Doze

Cortei meu braço no espinho duma paineira. Um vento gelado saiu do interior do brejo.

 — Está bem, Franz? — escutei Nestor. — acenei com a cabeça.

 Eu sempre detestei florestas densas, mata atlântica pura. Era horrível a sensação de ter algo nas suas costas, você olhar para trás e ver a folha de um maricá. Insetos no chão, pelos lados e até na sua cabeça. Sem contar o medo de aparecer uma onça para te devorar em pedacinhos a qualquer momento. Mas, como espião, eu sabia que isso não deveria ser o tipo de coisa de se ficar incomodado. Já fazia uns quinze minutos que corremos em direção a floresta.

 — Os monstros poderão aparecer a qualquer momento. — alertei — É bom já ficarmos atentos.

Recebemos novas instruções na saída norte da cidade. Cada um de nós segurava uma bandeira de uma cor diferente. A bandeira servia para identificar qual barbarian iríamos lutar, ele provavelmente tinha a mesma cor da nossa bandeira, pintada em alguma parte de seu corpo. Como cada um só enfrentaria um deles, o barbarian da respectiva cor só atacaria a pessoa que estivesse portando a bandeira de sua cor. Haviam placas ao longo da floresta indicando a direção onde poderíamos encontrar cada barbarian. As placas nos dispersaram como grupo. Pelo que pude constatar, mantinham somente uma dupla por local, no meu caso, eu e Nestor.

 É tão assustador o fato de você não saber o que esperar a sua frente. Uma insegurança do que pode acontecer a qualquer momento. Repeti as regras comigo mesmo para tentar de alguma forma me encorajar.

1. Devemos derrotar esses monstros antes do tempo acabar.

2. Não podemos deixá-los chegarem na cidade.

3. Não podemos interferir na luta de nenhum companheiro.

Repeti mais três vezes. Engoli em seco o nervosismo e prosseguimos amassando os galhos no chão e fatiando as samambaias que se opunham ao nosso caminho.

 — Talvez não devêssemos ir tão longe. — Nestor balbuciou. — Vai que um monstro aparece lá atrás e chega na cidade porque a gente estava muito na frente. —  ele estava certo, por isso aquietamos num espaço mais aberto e aliviante da selva, dava para descansar sem ficar com medo de uma lacraia cair na cabeça.

 — E o que vamos fazer agora? — indaguei — Só esperar, que esses monstros virão até nós? — não tínhamos uma lista de opções, então fizemos isso mesmo.

Com o tempo passando e nenhum movimento ao redor, relaxamos sentados em cima de umas pedras. Estremeci um pouco com o vento gelado que entrou dentro das minhas roupas. Olhei para o céu, estava nublado. Não dava para saber se estava de dia ou de noite, acho que não me lembro de vê-lo tão denso quanto naquele dia. Sentia cheiro de umidade. Uma tempestade cairia a qualquer momento. E assim começou através de uma garoa fraca que de repente passou a molhar nossos cabelos. O inspetor Eliade havia interrompido a chuva de algum modo da outra vez, eu torcia para que ele fizesse o mesmo novamente.

 Observei Nestor. Seus olhos prendiam-se no chão, as sobrancelhas dobravam-se e compartilhavam nervosismo comigo. Ele estava tenso. Suava como um maratonista. Pude ver na ponta de seus dedos que tremia.

 — Vamos pisar naquele monte de bosta e passar neste teste maldito. — eu disse. Ele riu da parte monte de bosta. Ri com ele. — É isso que um espião da comuna faz. Acaba com todos esses monstros imprestáveis. — Nestor concordou com a cabeça. — A propósito, o que te levou a entrar para essa comuna, Nestor?

