Dois
Óbvio que ficaria feliz em vê-lo. Meu tio George era a única artilharia que dispunha contra as investidas de Anthony. Não é a toa que ao abrir a porta, prendia-se em seu rosto, olhos tão cheios de indignação. Olhos inconformados. Olhos que não adimitiriam uma bagunça como essa.
— Geraldino contou-me tudo. Foi Anthony que fez isso com você, certo? — concordei com a cabeça — Venha, levante-se. — assim eu fiz e corri para acompanhá-lo, que já andava a muitos passos de distância.
Certamente a alegria de Anthony logo se desvaneceria. Nem ele nem ninguém esperava o retorno de Seu George, o único homem na Terra em que aquele demônio tinha temor. Já eu, bem, corria e sorria de satisfação em já ter uma certa ideia do que estava para acontecer.
Não ouvi o que eles conversaram no escritório. Seu George era um homem discreto e cheio de honra, não humilharia sujeito algum em público, independente da situação – por mais que eu discordasse dessa atitude e desejasse que Anthony fosse esculachado na frente de todo mundo, até dos empregados da casa. De todo modo, só de ver seu rosto de batata estragada, ao sair da casa sem olhar para ninguém, já foi um presente em tanto.
Por fim, mandou que me chamassem.
— Peço desculpas pela maneira como meu filho lhe tratou, Franz. Saber que algo tão abominável quanto isso, aconteceu, me entristece profundamente.
— Por favor senhor, não precisa ficar triste. Até porque o senhor não tem culpa alguma.
— Não, Anthony foi criado como um garoto mimado e orgulhoso... Deveria ter corrigido isso há muito tempo. É minha culpa sim o que acontece com você, rapaz. — ele suspirou. — Pedi que Griselda preparasse-lhe um banho quente. Você está em péssimo estado, meu amigo. — ele pôs a mão em meu ombro, seu olhar era exausto como um burro depois de andar quilômetros. — Não vou permitir que isso volte acontecer.
Algo assim, me deixava com ainda mais repulsa de Anthony. Eu mesmo já me sentia péssimo em preocupar meu tio deste modo, por que então o filho dele simplesmente insistia em decepcioná-lo? Eu disse a Mirian, em ironia, que estava enlouquecendo nesses dois anos que se passaram. Para falar a verdade, só realmente não cheguei nesse estado por conta da proteção que podia contar do meu tio George. É claro que na maioria das vezes não lhe dizia metade do que Anthony fazia comigo. Meu tio não andava com o coração lá muito bom, ele era formado em medicina e me disse certa vez que sua saúde estava bem frágil para um homem daquela idade. Eu me sentiria mal se, por conta de algo que dissesse, alguma coisa acontecesse com ele.
Ao anoitecer, no horário costumeiro, o jantar fora servido. Ali, de trás da cabeceira, me posicionava de pé, observando todos comendo. Após isso, finalmente, poderia me juntar a mesa. Havia me esquecido que desta vez, meu tio estava lá.
— O quê está fazendo de pé, rapaz? Sente-se, vamos!
E assim, me pus no acento ao lado de Natanael, mas de frente a Anthony, que me entregou um olhar vingativo. Mas não necessariamente precisava ficar ali, olhando para o rosto morto dele, eu poderia levantar os olhos e vislumbrar o saxo de gerações. O jantar parecia um enterro. Tio George vez ou outra tentava puxar assunto, falava de sua estadia no Rio e a vida na corte. Ele mal parava em casa, contava-se nos dedos as vezes do ano em que ele tinha a oportunidade de deitar em sua cama. Por isso assunto é o que não deveria faltar. Mas faltou, e todos ali sentiram o constrangimento invadir o estômago como uma comida que não pegou muito bem. Ao fim, cada um se retirou sem muita cerimônia.
