Dezessete
Desde o início da história humana, as pessoas escolhem reis para si. Eu conheço bem as histórias dos reis. Meu pai trazia dúzias de livros em suas viagens pela Europa, por isso decorei o nome e a história de cada uma das casas que hoje ditam o destino do mundo. Sei sobre os famosos Habsburgos, os impassíveis Romanovs, ou os intrépidos Orleans. Das grandes casas italianas como os Saboias, ou as casas que comandavam as federações alemãs, os Saxe-coburgos. Cada casa, com seu governante. Não que isso de algum modo seja-me útil.
A casa de Pedro não era uma das mais importantes do mundo, contudo, isso não mudava o fato de que os Braganças faziam parte da elite, eram uma casa real e, por este simples e parvo fato, Pedro era nosso imperador. Nós não o escolhemos como nosso imperador, mas mesmo assim ele vive do dinheiro dos nossos impostos comendo, bebendo, viajando e dando ordens inúteis. Ele não é um ditador, óbvio, se fosse já teriam o decapitado nessa altura. De alguma forma que não consigo imaginar como, temos um parlamento democrático nesse país. No entanto, não havia motivos para continuar alimentando uma estátua inútil que era a figura de um imperador. – Ao menos era assim que a mente de um garoto revolucionário de treze anos pensava.
Meu pai dizia que Pedro era diferente e eu me coçava para entender o porquê. Reis só querem fazer o seu nome, expandir seu território, casar suas filhas com príncipes de outras nações e cuidar dos seus próprios interesses. Minha ideia de mundo ideal na época, era a liberdade, a república e a imagem dos Estados Unidos da América. Eles não carregavam nas costas um líder velho e manco filho de outro líder velho e manco, mas sim escolhiam para si o seu líder, nem que fosse para escolher um líder velho e manco também. Pelo menos eles o escolhiam.
E foi exatamente nisso que fiquei refletindo durante toda a viagem.
Era sábado, as ruas estavam vazias, as árvores forradas de pássaros e a estrada de folhas. No rumo que tomávamos, ao passo que meus companheiros embriagavam-se da beleza das flores de verão e de conversas mais agradáveis, como por exemplo, ponderar a existência de El Dourado, eu continuei lá, perdido em devaneios profundos sobre política e a sociedade. Odiava pensar em política porque sempre me irritava. Odiava os políticos atuais, mas admirava aqueles que já morreram. Eu só tinha treze anos.
Então a carruagem parou e entregou nossa chegada.
Pus o primeiro pé para fora. Não me atentei ao jardim ou a decoração externa, já que estávamos de frente a um largo e gigantesco palácio rosado. Era gostoso de se olhar. O palácio tinha inúmeras janelas que se estendiam horizontalmente, divididas em dois andares no centro e apenas um nas laterais. Era imponente e digno de um imperador. Uma escadaria convidativa levava à entrada principal. Acima dela, um mezanino sustentado por vigas chamava a atenção. Eu não fui o único a ficar atônito. Vi o rosto de Haaka e Piatã paralisados como se os dois parecessem aquelas estátuas de bronze romanas. Escutei Rui chamá-los de caipiras. Haaka o encarou raivoso. Subimos as escadas e deslizei os dedos por uma das vigas frias. Um senhor idoso nos recebeu logo que chegamos na porta de entrada.
— Vocês devem ser os estudantes que vossa majestade irá se encontrar, correto? — estudantes? Era algum disfarce? Tobias o cumprimentou por nós e entramos.
Ao adentrar o salão, notei que ele não era tão maior quanto o da casa de minha família, mas ainda assim, possuía um charme que o distinguia. A atenção foi atraída para tudo, do chão ao teto. O piso moderno, em preto e branco, fez-me sentir como se estivesse dentro de um jogo de xadrez por um momento. Haviam portas em todas as direções, e sem um guia nos perderíamos ali, com certeza. Sua madeira era encerada e bem trabalhada, até senti vontade de tocá-la. Seu topo era em arco e dava sofisticação a todo o ambiente. Então isso que era um palácio?
