Esperança na Farda - continuação
— Eu não tenho palavras para agradecer! — diz emocionada e com lágrimas nos olhos.
— Não foi nada, toda a situação me ensinou muitas lições!
— Fico feliz! — Ela sorri.
— Vamos, vou levá-los em casa.
— Obrigada! — Ela parece sem graça. — Talvez tenhamos que ir para um abrigo. — Tranco a mandíbula.
— Por quê? — Ela aperta os lábios.
— Eu estava para ser despejada... Bem, é que meu marido morreu em um acidente há pouco mais de quatro meses. E-eu já estava grávida e havia saído do trabalho, o dinheiro do seguro foi todo para pagar as dívidas, eu ainda não consegui me desfazer das coisas dele. Eu só tinha meu marido e...
— Tudo bem! — Ela começa a chorar e esconde o rosto no pescoço do bebê. — Vamos até lá primeiro, além do mais você precisa pegar suas coisas, certo?
— Sim, obrigada de verdade! Você está sendo um anjo em nossas vidas.
— Não precisa agradecer, todos já passamos por coisas difíceis na vida, é sempre bom ter um ombro amigo!
— Verdade.
— Você é daqui? — pergunto curioso, chegando até o carro abro espaço para que Ellen entre e entrego o seu bebê, ajudo Clara a entrar no banco de trás e coloco o cinto de segurança nela.
— Nós somos órfãos! Eu e meu marido. — Meu coração dá um pulo surpreso. E o pensamento de quantas pessoas tem uma história de vida assim passa pela minha cabeça, eu me sinto triste. Agora os filhos dela são órfãos de pai e dependendo da gravidade do ferimento dela, teriam a perdido também. — Está tudo bem — ela diz diante do meu silêncio. — Nós fomos muito felizes apesar das dificuldades. Tentamos sempre não pensar na tristeza de ter vivido sem pais e sempre fomos agradecidos por termos tido um ao outro. Foi importante viver com alguém que se importava. Quando saímos do orfanato, nos casar pareceu tão certo, e foi mesmo. O último ano foi difícil, ele perdeu o emprego, e... a moto era o que ele tinha para trazer comida para casa e pagar o aluguel. Mas ele sofreu o acidente e não restou mais nada dele. — Ela aperta os lábios e as lágrimas escorrem, ela olha para as crianças e sorri triste. — Estou sendo injusta, não é? Eles são tudo o que tenho! — Clara se aconchega mais na mãe e ela beija a testa da menina.
— Desculpe, eu fiquei um pouco pensativo, costumo ficar assim às vezes! E, você parece ter tido uma vida tão difícil, mas não desiste! É realmente inspirador! — Minhas palavras saem roucas, fora dominada pela emoção de ouvir sua história.
— As dificuldades nos tornam mais fortes! — Ela dá de ombros. — Mas não quer dizer que nunca pensei em desistir, esse pensamento se esvaiu a partir do momento em que refleti sobre o sentido da vida, se desistir fosse o certo não existiria o "continue" nos jogos de vídeo game! — Ela sorri e Clara a acompanha.
— A mamãe sempre me diz isso quando não quero fazer dever de casa.
— Um jogo de vídeo game te fez refletir o sentido da vida? — Continuo parado e sem fechar a porta do carro, ansioso pela conclusão daquele pensamento.
— E por que não? Afinal, a vida não é um jogo? — Ela dá de ombros e sorri. — Um jogo muito difícil de vencer inclusive! — Sorrimos.
— Com certeza! — digo fechando a porta de trás. Vou para o meu lugar e dou partida no carro. — Se... — começo sem saber como prosseguir, e Ellen me observa. — Se não tem ninguém, como vai sobreviver daqui para frente?
— Eu tinha um plano provisório. No dia do assalto... — ela para pensativa — estava indo na casa de uma pessoa que conheci na internet, ela acolhe pessoas, mas não é abrigo, mas ela exige algumas entrevistas, não gosta de colocar pessoas estranhas em casa.
Eu nunca tinha ouvido falar disso.
— Ellen, como sabe que isso é seguro?
— Não sabia, Enzo, mas eu estou desesperada, não posso morar na rua com meus filhos! — Ela funga forte e eu assinto.
— Tudo bem, desculpe. É que como policial eu tendo a ser desconfiado com pessoas bem intencionadas, assim do nada? Sem cobrar?