 Senti seu rosto hesitar. Mas ele explicou:

 — Meus irmãos mais velhos também trabalham numa comuna. Acho que me identifico muito com Ária. Eles me subestimam pra caramba! Quando eu disse que um dia atingiria a classe Alfa, eles gargalharam pra burro. Fiquei com tanta raiva, mais tanta raiva que saí de casa e vim para cá, desde então nunca mais os vi. Prometi a mim mesmo que só vou voltar a vê-los quando atingir a classe Alfa. — senti pena dele e até me identifiquei. Afinal de contas, quando se tratava de ter uma droga de família, eu sabia bem como era a sensação — Você tem irmãos, Franz? — refleti em silêncio por um tempo. Eu já tive, mas ele havia morrido anos antes de eu nascer. Não me senti a vontade em contar isso.

 — Não. Eu morava com meu tio e primos. Todas pessoas na qual acho que não vale a pena nem sequer mencionar o nome. — pausei por um instante — Mas confesso que só estou aqui por causa deles.

 — Entendi. Então no final das contas eles fizeram algo bom, já que você está aqui.

 — Se roubar meu dinheiro, minhas terras e meu título for considerado algo bom, então sim. — ri comigo mesmo — Mas não esquenta com isso, agora eu tô aqui para conseguir de volta. Vou ficar rico, rico o suficiente para ter o poder de acabar com eles.

 — Rico? Pensando bem, para falar a verdade não faço ideia quanto ganha um agente da comuna. Meus irmãos nunca falaram.

 — O plano não é ficar rico aqui. Esse é só um trabalho temporário. — um rugido interrompeu nossa conversa. Um rugido animalesco, um que nunca havia escutado antes. Olhamos afoitos para os lados, até encontrar sua origem. De início não foi fácil.

 — Será que é uma onça? — Nestor perguntou com a voz embargada de medo.

 — Não, com certeza não é. — eram dois rosnados, de duas direções opostas. Peguei meu saxo, inclinei o corpo em posição de ataque. As árvores farfalharam e duas bestas surgiram simultaneamente dentre elas. Deveriam ter uns dois metros. Tinham um rosto que lembrava um javali com um humano. As orelhas, os chifres e o focinho pareciam como os do animal, já os olhos e o formato do rosto eram humanos. “Barbarians” – Nestor balbuciou. O vi perifericamente tremendo de maneira incontrolável. Para falar a verdade, sentia mais pena dele do que medo daqueles monstros. Quando imaginei essas bestas, eram bem mais terríveis e amedrontadoras.

 — Vamos lá. — tentei incentivá-lo — São dois, cada um irá enfrentar um. Vamos acabar com eles de uma vez. — o garoto permanecia atônito, em silêncio — Não esquenta, são só ilusões, lembra? Vamos!

 Parti para cima do meu barbarian. Estoquei o saxo na direção do coração. Puxei de volta com força. Vi o sangue expelir-se pelo ferimento. Me surpreendi com o quão realista aquela ilusão parecia. A criatura me direcionou um soco no ombro. Tentei desviar, mas acabou acertando meu braço e fui arremessado no chão. Grunhi alto, assustei Nestor mais ainda. Eu ri. No final de contas acabei causando o efeito contrário no rapaz. Não queria que ele desistisse, ele tinha uma coisa a provar para sua família inútil e, se o problema envolvesse uma família inútil, estaria disposto a ajudar nem que tivesse que ir até o inferno. Me levantei com dificuldade. Encarei aquela besta com fúria e corri até ela. O monstro parecia mais irritado. Ele me atacou por cima, dessa vez consegui desviar curvando a coluna por baixo, passei por ele ágil como um rato. Estoquei o saxo em seu braço. A fera rosnou. Retirei o saxo com um certo esforço e estoquei em seu peito. A fera rosnou mais alto. Ao mesmo tempo, o outro barbarian caminhava até Nestor. Fiquei agoniado em vê-lo imóvel.

 — Vai ficar só assistindo esse cara te matar? — gritei para ele — Nesse caso é melhor desistir e mostrar pros seus irmãos que você não passa de um fracote mesmo que nunca vai conseguir o que quer!