— Por aqui. – escutei novamente a voz trêmula do senhorzinho corcunda que nos conduzia. Nós entramos por uma das portas a direita do salão.
Fomos recebidos por um salão menor, só que bem mais aconchegante e convidativo. O chão era de tacos de madeira mais clara e a parede estava forrada por um papel de parede creme. Vi quadros de natureza morta e de pessoas. Reconheci o rei Dom João VI num deles. Além disso, havia mesinhas com vasos em cima, ao longo de toda a sala. Um lustre com uma luz amarelada e um tapete ao centro. Tinham cadeiras ao redor do tapete, não tive vontade de contar quantas, eram muitas. Com tantas cadeiras ali, nos entreolhamos na dúvida se deveríamos sentar.
— Ainda não — Tobias percebeu a inquietação — Só depois de vossa majestade se sentar.
Em pouco tempo, escutei o som da porta de madeira sendo aberta atrás de mim. Virei o pescoço, um homem carrancudo apareceu. Era um idoso assustador. Um bigode branco farto e olhos pequenos, de serpente. Me lembrei do rosto soturno do Juiz Cláudio por um instante. Não cogitei que fosse Pedro, não era nem um pouco parecido com as descrições que já tinha escutado, ou com o rosto que estava no dinheiro. Ele também se vestia de roupas militares. Será que o grandioso Pedro não teve tempo de nos ver e mandou um senhorzinho qualquer para nos receber?
— Ele é o Primeiro Ministro, o Duque de Caxias. — Tobias sussurrou para nós.
Mas o que raios o DUQUE DE CAXIAS fazia aqui?! Sim, eu já tinha escutado muito esse nome. O senhor Luiz Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, o Veterano da Independência, o herói da Guerra do Paraguai, o Marechal de Ferro. O então, maior herói vivo da nação. As horas que meu pai dispensou contando histórias épicas – e um tanto místicas – sobre ele, pesavam na minha cabeça. Depois das lendas milenares da casa Silvertoch e do próprio Pedro, o Duque de Caxias era a figura que meu pai mais me falava. Me disse certa vez que os dois já lutaram juntos. Até duvido que alguém como ele se lembre de meu pai. Ele cumprimentou Tobias e o professor fez o mesmo, cumprimentando-o em nossos nomes também. Duque de Caxias parecia um homem quieto, de poucas palavras. Ele se posicionou de trás de uma das cadeiras e aguardou a chegada do imperador em seu silêncio, com uma presença abissal.
Pedro não demorou para chegar. Ele veio sozinho. Estranhei sua cabeça desnuda, imaginei que carregaria uma coroa, como qualquer rei. Ele foi até o nosso professor e o cumprimentou. Tobias o reverenciou e nós fizemos o mesmo. Então, um a um o imperador foi até nós e estendeu sua mão em cumprimento. Gesto peculiar. A cada cumprimento, cada um de nós apresentava-se pelo nome. Na minha vez, disse somente o primeiro nome. Eu sabia que meu tio trabalhava para ele e não seria muito legal se o imperador desconfiasse de minhas origens tão cedo.
O imperador sentou-se na cadeira mais a frente de todas e nós sentamos nas demais. Sem demora, escutei sua voz com um pouco mais de nitidez, considero até que a escutei pela primeira vez.
