Capítulo IV : Uma história para Hugo

Era o meio da tarde, momento de tédio absoluto, Amora estava reclusa em seu quarto ciente de que Alícia fazia o mesmo. Ambas refletiam sobre o que ocorrera mais cedo. Pedir desculpas foi um golpe de sorte! Uma daquelas ideias repentinas, do tipo que invade a mente num estalo e que logo demonstra seu potencial genuíno de evitar mais infortúnios. Amora não tinha um grande plano, ao contrário do que procurava transparecer, ela tinha apenas pequenos momentos de boas ideias intercalados com seus impulsos nervosos.

Naquele momento, organizava um mural de fotos na parede do quarto. Nenhuma das imagens era dela mesma. Uma foto de Agnes, algumas de Pandora, uma imagem de uma cadeira com três pernas, uma abóbora sob uma mesa, uma árvore com folhas secas, os pais durante um jantar. Colava as fotos com maestria até que de repente parou, como se sentisse que algo estava prestes a acontecer, caminhou até a janela e olhou para fora.

- Oi! - Hugo gritou do outro lado da rua balançando os braços.

- Oi! - Amora gritou em resposta.

- Como sabia que eu tava aqui?

- Eu não sabia! - E riu - Mas acho que eu tenho uma boa intuição. - Respondeu ainda aos gritos.

- Excelente intuição! Eu já ia começar a jogar pedras na sua janela.

- Que bom que não fez isso, ou eu seria obrigada a jogar pedras em você! Acabamos de consertar a janela.

Hugo riu com o comentário de Amora.

- Podemos conversar? - Perguntou num tom mais ameno.

A garota fez uma cara de reprovação e preguiça, o que fez o menino insistir. Simulou um bocejo e revirou os olhos, mas como ela própria estava curiosa resolveu descer. Em poucos minutos já estava junto a Hugo.

- Como você descobriu a minha casa? - Ela perguntou assim que alcançou a calçada.

O garoto esperava primeiramente um oi, mesmo assim, respondeu sem questioná-la:

- Foi fácil, eu simplesmente perguntei pro seu Carlos. - Completou com seu habitual sorriso simpático.

- Claro. O que você quer?

Amora era bem ríspida por vezes, Hugo tentou mais uma vez ignorar o seu comportamento e prosseguir a conversa.

- Eu ouvi umas histórias sobre você...

- Histórias? Que tipo de histórias? - Interrompeu a garota aumentando o tom de voz.

- N-não. Não histórias histórias.... Uma... uma história apenas. Não é nem uma história é algo que aconteceu, ou o que dizem que aconteceu. Mas eu não sou de acreditar nas fofocas das pessoas e vim perguntar diretamente pra você.

- Ah. Você já sabe. - Comentou Amora inexpressivamente. - Ou melhor, você não sabe, ninguém sabe, porque ninguém tenta entender, então todos só sabem metade da história. Entende?

- A gente ainda tá falando sobre a mesma coisa? - Perguntou confuso.

- Sim, estamos falando sobre a grande briga desta manhã, se é o que você quer saber.

- Sim eu quero! Se quiser contar. - Confirmou deixando transparecer o interesse em sua voz.

- E se eu não quiser te falar?

Amora tinha um prazer descomunal em contrariar as pessoas.

- Terei que conviver com isso. - Respondeu Hugo fazendo pouco caso, o que provocou uma ponta de raiva na amiga. Ela daria o troco:

- Eu estava prestes a te contar a história, mas acho que você pode conviver com isso. - Ela falou antes de sair correndo para casa.

- Ei, Amora! Foi brincadeira, claro que eu quero saber. E ouvir seu lado da história, principalmente. Vamos conversar. Nós somos amigos agora, não é?

Mas já era tarde. Amora estava longe para ouvi-lo. " Ingênuo " pensava consigo.

- Ei, Hugo! - Disse novamente da janela. - Vamos conversar aqui! - Comentou apontando para o chão do próprio quarto.

- Ah, não seria mais fácil aqui.

Amora balançou a cabeça negativamente e continuou a olhar da janela. Pouco tempo depois a campainha soou.

- Amora, você tem visita! - Gritou o pai do andar de baixo.

- Jura ?! - Exclamou irônica. - E ela pode subir aqui? - Ela gritou de volta.

- Vou chamar. - Amora sabia que seu pedido seria aceito, já que ela nunca tinha visitas.

- Olá - Disse com um sorriso debochado e um tanto forçado.