Ele ainda tremia, mas o vi se levantar. Depois disso, não consegui mais perder tempo com ele, já que a fera a minha frente não estava disposta a me dar essa cortesia. Pelo visto, somente atacar o Triângulo da Morte não bastaria para derrubar a criatura. Não, eu precisava bolar algum plano. Minha cabeça chamuscava. De início fiz o que deu na telha, é claro que isso não me levaria a lugar nenhum se seguisse assim, mas eu também sabia que uma vaga ideia já estava se estruturando na minha cabeça. — afinal de contas, foi para esse tipo de situação que o professor Tobias me treinou.

Então, soube o que precisava fazer.

Primeiro, avancei golpeando seu tornozelo esquerdo, fazendo a criatura vacilar. Aproveitei o momento para fincar o saxo em seu joelho e assim impossibilitar que andasse. A lâmina prendeu-se nas juntas e não consegui puxá-la de volta. Enquanto eu tentava puxar o cabo, a besta desferiu-me um soco que acertou em cheio meu outro braço. Gritei, mas tive que ser rápido, me levantei, puxei uma adaga das costas e arremessei-a contra seu rosto. Não acertei. Xinguei algum palavrão. A fera tentou me dar outro soco, me esquivei para trás e fugi. Joguei outra adaga. Errei novamente. O monstro acertou-me outro soco, gritei ofegante. Tentei novamente jogar a adaga, mas ela escorregou de minhas mãos por conta do suor. Enquanto isso a fera atacou-me na barriga. Caí de novo no chão, não consegui mais me levantar. Meu rosto estava ensopado de suor.

O monstro ainda grunhia com o saxo preso no joelho. Ele urrou de raiva, arrancou e jogou a arma para longe. Me esforcei para levantar. Respirei fundo, sequei o suor de minha mão na roupa, peguei uma adaga e estiquei o braço bom. Ali me veio a imagem da goiabeira e de como parti a fruta com perfeição. Respirei fundo e me concentrei. Repeti os mesmos passos, então joguei a lâmina. Acertei-o em seu olho direito. A criatura bradou tão alto que meus ouvidos arderam. Não demorei e joguei outra adaga que acertou seu outro olho. Comemorei cerrando o punho e meu corpo fatigado se manifestou para me lembrar que eu não estava tão bem assim pra ficar celebrando.

Tive alguns segundo para respirar e me recompor antes de voltar a luta. A criatura estava cega, não tinha mais como me acertar. Fiquei embasbacado quando vi as adagas caindo de seus olhos e eles se regenerando. Não era possível! Respirei fundo e engoli o espanto. De qualquer forma precisava pensar com frieza. Não era hora de ficar nervoso. Não! Qual a primeira coisa que poderia fazer, qual? Aproveitando a distância que tinha tomado da besta, corri capengando até Nestor. No caminho, peguei meu saxo de volta. Vi que o garoto também estava consideravelmente longe de seu barbarian, suponho que fugia dele.

 — Estamos fritos, com certeza. — Nestor tremia tanto na voz quanto no corpo todo.

— Relaxa, vamos vencer essa. — apertei os dentes — Nossos professores não nos deixariam participar desse exame se não soubessem que podemos vencer. Quem foi seu professor, Nestor? — quem ligava quem foi o professor dele? O garoto só precisava ficar calmo.

 — Foi o senhor Costa. Ele não está aqui no exame como inspetor.

 — Você acha que ele permitiria que você participasse se soubesse que não poderia passar? — curvei meu corpo em posição de ataque.

 — Não, acho que não. — Nestor fez o mesmo.

 — Então! — pus a mão esquerda no bolso, retirei a libra com o rosto da rainha Victoria. Apertei-a com minhas emoções, a passei para a outra mão, a que segurava o saxo. A faca mantinha-se apontada para a criatura. — Vamos acabar com eles logo e voltar para comer uma peixada que eu tô morrendo de fome!  — corri até o monstro.

