia vê-lo, estava sentado sozinho numa das primeiras fileiras, bem próximo a mesa dos noivos. Havia perdido a cerimônia na igreja, mas fazia questão de comparecer a festa. Algumas pessoas vieram falar comigo. As cumprimentei, mas não passei disso. Não estava muito interessado em virar amiguinho de ninguém.
E lá na minha frente estava o noivo.
Ele sorria como um frouxo de nada. Tomei um gole do vinho para não acabar vomitando por ver de novo aquele rosto cínico depois de sete anos. Em seguida, para animar a festa – o que realmente não aconteceu –, algum infeliz deu a ideia ao noivo para que se levantasse e começasse a dizer algumas palavras aos convidados. “Fico profundamente honrado em ter todos vocês aqui” — ele começou dizendo. “Em nome da família Silvertoch, gostaria de agradecê-los”. E então ele começou a contar uma história entediante de como conheceu Mirian, a esposa postiça. Eu sabia que cada palavra era uma mentira, se tem uma coisa que meu primo Anthony adora fazer, e muito por sinal, é mentir. Num momento ele começou a contar algo sobre uma laranjeira e como ele se encontrava com ela todas as tardes. – desta vez nem criatividade o desgraçado teve, preferiu simplesmente roubar a minha história com Mirian.
Não aguentava mais, não, não podia continuar aturando aquilo.
Um som de líquido derramando sobre a terra fez Anthony parar o discurso. Todos olharam para onde vinha o som. Juro que não imaginei que seria tão chamativo assim.
— Como vocês podem servir um vinho tão horrível? — aquele vinho deveria ser caro pra cacete. Nem consigo imaginar o que Anthony deveria estar pensando ao me ver derramar o valor de uma dúzia de cavalos, no chão. Ninguém falou nada de imediato, nem mesmo ele. Suspeito dizer que meu primo nem estava entendendo o que acontecia. — Vou ter que lavar minha garganta com bucha pra tirar esse gosto.
— Desculpe senhor, mas... — Anthony balbuciou em reflexo.
— Não desculpo. — me levantei — Principalmente por ter sido obrigado a assistir essa festa que parece mais com um enterro.
Anthony sorriu sem graça. Primeiro gaguejou, depois finalmente lhe veio o que dizer.
— Com todo respeito, Conde Algarves, e digo isso de verdade, porque realmente acho o senhor um excelente jornalista e empresário, mas não posso admitir seu escárnio. Se o senhor está insatisfeito, então se retire. — ele não me reconheceu mesmo. Quase gargalhei. Mas é compreensível, afinal eu não era mais o pirralho assustado que ele conhecia. Agora tinha uma barba maior do que a de tio George. Por anos temi os músculos de Anthony e sua altura, mas em tudo isso eu o ultrapassei. Além disso, esses sete anos em Cartago não mudaram apenas o que eu tinha por fora, mas por dentro também. Minha expressão e meu olhar mudaram.
— Farei isso com todo o prazer. — sorri com deboche. Com esse sorriso, algo pareceu abrir os olhos dele. Foi como um estalo. Anthony ficou estupefato. Sim, ele conhecia aquele sorriso. Depois, caminhei entre as mesas até o lado de fora da fazenda.
— Ei! — Anthony me chamou — Você por acaso é o...
— Sim. — depois disso veio o silêncio. Talvez não tenha durado tanto para as pessoas que nos assistiam, mas acredito que para nós dois tenha passado uma eternidade inteira antes de eu continuar a falar: — A propósito, espero que esteja gostando de tudo isso. – olhei em volta, por todos os lados da fazenda – Eu comprei todos os terrenos ao redor daqui, isso significa que agora somos vizinhos, né?
— O quê?
— Calma, pode ficar tranquilo. Será apenas por enquanto. Afinal, o principal eu ainda não tenho. — soltei um risinho baixo uma última vez. — Boa sorte ao casal, e felicidades. Tenho certeza que vão precisar. — deixei a taça cair no chão, ela se estilhaçou.
