Capítulo III : Infortúnios na manhã de sol

Alícia não sabia dizer se o calor de seu corpo vinha do café que tomava ou da raiva que sentia. Esfregava as têmporas em um dos cantos da lanchonete, enquanto o vapor de sua bebida embaçava seus óculos. Ainda assim, observava os demais no recinto: a garçonete sorridente, o simpático senhor do caixa, o rapaz bonito com a jaqueta de couro concentrado em sua torrada com geleia. Ele não estaria com calor? O sol ainda brilhava do outro lado da janela. Por que sua irmã não poderia ser como eles? Mais... comedida? Seria esse o termo correto?

Julieta tinha, claro, suas peculiaridades, a própria Alícia não confiava muito nela, mas o que Amora estava fazendo era exagero. Ela sempre fora assim. Inventava cada história absurda e tentava convencer alguém. Coitada. Quando mais nova, a irmã até escutava alguns de seus contos, mas agora... Alícia temia que tais fantasias beirassem à insanidade. Não, não era louca. Estava apenas tentando chamar atenção, só isso.

Alícia reconheceu os gritos da irmã mais nova de longe. E até agora eles pareciam ecoar em sua mente. Os olhos da irmã também rondavam suas lembranças: eles não estavam apenas com raiva, estavam tristes.

O quadro era o mesmo: Amora flamejando em fúria, Julieta e sua imprevisibilidade e a gata. Aquilo tudo era por causa dela, Alícia só não sabia porquê. Não ia deixar que a irmã prosseguisse com a gritaria apenas para que pudesse compreender o motivo dela. Isso jamais. Ainda envolta por esses pensamentos, Alícia pagou o café, limpou os óculos e se preparou para deixar o lugar.

Era certo que Amora chegaria em casa antes que ela. Poderia parecer que Alícia estava lhe presenteando com certa vantagem, assim como em suas brincadeiras de criança, nas quais sempre dava à caçula passos de vantagem antes de persegui-la. A situação, agora, não dava apenas à Amora " tempo de fugir ", mas também à Alícia, tempo de pensar. Estava presenteando, portanto, a si mesma.

-Moça, moça! - Uma voz interrompeu seu raciocínio.

Quando virou, lá estava o rapaz com a jaqueta de couro.

- Oi. - Ele disse abrindo um largo sorriso. Era mesmo muito bonito.

- Oi?

- Oi! - Ele repetiu. Parecia ofegante e não sabia como corresponder à confusão da garota, de modo que ele próprio demorou um pouco até decidir como agir.

- Você esqueceu isso no caixa. - Disse estendendo-lhe um documento com sua foto. Era sua carteirinha da biblioteca. " Com essa foto horrível, ainda por cima! Que vergonha! " pensou Alícia.

- Sorte que você não foi longe, - disse olhando para trás, na direção do café - Mas acho que reconheceria você em qualquer lugar. - Completou despretensioso, mesmo assim, Alícia corou um pouco.

- Obrigada.

- Disponha! É uma pena que você tenha saído, acho que não posso te convidar pra tomar um café. É assim que funciona nos filmes, não é?

- Suponho que sim...

- Esqueci, você prefere os livros! - Disse apontando pra carteirinha. - Além do mais você tem que ir atrás da sua irmã. - Completou dando as costas e indo embora.

- Espera! Como... como você sabe? - Disse a garota com olhos incrédulos. O rapaz reagiu com um olhar vitorioso.

- Eu estava passando quando vocês estavam...hmm... discutindo? Imaginei que fossem parentes pela cor do cabelo. E foi por isso eu disse que podia te reconhecer em qualquer lugar, já era a segunda vez que eu te via. E agora, a terceira.

- Nossa... Você viu aquilo tudo?! - Perguntou passando nervosamente as mãos pelos cabelos.

- Ei. Tudo bem. Essas coisas acontecem, crianças dão trabalho. Eu sou apenas um estranho que presenciou isso, nada importante...

- Quantos estranhos não presenciaram isso também?! - Interrompeu a garota.

- Não se preocupe com o que esses estranhos vão achar de você, Alícia.

Ela por um segundo surpreendeu-se ao ouvir seu nome na boca daquele estranho, mas depois recordou-se da carteirinha. " Ele leu. Claro. "

- O senhor tem razão.

- Senhor? Ah, por favor. Eu me chamo Túlio. - Disse estendendo-lhe a mão.

- Alícia. Mas você já sabe. - Seu tom de voz soou um pouco ríspido.

- Me desculpe. - Ele sorriu sem graça.

- Não, tá tudo bem. Não se preocupe com o que essa estranha vai achar de você. - Ele riu. - Obrigada, Túlio.

- Sem problemas. - Disse enquanto Alícia se afastava e prosseguia seu caminho.

- Ei! Alícia! - Gritou quando ela já estava um pouco distante. A garota parou e virou. Ele correu ao seu encontro. Ao aproximar-se tirou a carteira do bolso e começou a revirá-la. Alícia não estava compreendendo o que acontecia.

- Aqui! - Disse estendendo um documento a ela. - É meu RG. Acho justo depois do que aconteceu.

Alícia achou muita graça. Observou a foto, ele estava diferente. O cabelo escuro estava mais curto, mas os olhos castanhos eram os mesmos. Sua letra era bem pequena e um tanto infantil. E ele não mentira, seu nome era mesmo Túlio.

- Seu nome do meio é José.

- E o seu é Morgado.

- Você leu mesmo, seu bisbilhoteiro! Por isso está deixando eu ler isso! - Exclamou balançando o documento na cara do rapaz.