Desviei do primeiro ataque dele. Raspei a faca em sua barriga, depois a enfiei no canto direito. Suas feridas se regeneraram rápido. Não daria certo aquele tipo de ataque. Tomei distância novamente antes que fosse acertado. Se tomasse outro golpe daquele braço gigantesco, sairia de lá mais do que só com algumas contusões. Olhei para o lado. Não consegui ver Nestor, ele deveria estar invisível. Não demorou e deu para perceber que ele levou um golpe do barbarian, bem no estômago, já que seu vômito saiu amarelado no ar. Ele foi arremessado longe e sua invisibilidade sumiu. Presumi que a besta conseguiu sentir seu cheiro, por causa do focinho monstruoso que tinha.

O monstro que eu lutava chegou mais perto. Desviei de seus ataques, mas não encontrei nenhuma abertura para dar uma boa investida. Demorei para me dar conta que estava retraindo meus passos para trás. No final, acabei esbarrando com Nestor novamente. O garoto parecia acabado. Seus cabelos estavam todos chacoalhados, os olhos angustiados em vermelho e a respiração não poderia estar mais ofegante. Ele caiu de joelhos no chão. Fraco e trêmulo, ameaçou levantar a mão. O repreendi:

 — Então é isso? Chegou até aqui para jogar tudo para o alto, imbecil? Vai voltar com cara de idiota para sua família?

 — Eu tô cagando para minha família! — ele chorou — Só não quero morrer.

 Minha pena por ele sumiu. Senti desprezo.

 — Tudo bem então... Patético. — dei de costas e corri para atacar meu barbarian na abertura que tinha acabado de achar.

Consegui acertá-lo pela primeira vez no pescoço. O corte foi mais profundo e o monstro pareceu mais incomodado com ele. Além de ter notado uma coisa mais interessante ainda. Virei o rosto para trás e vi o garoto. Ele estava de pé. Aparentemente não desistiu. Corri até ele novamente. O olhei de canto. — Vamos vencê-los juntos, eu vou te ajudar, é uma promessa! — eu disse.

 — Me ajudar? Que eu me lembre não podemos interferir na luta do outro, ou nós dois seremos desclassificados.

 — Sim, eu sei. — pensei mais um pouco antes de prosseguir. Por um instante, senti medo de estar errado... — Mas, depois de falar isso, o inspetor mencionou que cada um deve lutar com seu próprio barbarian.

 — E o que tem a ver?

 — Eu não tenho certeza, mas, e se pudermos nos ajudar de outra forma, sem ser lutando diretamente com o barbarian do outro? No final das contas, eu acho que o objetivo do teste, seja exatamente para isso.

 — O quê? — Nestor arregalou os olhos.

 — A primeira coisa que a senhora Rhodes me disse, quando cheguei na comuna, é que éramos uma família. — O monstro se aproximou e nos atacou. Desviamos para a esquerda e nos escondemos entre algumas árvores. — Não faz sentido nós da comuna sermos uma família se não pudermos nos ajudar. — concluí.

 Ele pensou em silêncio.

 — Você acha que...

 — Eu não tenho certeza. Mas eu lembro que no exame final do meu treinamento, depois que consegui passar cortando a goiaba no meio, meu professor Tobias disse que: “seguir o caminho da justiça e fazer a coisa certa sempre estará acima de tudo. Mas não significa que não posso encontrar outros meios de atingir meus objetivos, meios que até podem parecer questionáveis, mas que não estão errados. Nesses casos, o importante é atingir o objetivo.” — encarei os olhos de Nestor. — nosso objetivo é passar. E, pelo que sei, não há nenhuma regra que impeça que eu te conte a principal fraqueza destes monstros, que acabei de descobrir. — apertamos nossas mãos. Sim, arriscaríamos essa jogada. Se eu estava errado ou não, que se dane, não daria para saber se não tentasse.

Tobias assistia-nos de longe. Apertava os olhos naquele pontinho em meio a floresta. Suas írises certamente brilhavam e ele deveria sorrir. E não, eu não precisava vê-lo para ter certeza disso.

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