— Ela disse que tem muito dinheiro e que quer ajudar quem precisa. Há muitos depoimentos na internet sobre a casa dela.
— Certo. Depois me passe esse site, vou averiguar! — Ellen sorri. — O que foi?
— Está sendo cauteloso de novo.
— Desculpe, mas estou realmente preocupado com a situação de vocês. Eu vou falar com a minha mãe. Ela tem algumas casas que aluga às vezes... Acho que...
— Não quero incomodar!
— Não é incômodo! Será um prazer ajudar!
— Obrigada! — Ela funga emocionada, e eu me sinto bem por estar fazendo algo para ajudar aquelas pessoas, uma luz parece ter se acendido em mim. Como se eu tivesse encontrado o motivo pelo qual devo viver daqui para frente.
Nunca na minha vida eu pensei que fazer um parto mudaria tanto minha maneira de pensar, mas mudou. Algo se acendeu dentro de mim e eu comecei a pensar em uma maneira de ajudar outras pessoas dessa maneira. Não fazendo partos, acho que não aguento outra rodada, sorrio comigo mesmo enquanto dirijo.
Ellen me contou um pouco sua história de vida, e eu fiquei impressionado com a força dela. Liguei para minha mãe naquele dia, expliquei a situação e ela ofereceu uma de suas casas de pronto. Disse que está orgulhosa por ter criado um bom homem, ia dizer a ela que eu já matei, mas preferi deixar aquele sorriso de orgulho preencher aquele momento em que tomei a decisão mais importante da minha vida.
Dois anos se passaram desde que Ellen entrou em minha vida e a virou de cabeça para baixo. De uma forma que me surpreendeu quando eu comecei a bolar todo um planejamento para montar minha ONG. Onde eu ajudo mulheres sozinhas e com filhos que precisam trabalhar, onde as crianças fazem atividades, se alimentam bem, brincam e tem toda uma assistência necessária enquanto suas mães trabalham.
Quando propus a Ellen que me ajudasse nesse grande projeto, o qual levou quase dois anos para se tornar algo concreto, ela chorou emocionada por ter sido a pessoa que me fez dar esse grande passo.
Continuo trabalhando na polícia, pois lá é onde eu consigo ajudar ainda mais pessoas de maneiras diferentes, claro, mas ainda sim, eu ajudo muito! E isso me faz sentir vivo e esperançoso por dias melhores.
Isso me fez acreditar em recomeços, e me fez ter esperança de que um dia o amor iria voltar a bater à minha porta de novo. Isso aconteceu, há um ano, quando Julie se declarou para mim e me chamou de tonto! Sim, foi assim que ela se declarou.
Sorri ao lembrar aquele dia que mudou ainda mais minha vida, me deixando em puro êxtase de tanta alegria.
Estávamos acabados no bar, depois de um plantão de 24 horas. Mas o barzinho de sexta era de lei, principalmente depois que comecei meus projetos, aquele era o meu momento para desestressar.
— E aí, Enzo, como está o projeto? — Julie perguntou sorrindo.
— Estamos conseguindo muitas doações, parcerias e a papelada para legalização já está pronta. Em breve iremos abrir as portas da "Crianças do futuro" — contei satisfeito e Julie sorriu.
— Sinto tanto orgulho de você, sabia? — ela disse pegando minha mão e depois soltou com um suspiro.
— Obrigado! — falei sem graça — Eu também tenho orgulho de você, é minha melhor amiga e, é incrível. — Ela me olhou um pouco chateada, o que eu fiz de errado?
— Quando pretende se declarar para a Ellen? — Estava dando um gole na cerveja quando ela disse isso e eu me engasguei, tossi tanto que quase que o líquido volta pelo meu nariz. Julie ria enquanto batia em minhas costas.
— Que diabos está falando? — Mais um acesso de tosse. — Ellen é minha amiga, não sinto nada diferente de amizade por ela, ok?
— Mas você sempre fala no quanto ela te ajuda, e tem as crianças, você é tão apaixonado por elas que até parece o pai! Só você não parece enxergar o que está embaixo do seu nariz. Você sempre foi assim, um tonto, Enzo!
