Capítulo II : No rastro da gata

Amora não viu quando a chuva cessou, ninguém viu. Ela dormia na sala, enquanto seu quarto era ocupado por Alícia, a antiga dona. A chuva parou exatamente as três e quarenta e quatro da madrugada, um dos horários em que nada de bom acontece. Quatro horas depois, Amora acordou.

A garota comeu biscoitos com leite antes de pegar sua bicicleta e deixar a casa o mais rápido possível, sua missão era acolher Pandora após o longo período fora. No caminho, observou os efeitos do temporal: poças por todos os lados, árvores caídas e até muros derrubados. Deu uma longa volta na cidade até parar na venda do seu Carlos.

- Bom dia. - Disse ao homem, enquanto olhava as vitrines repletas de guloseimas. Seus olhos estavam alegres, mas seu tom de voz e seus gestos eram impassíveis como de costume.

- Como vai, querida? - Perguntou o homem de cabelos brancos. - Sua mãe esteve por aqui hoje.

- Sim, está é a semana do turno da manhã na farmácia. - Explicou sem responder à pergunta do homem.

- Entendo. O que vai ser hoje?

-Hmmmm... Acho que vou querer meia dúzia daquele chiclete bem azedo! - Falou estendendo uma nota de dois reais.

Saiu feliz com as moedas balançando no bolso e um saquinho marrom em mãos. Estava pegando a bicicleta quando uma voz dirigiu- se a ela.

- Olha quem tá aqui! Ameixa!

A menina bufou. Estava cara a cara com uma das pessoas mais desagradáveis da sexta série.

- Oi, Caíque. Tudo bem? - Perguntou revirando os olhos. - Fingindo que esqueceu meu nome, é?

- Esquecer o nome de uma amiga como você, Acerola? - Disse colocando o braço em torno do pescoço da garota, tentando alcançar o saquinho com os doces.

Ele era bem maior que ela, de modo que Amora pendeu um pouco para a direção oposta a ele.

- Se você queria um, era só pedir! - Esbravejou quando percebeu que ele tentava pegar os doces. Tirou-os de seu alcance e saiu ela mesma de sua direção.

- Ahh... Você me dá um, Abacaxi? - Perguntou envolvendo-a novamente.

- Abacaxi. - Sussurrou tentando conter a raiva. - Abacaxi já é demais! Por que você não cai fora ?! - Vociferou cravando seus olhos nos do garoto, antes de afastar-se mais uma vez e ir em direção à sua bicicleta.

Furioso, ele foi em sua direção. Empurrou-a, pegou os chicletes que caíram no chão e saiu correndo.

Por sorte, Amora usava uma mochila, que amorteceu a queda. Ainda assim, ela não era capaz de impedir que a garota se sentisse atordoada.

Ficou alguns instantes de olhos fechados, quando os abriu, deparou- se com pernas, que achava ser de Caíque. Tentou agarrar seus tornozelos sem se levantar ou vislumbrar sua face. Contudo, estava tão tonta que não conseguia alcançá-los.

- Ele se foi. - Disse-lhe a figura.

- Como é? - Perguntou ainda tentando alcançar aqueles calcanhares.

- Ele foi embora. Você precisa de ajuda? - Questionou abaixando-se um pouco. Amora pôde ver que não era ninguém que conhecia. Teve um sobressalto.

- Me desculpe, eu não queria te assustar. Deixa eu te ajudar. - Sua voz era calma.

Amora nada respondeu. Apenas levantou-se rapidamente para evitar qualquer tipo de ajuda.

-Aiii! - Gritou a menina já de pé, colocando a mão na cabeça. A figura adiantou-se, mas ela fez um sinal para que parasse. - Eu te conheço? -Questionou olhando para o garoto que parecia ser de sua idade.

Ele tinha cabelos cacheados castanho escuro, assim como seus olhos, e sua pele era pálida.

- Não, não. Eu tô aqui tem pouco tempo. Sabe essa última chuva? - Amora balançou a cabeça positivamente - Ela acertou a gente em cheio.

- A gente? - Questionou erguendo uma sobrancelha.

- Ah, minha mãe. A gente estava na estrada quando tudo começou... foi mais seguro parar aqui.

- Ah! - Ela exclamou tão alto que o garoto deu um salto- Você se escondeu aqui dentro durante a chuva, não é? - Disse apontando para a venda.

- S-Sim... Como você sabe? - Questionou-a um tanto envergonhado.

- Meu pai me contou tudo. - Respondeu satisfeita.

-Ah sim! Seu pai nos indicou o caminho para o hotel! - Exclamou ao visualizar em sua mente a semelhança entre pai e filha. - Diz pra ele que o Hugo disse obrigado de novo.

-Claro, Hugo. - Disse a garota pronunciando o nome dele de tal forma, como se quisesse analisar a pessoa por meio daquelas letras amontoadas, que apareciam em sua mente e se manifestavam ali pelos sons.

- E você é?

- Eu? Amora. - Disse finalmente subindo na bicicleta.

- Amora?

- Amora! Algum problema? - Questionou encarando-o.

-Não. Problema nenhum. É diferente, né? Combina com você.

- É, combina. - Concordou olhando para a rua, sem prestar atenção em que estava concordando.

- É....Você tá indo pra algum lugar, não?

- Eu tenho uma missão, Hugo. - Disse de modo a incitar a curiosidade do novo amigo.

- E que missão seria essa?

- A recepção de uma velha amiga! - Sorriu e o garoto sorriu de volta.