Que bom que agora essa cidade miserável sabe que eu retornei.
Tomei mais uma vez a estrada de barro de volta a carruagem. Lá no fundo escutei uma balbúrdia, aqueles dois idiotas provavelmente ainda estavam brigando – que infantil, nem parecia que tinham mais de vinte anos. Áquila me viu chegar e eles pararam.
— E então? Te viram?
— Sim. — subi e me sentei mais uma vez próximo da janela.
— E eles te reconheceram?
— Sim.
— E o que você disse?
— Só o necessário.
Áquila sorriu com orgulho. Haaka nos encarava sem entender nada. Depois, aleatório do jeito que é, ele disse:
— Cara, meu estômago tá mais vazio que minha carteira no final do mês.
— Olha, eu vi um restaurante no caminho. — Áquila disse — Querem parar lá?
— Será que eles tem aquele Petisco de Corno americano?
— Pipoca? — Áquila revirou os olhos.
— Você sabe o que é.
— Por que raios um restaurante iria servir pipoca? — e mais uma vez a discussão começou.
Enquanto isso, me debrucei na janela, assistindo a chuva de pétalas. Pensei em minha visita a Anthony. Aquilo não era nada... Havia ainda tanta coisa que eu precisava fazer nesse mundo além de extinguir aquelas injustiças próximas à mim, como ascender a classe alfa e trazer segurança as pessoas, aos meus amigos de comuna. Anthony era só uma barreira que precisava ser quebrada da minha vida e eu faria isso.
Meu sangue clamava este desejo.
————||————
Tudo ficou escuro.
Tudo estava frio, rarefeito. Eu não demorei em reconhecer aquele lugar, sim, era minha mente.
O que raios ele queria de novo?
— Foi suficiente? — sua voz vinha atrás de mim. Ele fazia de propósito, adorava atormentar minha cabeça.
— Foi. — respondi sem enfeite.
— Você poderia só tê-lo matado. Seria mais simples, não é? — além da voz de Anthony, essa voz conseguia entrar no meu seleto panteão das vozes que eu não suportava escutar.
— Não sou como você, Salieri. — virei o rosto a ele. Encarei seus olhos fundos. Aquela pele roxa como uvas rubi e os chifres de carneiro acima da cabeça não me assustavam mais. Ele sabia disso e tenho certeza que logo desistiria de tentar me assustar na minha própria mente. — Não preciso matar alguém para me livrar dessa pessoa.
Ele gargalhou.
— Eu pensava assim também, e então deixei você e Tobias vivos quando tive a chance de matá-los. No final você sabe o que aconteceu. — ele aproximou os lábios de meu ouvido e sussurrou: — Mas assim que eu tiver esse seu corpo todo para mim, não vou cometer o mesmo erro.
— Vai sonhando... Já fazem sete anos e você nem chegou perto disso. Não sou mais o garotinho aterrorizado e inseguro que você conhecia, também não sou como Piatã. — me distanciei dele — Se depender de mim, você ficará quietinho aí, aprisionado no meu subconsciente até eu morrer. Aí já aproveito e te levo comigo para a cova. — o vi segurar a raiva, depois ele não conseguiu e começou lançar suas ofensas. Para ser sincero, não estou nem aí. Se ele fosse esperto, não precisaria estar passando por isso. Ele poderia ter aceitado sua morte pelas minhas mãos. Vai por mim, algumas coisas são bem piores do que a morte, como por exemplo ficar aprisionado num lugar frio e sufocante como aquele por longos sete anos. — Adeus, Salieri. Aproveite a estadia. — estalei os dedos e acordei novamente na carruagem. Levantei com um susto. Áquila percebeu.
— Está tudo bem, Franz? Aconteceu alguma coisa?
— Não. Nada de especial.
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