Foi difícil dormir naquela noite, mais porque sabia que uma hora meu tio tomaria a estrada de volta ao Rio. A insegurança do que Anthony faria para se vingar me açoitava. Talvez me jogasse de volta naquele quarto horripilante por mais alguns dias. Aqueles foram os dois dias mais longos de minha vida, se ele decidisse me prender por mais tempo do que isso, não sei se aguentaria. E, logo, escutei um burburinho vindo dos outros cômodos da casa. Abri a porta que dava de frente ao corredor. A luz das lamparinas estavam acesas, escutei mais burburinho. Segui para a sala de estar. Meu tio se encontrava de frente a porta que dava para a saída da casa, com Anthony a sua direita. Ali, do outro lado, com os pés ainda no tapete de entrada, pude ver dois homens intrigantes.
— Desculpe mesmo incomodá-lo tão tarde, senhor. – disse um dos homens — Mas o senhor entende, né? — esse era alto, bem alto mesmo, tipo, mais até que Anthony. Deveria ter a mesma idade que ele, aliás. Pelas roupas formais, seria alguma autoridade? Talvez não, estava tão constrangido de estar ali que não parecia profissional.
Meu tio mesmo sentiu aquele constrangimento todo e não tardou em responder, acalmando-o com as mãos.
— Não precisa se justificar, senhor. Está muito frio aí fora, gostaria de entrar, por gentileza?
E logo, escutei meu nome. Aproximei-me de meu tio e enfim, sua ordem veio.
— Poderia, por gentileza, preparar um chá de cidreira para esses senhores? Acredito que Griselda e Damásia estejam dormindo — se referindo às criadas —, não gostaria de incomodá-las.
— Pai — se intrometeu Anthony. — Não precisa se humilhar para pedir alguma coisa para ele, também.
— Não estou me humilhando. — o encarou com repreensão e, por fim, virou o rosto para mim. — Faria esse favor, rapaz?
Eu não tardei a preparar, mas confesso que a impaciência me coçou a nuca por não conseguir escutar o que diziam, lá da cozinha. Mirian disse-me certa vez que uma fofoca contada pela metade tem poder de matar o fofoqueiro, finalmente isso fez sentido para mim. Acho que as pessoas me entendem, dois homens sombrios batem na sua casa no meio da noite e parecem ansiosos com alguma coisa. Quem não odiaria ficar lá fazendo chá numa hora dessas em vez de ficar na sala escutando o que aconteceu? Mas enfim, o chá já estava pronto e eu anioso para aproveitar o momento de serví-los e escutar cada detalhe do que diziam, aproveitando também para os observar bem e julgá-los sem pudor algum. O maior privilégio de alguém que serve chá, sem dúvida, é a possibilidade de bisbilhotar a pessoa mais de perto. Nenhum dos dois possuíam a face de alguém suspeito, misterioso, que pudesse nos causar algum mau como um assassino em série daquelas histórias de terror que adorava ler. Na verdade, a expressão que prendia-se nos olhos não poderia ser mais normal. Quando digo normal, quero dizer, de fato estavam constrangidos de estarem ali naquela hora, algo que um assassino em série não estaria. Não que eu fosse um mestre de analisar as pessoas também.
O homem mais alto e, provavelmente o mais velho, vestia um sobretudo preto largo com gola alta e, por baixo, uma camisa branca e gravata estreita. Seus cabelos pretos curtinhos escondiam-se por baixo da cartola. Era magro como uma taquara. Ele deu um sorriso curto, respeitoso, agradecendo-me pelo chá, soprou e aqueceu a garganta. Não deveria ser rico ou nobre, não tinha modos afinal.
Por fim, servi ao segundo homem. Rapaz, melhor dizendo. Sim, ele deveria ter a minha idade, mas com uma aparência bem mais atípica. Nada relacionado às vestimentas, vestia quase como outro homem. A princípio já havia notado seu cabelo vermelho de fogo quando estava lá na porta. Meio inusitado. Já li histórias, deveria ser escocês ou algo assim. Se fosse verdade, ao menos teríamos algo incomum, descendíamos da Britânia. Mas, o que realmente me chocou, quando me aproximei para derramar o chá em sua xícara, foi encarar seus olhos. As írises eram vermelhas como a pedra de jaspe. Nunca, sequer havia imaginado alguém com tal peculiaridade. Não senti medo ou repulsa, como provavelmente minha tia sentiria, aposto que alegaria que ele era amaldiçoado. Na verdade, tudo o que me veio, foi ainda mais curiosidade. O rapaz sorriu com os longos segundos que fiquei ali, analisando seus olhos. Eu, sem graça, me retirei de perto em silêncio.