— Espero que estejam todos confortáveis. É uma egrégia honra recebê-los. — olhei em volta, todos o assistiam com espanto. Não entendia o motivo de tanta comoção, no final ele era só um homem que inventaram de chamar de rei. Pedro cruzou a perna e relaxou o corpo na cadeira — Como vocês já devem saber, todo ano, recebo aqui na minha casa, os novos integrantes da Comuna de Cartago — O professor Tobias contou-me sobre isso. Em comunas cardinais, os novos integrantes devem ser apresentados ao chefe de governo de sua nação. É um protocolo e deveria ser algo tedioso para um rei. — e a cada ano que passa, o mesmo sentimento me invade. Fico imensamente aflito. Aflito por ver tantas crianças se arriscando — ele me encarou por um instante. Senti que meu tapa olho chamou sua atenção. Fugi o rosto para outra direção, ansioso. —, lutando contra bestas selvagens, muitas morrendo. — e de repente, a imagem da espada de Salieri cavando-se em Nestor roubou meus pensamentos. Fiquei com raiva. O que aquele velho entendia sobre barbarians, por acaso? Ele nunca deve ter visto um antes. — a dor de perder alguém para aqueles demônios é indescritível. Principalmente para um pai. — ele desviou o rosto para o chão. O que ele queria dizer? Engoli em seco. Minha consciência começou a ficar pesada. — Enfrentar esses monstros, é um desafio que vocês aceitaram carregar, crianças. E, mesmo eu sendo contra expor vocês desta forma, serei obrigado a aceitar, visto que são a nossa última esperança contra esse turbilhão de bestas assassinas que tem tirado nossa paz e tem crescido cada vez mais. Eu os aceito como integrantes da Comuna de Cartago, sendo minha representação direta nesta nação na luta contra as criaturas que nos assolam.
Uma pausa abraçou o ambiente e, por fim, escutei a voz assustadora do Marechal de Ferro, o Duque de Caxias.
— Eu, Luíz Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, Presidente do Conselho de Ministros, representando o parlamento e a democracia desta nação, os aceito como integrantes oficiais da Comuna de Cartago, sendo a representação do parlamento e do povo na luta contra as criaturas que nos assolam. E que Deus esteja do vosso lado.
— O desafio daqui para frente não será fácil. — novamente escutei a voz envelhecida de Pedro. Era uma voz eloquente e fluida como a correnteza de um rio — Mas se tiverem em mente a vontade inexpugnável de vencer seus medos e a perseverança para isso, seus objetivos nesta comuna serão alcançados. Mesmo que seja um pálio de luz desdobrado sob a larga amplidão destes céus, posso ver um futuro azul para nossa nação nas mãos de tão fortes guerreiros.
Foi só ali que consegui perceber o que Áquila tinha dito sobre Pedro. Desde o começo não me importei muito em dedicar minha atenção a ele, como os outros fizeram, mas sua aura percorreu minha íris no breve instante que nossos olhares se encontraram. Foi rápido, foi sutil, mas consegui perceber. CANSAÇO. Atrás de sua presença nobre e intensa, via-se olhos de um homem cansado da vida, sem forças e tomado por estafa. Eu sei disso, pois meu tio tinha o mesmo olhar, por mais que eu odiasse sequer pensar nele. De fato, Pedro era o homem que achava que a função de ser rei era um fardo. Mas por quê? Que tipo de homem não queria ser rei? Ser admirado, adorado, respeitado e bajulado pelos outros? Andar vestido em ouro e ser a representação máxima de seu país? Quanto mais um imperador?! Um mistério, um verdadeiro e tentador mistério na mente de uma criança de treze anos. Um mistério que precisava ser revelado. Pedro levantou-se da cadeira, levando todos ali a fazerem o mesmo.
Finalmente, ele concluiu:
Agradeço a vossa companhia, cavalheiros. — depois olhou para Núbia e Elizabeth —, e damas.
— Nós é quem agradecemos — o professor Tobias respondeu —, vossa majestade e excelentíssimo senhor primeiro ministro.
O imperador voltou a dizer
— Bem, decerto que não é um adeus, já que voltar-nos-emos a nos encontrar daqui duas semanas, no Congresso das Comunas, correto? Então é um até logo. — Pedro sorriu fraco. Devo admitir, ele não precisava se esforçar muito para ser um senhor carismático. Tinha uma longa barba branca, além de uma feição serena e despretenciosa. Pedro lembrava um avô, um avô que todo mundo tinha. O professor Tobias apertou sua mão e, junto dele, o reverenciamos em seguida. Depois saímos.