— Espera. — Coloquei a mão na cintura. — Está me chamando de tonto por que não amo a Ellen como mulher? Eu a amo como uma amiga e tento protegê-la desse mundo que já foi tão maldoso com ela. Mas não tem nada mais além do que isso. Não faço ideia de por que você pensa isso!
— Porque você é um tonto, idiota, que nunca percebe um palmo a frente do seu nariz, Enzo, eu sou apaixonada por você há anos e você nunca me notou, nunca fez um comentário sobre eu estar bonita quando saímos, nunca tentou nada... — Ela respirou fundo tomando fôlego e por fim colocou a mão na boca chocada consigo mesmo. — Minha nossa, acho que bebi demais, me desculpa, Enzo, eu não deveria... — Ela tirou o dinheiro da bolsa rapidamente, deixou uma boa quantia em cima da mesa e saiu praticamente correndo. Eu pisquei por um tempo, chocado com o que Julie disse.
Ela sempre esteve ao meu lado, mesmo antes da Andréia, sempre me animando, sempre me aconselhando a seguir em frente, sendo o meu porto seguro, e eu sempre pensei que ela era uma amiga fiel, que eu devia respeito e consideração.
Penso nisso, vejo o quanto fui mesmo um tonto idiota, o quanto deixei me afundar em tristeza quando ela estava bem ali, ao meu lado, não me deixando fraquejar ou pensar menos de mim como homem ou pessoa. Julie, ela é a mulher da minha vida, sempre que a vejo meu coração acelera, e eu amo trabalhar com ela, vê-la todos os dias, chegar em casa, mandar mensagem e sair ás sextas à noite.
— Julie! — Saio correndo do bar para ir atrás dela, cheguei ao lado de fora desesperado e rezando para que ela não tenha ido. Julie dava partida no seu carro e eu fui até o veículo azul escuro, parando bem na sua frente. — Você não pode falar essas coisas e simplesmente me deixar igual um idiota para trás sem poder dizer algo!
— A partir do momento que o gato pareceu comer sua língua, eu posso sim, saia da frente!
— Só quando conversarmos.
— Tá, estou ouvindo, fale!
— Saia do carro! — Coloquei as mãos no capô e quando vi que ela estava saindo, me virei e sentei no mesmo. Ela se colocou ao meu lado de braços cruzados e ficamos em silêncio por um momento. — Me desculpe por ser um tonto, mas... Eu realmente não vejo um destino bom no amor, Julie, eu tenho medo de magoar e ser magoado de novo. E você é meu porto seguro, entende? A heroína que sempre vem me salvar no fim do dia do tédio, com suas piadas e esse jeitinho doce, um relacionamento complica tudo. Envolve tudo! Tudo que eu fujo há quatro anos. Eu te amo pra caralho, para deixar que tudo se esvaia assim pelos meus dedos, e sim, eu te amo como mulher! Mas, eu não acredito mais no para sempre, e se for para te perder... Eu prefiro ser apenas seu amigo!
— Aonde entra a minha escolha em sua decisão, Enzo? E se eu quiser tentar, e se eu prometer não te magoar e se eu acreditar que você jamais me magoaria? Nada disso importa nas suas decisões? — Julie chorava e me olhava com mágoa.
— Claro que importa, mas até esse momento achei que sentia tudo isso sozinho. — Me virei para ela com um sorriso maroto e ela me encarou com a testa franzida. — E se você quer meu coração e quer me dar o seu... quem sou eu para recusar?
— Um tonto? — Ela riu e eu a acompanhei.
— Deste jeito vou te largar na pista, marrenta! — Ela virou a cabeça para trás rindo.
— Duvido, eu também te amo! — Abracei sua cintura e a puxei para um beijo caloroso e intenso.
Aquele momento ficou marcado como um dos melhores da minha vida, e Julie nesse um ano só reforça o quanto o companheirismo é importante, a fidelidade essencial e a amizade um laço inquebrável.
Por duas vezes em dois anos eu fui salvo por mulheres, primeiro Ellen me fez ver um novo rumo em minha vida, me fez sonhar novamente e a acreditar na humanidade e depois Julie, que me fez voltar a amar e ser amado.
Elas me ensinaram que algumas coisas na vida nós só podemos aprender vivendo e se permitindo sentir o amor pelo próximo.
Confira esse e outros contos de autores diversos na antologia Heróis do Cotidiano.
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