O garoto não sabia o significado dos joguinhos de Amora. " Talvez esse seja o seu senso de humor. Ou ela talvez goste de prolongar a conversa para não ficar sozinha. E isso significaria que somos amigos... "

- Oi. - Hugo respondeu secamente, tinha uma expressão ligeiramente tímida.

- Não precisa ficar assim, tímido. Fique à vontade. - Falou de maneira até que cortês enquanto sentava-se em uma cadeira.

Hugo cruzou os braços e permaneceu de pé:

- Agora você pode me falar sem rodeios o que quer que você queira falar.

- Claro, mas acho melhor você se sentar. - Advertiu a garota. E pelo tom de voz sério, Hugo presumiu que era o melhor a se fazer afinal. Puxou um dos pufes do quarto para mais perto de Amora e acomodou-se acanhadamente.

Amora pegou um caderno sob uma pilha de livros, revistas e quadrinhos, ou o que parecia ser um caderno de brochura muito antigo. Na verdade, era um livro, uma antiguidade, como Hugo supôs. Sua capa marrom estava completamente empoeirada e as linhas de sua costura se desfaziam. A jovem soprou a poeira do livro, num gesto quase teatral, o que para o garoto se assemelhava muito a atitude de um daqueles personagens de filmes de aventura que passavam na televisão. Hugo pressentia que dali em diante, as coisas seriam como nos filmes de aventura.

- Bem, eu sei que tudo não está fazendo o menor sentido pra você, mas eu vou te explicar o que leva uma garota como eu a confrontar uma mulher como a Julieta. Não, eu não estou ficando louca, tenho meus fundamentos. Há mais ou menos três anos, eu encontrei esse livro, ou melhor ele me encontrou. A princípio eu li como leria qualquer outra coisa, mas foi então que eu passei a perceber algumas semelhanças entre os registros e o mundo real. Veja - Disse abrindo o volume numa página aleatória. - Caligrafia! Não é exatamente um livro, são registros, não como num diário, são contos, acho que escritos num tipo estilo ou padrão, mas não sei muito dessas coisas técnicas de literatura. Enfim, as histórias parecem ser de pessoas que já existiram, julgando o estado do livro, o que eu classificaria como: muito velho.

- Não entendo o que isso tem a ver com vocês duas... - Confessou confuso.

- Calma. Claro, que as histórias já são estranhas por si só, mas se fosse uma espécie de "documento histórico " simplesmente, eu até aceitaria. Mas não é um documento histórico se um dos personagens ainda tá vivo.

Hugo ergueu as sobrancelhas.

- E se alguém dessas histórias está vivo, esse alguém é a prova viva de que elas são reais. O que você acha? - Questionou cheia de expectativa.

- E-eu não sei o que dizer. Não sei se entendi, na verdade. Preciso de mais uns detalhes pra entender seu raciocínio... Esse livro parece ser velho demais pra que algum dos personagens esteja vivo. Isso sem a gente considerar se o conteúdo das histórias é verdadeiro ou não.

- Exatamente.

- E ele também parece ser velho demais e empoeirado demais pra ser forjado...

- Você realmente acha que eu perderia meu tempo fazendo com que isso parecesse velharia? - Inquiriu irritadiça.

- Eu jamais acharia isso. - Respondeu rapidamente o garoto.

- Ótimo! Porque o que eu te digo é verdade, eu vou provar pra você.

- E isso tem alguma relação com a tal Julieta?

- Absolutamente! Eu ter a posse do livro é um dos motivos dela me odiar tanto, é a prova de que ela mente.

- Mente sobre o que? - Perguntou o garoto com os olhos arregalados.

- Sobre tudo! Quem ela é, ou o que ela faz... A única coisa que ela não fez questão de mudar foi o nome, não sei se por orgulho ou estupidez...

- MAS QUEM É ESSA MULHER? - Hugo exclamou ansioso enquanto levantava abruptamente.

- Shhhhh- Advertiu Amora. - Eu prometi uma história não foi? Agora senta aí que eu vou ler.

O olhar de Amora transformou-se naquele momento, adquiriu um brilho estranho, próprio de quem sabe exatamente o que vai acontecer e tem o total controle da situação. Hugo, pelo contrário, era a personificação da curiosidade e do receio, que num embate lutavam para decidir quem iria se apoderar do corpo do menino.

Amora abriu o livro e como uma contadora de histórias virou-o para que seu público pudesse contemplar:

" Sinos pra avisar quem chega "

O título, escrito em vermelho e em letra cursiva, não chamara tanta a atenção de Hugo, mas, quando seus olhos se depararam com o nome Julieta, ele pensou:

" Será que essa garota estranha teria mesmo perdido seu tempo fazendo com que isso parecesse velharia? "

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