— Acha que ele seria uma ameaça para nós? — meu tio voltou a questioná-los, após minha interrupção com o chá.
— É por isso que estamos aqui, para não permitir que isso aconteça. — a princípio fiquei mais perdido que uma galinha bêbada. Mas não demorou muito até perceber o que acontecia. Em resumo, aqueles homens eram detetives a mando da corte imperial e estavam lá porque corriam atrás de um traidor de guerra antigo, que já estava sendo procurado há muito tempo. Surgiu boatos na cidade que o homem encontrou nas terras de meu pai, um ótimo lugar para se esconder. O pior é que esse homem já havia sujado as mãos com sangue. Tudo para se proteger. Por isso, meu tio se perguntava se ele não seria uma ameaça.
Ao fim, tio George permitiu que vigiassem, naquela noite, toda a fazenda. Podia vê-los da janela de meu quarto. O sono parecia ter dado uma voltinha na praça e não vinha, então, meu entretenimento era assistí-los de frente a fogueira. Fiquei com pena de terem que aguentar aquela friaca lá fora. Devo ter ficado lá por uns trinta ou quarenta minutos e então, me veio a ideia: “Por que não ir lá e conversar com eles?” Pensando de modo racional, não seria tão inteligente assim, mas eu sabia que o sono não viria tão cedo, e não tinha nada a perder além de meu tédio.
Cruzei o corredor. Antes de chegar lá fora, na sala esbarrei com Anthony. Ele deveria estar os observando também, porém, naquela altura, havia acabado de desistir e se virado para dormir. Mas teve o prazer de cruzar o caminho comigo.
— O quê está fazendo acordado essa hora, gambá?
Olhei para baixo e sussurrei.
— Vim me servir de água com açúcar. Não consigo dormir.
Um silêncio nos envolveu. Ao mesmo tempo, o sujeito ficou lá, me encarando num tempo que parecia durar horas. Por um instante tive a impressão de que ele contornou meu caminho e estava indo embora, ao menos até sentir meu colarinho ser agarrado com brutalidade. Não que fosse surpresa para mim, seria estranho ele me deixar lá sem fazer nada.
— Você foi muito insolente em se vitimizar para meu pai.
— Não me julgue por sua estupidez, primo.
Ele apertou os olhos e, logo soltou a gola inesperadamente.
— Tem razão. — parecia ter se recomposto. Então, primeiro veio o estalo. Depois, o ardor no rosto. Ele não disse nada mais, se virou e voltou ao quarto. Fiquei ali, paralisado por minutos, tentando me recompor. Massageei a bochecha queimada e tentei engolir a dor da bofetada.
Finalmente, foi a minha vez de me virar e ir até a porta. O vento frio me arrepiou logo no meu primeiro passo no jardim. Aqueles sujeitos pareciam serenos. O rapaz de cabelos flamejantes enfiava um galho no fogo, com os olhos perdidos na cor ardente das chamas, despreocupado com a vida. O magricelo mais velho sentava-se numa pedra, acho que meditava, angustiado com alguma coisa. Em poucos passos me viram e o garoto acenou.
— Não está com sono? — disse ele, quando me aproximei. Neguei com a cabeça e sentei-me numa das pedras ali ao lado. Esfreguei as mãos, deixei a fumaça me aquecer, depois vi seus rostos brilharem nas chamas, pareciam imponentes. Respirei fundo um pouco mais e tomei coragem para iniciar o assunto.
— Vocês trabalham para o imperador?
O mais velho assentiu.
— É menos emocionante do que parece. — sorriu.