- Ei, Amora, seu braço! Tá sangrando! - Exclamou chamando a atenção para o antebraço da garota.

- Tudo bem. Só ralou um pouco. Estou bem. Até outra hora! - Exclamou já distante em seu veículo.

- Até! - Hugo concordou acenando.

Amora riu consigo. Era estranha a situação, não estava acostumada a estabelecer grandes diálogos como aquele na rua, muito menos com alguém de sua idade. O encontro com Hugo deixou-a mais leve, após a aparição do desagradável Caíque. Agora estava pronta para rever Pandora.

Não demorou nem cinco minutos para chegar no lugar de sempre, o beco da gata. O lar de Pandora. Amora desceu da bicicleta e a encostou em uma das paredes, apenas aguardando a aparição da amiga felina. Pouco depois ela surgiu, saindo detrás de caixas de papelão, próximas à uma caçamba com entulho.

- Olha quem apareceu! - Comentou ironicamente a menina.

Pandora tinha um jeito quase humano de agir. Suas passadas eram seguras e seus olhos verdes faiscantes tinham um tom de insolência e desafio. No momento, contudo, seu olhar estava um tanto vazio e o seu passo contido. Parecia uma gata qualquer.

- O que houve com você? - Perguntou abaixando-se e acariciando a felina.

O olhar de Pandora se alterou com aquelas palavras. Carregava mais uma vez humanidade, mas uma humanidade com melancolia impregnada.

Foi então que Amora notou, um detalhe crucial e que por pouco não se mantivera desapercebido. Com um balançar de cabeça da gata que ronronava, a garota pode ver o que lhe pendia do pescoço. Um sininho dourado, preso a uma coleira vermelha.

Como não reparou antes?

Uma coleira? Justo nela, a gata sem dona.

Qualquer um teria tratado como algo no mínimo normal. "Alguém deve ter pegado ela pra criar", os pais falariam. Ou: "O dono deve ter finalmente a encontrado". Mas não ela. Amora sabia o que aquilo significava.

Com cuidado, aproximou-se da coleira e contemplou o sino dourado. Analisando- o com atenção, encontrou exatamente o que procurava. Podia ver claramente a letra J inscrita no sininho dourado.

Tentou tirar o objeto, mas Pandora recusou.

- Você quer ficar com... Com essa... coisa amarrada em você! - Exclamou com raiva. - Por isso você sumiu, Pandora?!

A gata obviamente nada disse, porém, Amora também não foi capaz de inferir nada pelo seu olhar.

- Está bem, fique com isso como prova. Eu não vou fazer nada pra te impedir.

Pandora miou em acordo.

- Claro, porque se eu tentasse na força você me arranharia. E seria maus tratos com você. E eu nunca faria isso. - Completou acariciando-a - Mas agora eu preciso resolver essa situação!

Subiu na bicicleta e refez quase todo o caminho, pedalando muito rapidamente. O destino desejado, no entendo, não era sua casa. Ela teria que fazer mais uma parada primeiro.

A raiva é um sentimento complicado. Ela nem sempre consegue se converter em algo bom por completo. Amora estava devidamente mais calma quando encontrou Pandora, mas aquele simples objeto brilhante a fez recobrar toda sua fúria.

Ela não pensou duas vezes quando parou em frente à fonte de toda a sua revolta. Em frente a uma casa, cuja frente possuía uma grande roseira com pequenos botões brancos e em frente a ela, havia uma figura com roupas pretas e galochas azuis.

- Você devia ter vergonha do que fez! - Exclamou a garota.

- Como é? - Perguntou a moça de longos cabelos castanhos e olhos claros que se assemelhavam à duas bolinhas de gude.

- Você sabe do que eu tô falando. A minha gata! Você não tem vergonha de pegar, sumir com ela e ainda por cima pendurar aquela porcaria no pescoço dela?

- Olha queridinha, eu não sei do que você está falando. - Disse tentando passar. Amora bloqueou a passagem.

- Você não vai passar. - Falou num tom alto, mas firme.

- Amora...

- Você não vai passar! - Gritou. Naquele momento, algumas pessoas da rua pararam para olhar.

- Amora... - A figura repetia tentando dialogar.

- Você não sai daqui até me contar o que fez, Julieta!

- Por que eu contaria pra você? - Retrucou num tom de voz baixíssimo.

- O que você fez com ela ?! - Gritou ainda mais alto.

-Amora !!

- O que é?! - Vociferou virando-se na direção da voz. Era Alícia, parecia estar ali há tempos.

- Pega suas coisas e vai pra casa. - Advertiu aparentemente tentando controlar a própria raiva.

- Mas...

- Não fala comigo, só vai pra casa.

Amora obedeceu. Saiu pedalando sem olhar para trás uma única vez. Alícia ficou sozinha com a figura.

- Me desculpe. Ela é bem difícil às vezes.... Quando insiste em uma ideia é difícil desistir...

- Tudo bem. É como eu falava pra ela. Não tenho o que contar, porque não há história nenhuma a ser contada. Eu não sei o que ela vai falar pra você, mas você sabe Alícia, que eu não fiz nada.

- Claro, claro. Eu entendo perfeitamente.

- Que bom. Você é sempre tão sensata. - Elogiou sorrindo. - Você deveria se apressar, parece que vai chover. - Completou abrindo o guarda-chuva vermelho.

- Claro, claro. - Balbuciou a ruiva observando o céu.

O sol nunca estivera tão brilhante e as nuvens nunca estiveram tão longe.

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Imagem da capa

Créditos: ???

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