No final, aquele encontro foi mais singular do que eu esperava. Todas as minhas conclusões sobre a monarquia estavam em sérios debates na minha mente. Por que diabos Pedro era tão diferente dos monarcas que lia nos livros ou escutava por aí? O que fazia dele assim? Me despedi do palácio cor-de-rosa com um elefante pesando a consciência. Eu sabia que estava sendo um hipócrita, como Áquila mesmo disse. Afinal, não adiantava nada prezar pelo respeito aos mais velhos se não respeitava a figura máxima da nação. O senhor imperador era um homem insondável, mas, que talvez pudesse-me ser mais útil do que imaginava. Talvez eu não precisasse ser alguém tão rico e importante para solicitar sua ajuda, se ele fosse realmente como me era mostrado.
— Professor, o que seria esse Congresso das Comunas que o Imperador mencionou? — aproveitei para perguntar, ao passo que a carroça esmigalhava os pedregulhos que se opunham a nossa frente na estrada de volta a capital.
— É uma palestra quinquenal que reúne todas as comunas do país para relembrar a importância e os princípios da nossa luta. É um evento muito importante para preservar nosso status como comuna cardinal do Império, já que nossos feitos serão declarados publicamente a todas as comunas da nação.
— Preservar nosso status? Espera, então nós podemos deixar de ser uma comuna cardinal? — dessa vez Núbia perguntou.
— Sim. Existem vários motivos que podem nos fazer perder esse status e um deles é se nossos números não forem tão satisfatórios quanto os das outras comunas. Nesse caso, o imperador e o parlamento podem decidir escolher outra comuna para representá-los oficialmente.
————||————
O caminho de volta parecia ter sido mais curto. Chegamos no Rio na metade do dia. Estávamos todos secos de fome como cabritos no deserto, por isso, antes de nos reunirmos novamente para o treinamento de iniciação, fomos dispensados para o almoço. Eu pretendia pedir algum lanche na cafeteria da comuna, um chá ou uma taça de vinho, no entanto, Tobias me convidou para almoçar em um restaurante.
— Você adora peixe, então vamos comer peixe. — foi o que ele disse e eu não pude recusar.
O restaurante era a beira mar. Nos sentamos próximos a janela. A visão das águas surrando as rochas enquanto aguardávamos nosso prato ser servido era fantástica. Pedi um filé de tilápia com um molho que nunca tinha ouvido falar e Tobias uma sopa de tucunaré. Os pratos foram devorados em instantes como se nós fôssemos dois porcos. Tobias pagou a conta e ficamos descansando por lá mais um pouco. Tomamos o suco que ainda não havíamos terminado enquanto isso.
— Desde que você passou no exame de admissão, eu não consegui te presentear direito.
— Me presentear?
— Já faz tempo, quando eu tinha a sua idade e passei no exame, o meu professor me presenteou, me levando para fazer a coisa que eu mais adorava fazer, pescar. Eu queria fazer o mesmo com você — ele parou e pensou —, mas acho que com o sol quente que tá fazendo hoje não tem condições de pescarmos.
— Eu agradeço, professor.
O professor então me estendeu algo de suas mãos. Uma moeda prateada, com o rosto do Imperador Pedro.
— Fique com isso. É o troco deste almoço. Fique como lembrança. — eu a peguei e vi melhor a face do imperador — Eu notei que você perdeu a moeda que seu pai tinha te dado. Eu sei que nada pode substituir ela, mas eu gostaria que você ficasse para guardar esse momento com você e assim, um dia, quando também tiver um aluno, puder fazer o mesmo por ele, por que não?
Sim, de fato, não era a moeda de meu pai. Mas por ser a moeda de meu professor podia trazer-lhe um significado diferente. Com certeza a guardaria com o mesmo respeito e consideração. Levei a moeda a altura do olho e a admirei mais um pouco. Admirei quem eu tanto desdenhava, a figura impertérrita de Vossa Majestade, o Imperador Pedro.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top