— Me pai já me contou sobre ele — disse, apreciando a luz ardente, um tanto nostálgico. No geral, não gostava muito dessa ideia de nobreza e reis. Mesmo com treze anos, já questionava a injustiça que era um homem possuir o poder máximo de uma nação, somente por ter sido parido da mulher do último rei. Sempre achei que a maior parte desses reis e nobres, mesmos os que se diziam constitucionais, nada mais eram do que tiranos enrustidos que pouco se lixavam para seu povo; se importavam somente com seu seus status e sua casa patética, torravam-se do dinheiro dos impostos e entravam em guerras para exibir sua soberba. Já seus súditos, esses que se danassem. — Não duvidava que, em algum momento, o povo de algum desses reinos se revoltassem como aconteceu na França, e sequestrassem seu rei e toda sua família, talvez até mesmo a empregada e o cozinheiro deles, a fim de enchê-los de bala e os furarem com baioneta. — Meu pai sabia dessa minha aversão pela monarquia e conhecia a inveja que tinha de regimes republicanos, como os Estados Unidos. Mas, ele insistia em me contar que Pedro era diferente. Não era um monarca como os outros pelo mundo. Não, ele tinha honra e um forte senso de justiça. Tinha respeito e empatia por seus súditos, como a Rainha Victória, ou mesmo como Ælfred das histórias de nossa família. Eu duvidava, óbvio. É engraçado como descobri o quão realmente ele estava certo. Mas isso não é algo que deva ser tratado agora.
— Entendi, se ele conheceu o imperador então deve ser um sujeito bem viajado né?! E ele tá aonde agora?
Suspirei fumaça.
— Provavelmente junto com uma pilha de corpos debaixo de um buraco cheio de lama. — o vi ficar aflito. Tentei o acalmar. — Não se preocupe, isso não é mais tão difícil para mim quanto antes. Meu pai era um homem que daria a vida pelo o que acreditava. Foi o que me ensinou desde pequeno. E ele morreu desta forma.
Depois, o garoto de olhos escarlates levou o rosto de volta até o fogo, sem parar de remecher aquele galho.
— Aquele rapaz que deu um tapa na sua cara, é seu irmão? — ele deveria ter visto pela janela da sala, não estávamos tão longe da casa, afinal.
— Áquila! — O mais velho o repreendeu.
— Desculpa se pareci inconveniente.
— Ele é meu primo.
— Primo? Então vive com a família de seu tio? — concordei com a cabeça. — Deve ser o indesejado então.
— Áquila! — dessa vez a repreensão veio com um ênfase maior.
Ele não o respondeu, mas voltou a comentar:
— Por que deixa ele bater em você desse jeito? — seu rosto estava sério, chamuscante como o fogo.
Virei o rosto. Fechei os olhos e deixei o silêncio caminhar com tranquilidade entre nós. Quando os abri novamente, prendi-os ao chão.
— Não posso fazer nada, tenho medo que ele me faça algo pior do que só bater — suspirei fundo —, sei lá, como me jogar no quarto escuro. — meu tom se abaixou, com o canto de um pardal. Não esperava que ele entendesse o que me referia com isso. De qualquer forma, esse pelo visto, não foi o motivo que seguiu sua atenção.
— Medo? — sussurrou o rapaz. — Isso te dá muito medo? — assenti com a cabeça.
Eles se entreolharam, mas nada disseram.
— Ele fez isso com você? — o garoto julgava as marcas que Anthony havia me deixado há dois dias. Concordei novamente com a cabeça. Finalmente, o rapaz desviou novamente o rosto para o mais velho. — Ele poderia vir com a gente! — apontou para mim — É perfeito para o que fazemos!
— Como? — se espantou. — Não é você quem decide isso. — e uma discussão se iniciou. Fiquei lá, assistindo tudo. Naquele pouco tempo em que nos encontramos pela primeira vez, pude vez a amizade forte que tinham e, de cara, lembrei-me de uma expressão que meu pai utilizava para uma união tão intensa; de fato, eram “companheiros de batalha.” Embora ali brigassem como dois filhotes de cachorro.
Eu sorri, é claro. Um sorriso tímido, singelo e que eles perceberam. A briga e os xingamentos infantis cessaram assim que eles notaram. Até mesmo chegaram a caçoar: “Pelo visto a estátua de pedra também consegue levantar as bochechas?” Sorri mais. Confesso que até gargalhei um pouquinho. Fazia tempo que não ria deste jeito. Depois virei o rosto de volta para a casa. O sorriso se desmanchou. Um vulto escuro me observava. Apertei os olhos. Era Anthony.
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