- Ei! Primeiro que eu li seu nome pra saber pra quem devolver. - Disse tomando o RG - Segundo, deixei você ver isso pra não sermos mais tão estranhos um ao outro.

- E?

- E eu estou na cidade por mais algum tempo, até essas chuvas passarem.... Se você quiser, a gente pode tomar um café. Mesmo. Estarei aqui amanhã.

Alícia olhou- o intrigado.

- Pensarei a respeito. - Disse muito polidamente. Acenou, agradeceu mais uma vez pelo objeto perdido e prosseguiu seu caminho.

Andava muito tranquilamente quando por fim lembrou-se do que deveria estar fazendo. " Droga! Droga! Droga! " Amora! Havia esquecido completamente dela. Agora, a irmã já contava com vantagem demais. Esperou virar a esquina e começou a correr. Correu muito e depois se deu conta de que não havia elaborado um plano. Era uma dupla desvantagem para ela.

O que iria dizer? Precisava de argumentos consistentes e das palavras certas para convencer Amora de que ela só estava preocupada com o seu bem. Mas já era tarde. Os pés de Alícia foram mais rápidos que seus pensamentos. Ela estava em casa e com um plano inacabado. Não tinha mais nada a fazer, teria de servir.

Quando cruzou a porta, Amora estava bem à vista, espalhada numa cadeira, enquanto aguardava a irmã para que ela se sentasse na outra que estava à sua frente. O pai encontrava-se sentado no sofá, como o mediador da situação. A filha mais velha mal entrou e já assumiu seu posto.

- Muito bem... O que aconteceu? - Questionou Érico.

Alícia estava pronta para falar, mas como demorou para escolher as palavras certas, perdeu sua chance:

- Eu me exaltei! - Confessou a menina. - A culpa foi toda minha, fiquei muito nervosa e agi errado. Sinto muito por ter envergonhado a Alícia. Eu não queria isso. Na verdade, não era pra ela estar lá, mas que bom que estava, ela está certa, pai.

Alícia ficou perplexa. Desde quando Amora conseguia ser tão sensata e madura dessa forma? Impressionante.

- E você, Alícia, algo a dizer? - Questionou o pai.

- Oi? Eu? - Surpresa demais para falar qualquer coisa, ela tardou a escolher suas palavras. - Eu, eu entendo que ela se estressou... acontece.... Tudo bem, desculpas aceitas.

- Ok.... Posso subir? - Perguntou Amora.

- Claro que pode, querida.

- O quê? - Resmungou a moça.

- Você está bem, Ali?

- Eu.... Eu não entendi nada do que aconteceu aqui.

- Ahh! Isso? - Disse o pai aos risos. - Ela está bem mais compreensiva ultimamente. É, fazia tempo que ela não se metia em encrenca na sua presença. Bom, as coisas funcionam assim por aqui, agora.

- Não aconteceu nada! - A ruiva retrucou.

- Claro que sim. Ela reconheceu o erro. O que mais eu posso fazer? Garanto que ela não vai fazer isso outra vez e se fizer, eu abordo ela de outra maneira.

Alícia olhou-o desconfiada.

- Pode confiar em mim. E não seja tão dura com a sua irmã ela é uma boa menina também.

- Claro, nunca disse o contrário. - Comentou em voz baixa.

- Agora fica aqui calminha, que eu vou preparar o almoço. - Completou beijando-lhe a cabeça.

As horas passaram. A mãe chegou. Todos almoçaram juntos na mesa da cozinha sem trocar nenhuma palavra. Depois que as mais novas saíram, Érico relatou à esposa o ocorrido, mas ela também não o tratou como se fosse grande coisa. " Será que estão acostumados com isso, ou acham mesmo que ela não vai repetir e podem riscar esse tipo de comportamento da lista de coisas que ela ainda pode fazer? ".

A mãe agradeceu a filha por ter se desculpado com Julieta e disse que ela própria faria o mesmo mais tarde, quando tivesse tempo. Ela nunca tinha tempo.

Alícia estava incomodada. Não apenas pelo comportamento da irmã, mas pelo seu próprio. Era infantil achar que havia sido injustiçada, aquilo não era uma disputa entre ela e a irmã. Ainda assim, não conseguia parar de pensar nisso. Cansada, resolveu abrigar-se em seu quarto. Enquanto subia, cruzou com Amora na escadaria e apesar da maturidade em reconhecer a existência de pensamentos infantis e mesquinhos dentro de si mesma, não hesitou em provocar a irmã.

- Você está tramando alguma coisa e eu sei disso.

Amora não falou nada. Fingiu que não era nada. Alícia enfureceu, porém resolveu terminar o caminho sem outras provocações.

Existem duas maneiras de lidar com a raiva. De maneira explosiva, como Amora e de maneira sutil, como Alícia. Contudo, ser discreta não a tornava diferente e nem melhor que a irmã, ao contrário do que pensava.

Também existem duas formas de chamar a atenção. A primeira aos berros, como Amora fizera naquele dia e de maneira quieta, praticamente sem palavras, como ela, agora, passava a fazer. A garota sabia qual maneira seria eficaz com Alícia, acostumada à sua raiva, ficaria entretida com seu silêncio.

" Entretida ". Era mesmo a palavra certa? Você se entretém com um filme, uma boa conversa.... Ela estava incomodada.

" Você está tramando alguma coisa. " A voz de Alícia ecoou na mente de Amora e em seus pensamentos ela disse em resposta: Estou!

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Imagem de capa 

Créditos: Daniel Vega

Portfólio: xdanyart.artstation.com

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