Um monge teimoso
Não era a primeira vez que a Capitã visitava Lacoresh. A última vez foi há alguns anos. O tamanho da cidade sempre a impressionava e intimidava. Havia muita gente nas ruas, muito mais gente, desta vez, do que vira em toda sua vida. O ar cheirava a uma mistura de esgoto, peixaria e maresia. O grande farol e o palácio se destacavam na paisagem, mesmo ao longe, e o oceano azul cinzento se estendia imenso como pano de fundo. A quantidade de construções de três e quatro pavimentos também impressionavam, as ruas estreitas, mas cheias de gente davam uma sensação de sufoco, que seria pior, se não estivessem à cavalo.
– Não gosto desta cidade... – resmungou a Capitã.
Hégio Greyhill sorriu, pois era a primeira vez que ela puxava assunto – Não gosto de cidade alguma. Esse fedor... Não sei como aguentam viver aqui.
Ela concordou com um aceno.
– Ao menos a senhora tem seu véu para encobrir esse fudum!
Ela sorriu, mas ninguém via seus sorrisos, ou qualquer expressão que sua face manifestasse. Ela, por sua vez, observou bem o sorriso de Hégio. Era correto, com todos os dentes, e encantador. Se deteve observando seu rosto por uns instantes e respondeu mau humorada.
– Não encobre porcaria nenhuma!
– Que pena, se encobrisse, arranjaria um para mim.
Um rapaz com uma trave nos ombros carregando duas longas cordas com caranguejos vivos passou entre eles. As pernas peludas e as pinças fizeram a Capitã recordar-se de uma determinada estirpe de demônios. Sua expressão, se alguém pudesse ver seria de nojo.
Por outro lado, o guia expressou – Hum, que delícia! Ao menos aqui em Lacoresh come-se bem!
– Essas coisas são nojentas...
– São feiosos, mas muito gostosos. O que me faz pensar... Por que a senhora usa sempre esse véu?
– Já é hora de nos separarmos. – A Capitã desconversou desmontando da égua.
– Como assim? O que pretende fazer?
– Não é da sua conta, Greyhill! Procure uma estalagem com um lugar para os cavalos próxima ao mercado, mais tarde irei procurá-lo.
– A senhora é quem manda! Se cuide, essa cidade é perigosa.
A Capitã não respondeu, mas tinha para si que podia muito bem se cuidar. Agora já não estava muito longe do Templo de Uraphenes. Não era o maior dos templos da cidade, mas era a base dos sacerdotes brancos, inquisidores que exerciam o policiamento da pureza da fé dos cidadãos lacoreses. Era o único templo que não recebia fiéis para rezar ou fazer oferendas. E era nele que os prisioneiros da Real Santa Igreja eram mantidos.
No vestíbulo do templo, um jovem sacerdote estava sentado atrás de uma mesinha. Nesta estava apoiado um livro que ele examinava. Demorou um pouco para reagir à chegada da Capitã. Ele não chegou a perceber que ela era uma mulher.
– O que deseja, cavaleiro?
– Vim para ver o Prior Ormont. Tenho uma carta vinda de Kamanesh.
– Certo, mas antes de entrar, tire essa máscara.
Ela segurou-se para não retrucar, dizendo que era um véu, e não uma máscara. Então apenas o ergueu um pouco para que ele olhasse para ela.
– Deuses! Ponha de volta rapaz... É caridade sua poupar o mundo de tanta feiura... Quero dizer, não quis ofender.
– Não ofendeu. Posso entrar?
– Está só encostada – apontou para a porta de madeira pintada de vermelho vivo, mas bem descascada nas laterais e na parte inferior.
Ela empurrou a porta, muito pesada, que rangeu. Teve que colocar força para fechá-la novamente. Estava quieto ali dentro. Perto dela estava escuro, mas podia ver várias fileiras de bancos vazios onde os fiéis se sentavam nos dias de culto. A luminosidade aumentava mais adiante, próximo do altar. Nele, havia uma velha escultura de Uraphenes, um deus rechonchudo e musculoso numa pose estranha, como se fosse perder o equilíbrio, mas ao mesmo tempo, sua expressão era plácida, olhando para o infinito com seus olhos de pupila miúda. Ela perdeu a noção do tempo observado a estátua e se assustou quando alguém a tocou.
– Como é seu nome, rapaz?
– Eu? Hã, estou procurando o Prior Ormont.
Ela examinou o sacerdote e não gostou nada de sua expressão. Tinha um manto branco e luvas brancas. O rosto era rosado, cheio de marcas de expressão e os olhos estreitos reluziam num azul intenso. Tinha uma cabeleira loira bem penteada e no topo da cabeça uma solidéu branco oval. Apesar das marcas no rosto, não parecia ser velho.
– O Prior está ocupado, mas sou seu principal assistente, Exorcista Anupe DeGrossi, mas pode me chamar de Ékzor DeGrossi.
– Trouxe uma carta do conselho de Kamanesh, assinada pelo Príncipe Edwain endereçada ao Prior Ormont. – ela mostrou o canudo com selo real em cera azul.
– Dê-me aqui, eu cuido da correspondência do Prior. – o sacerdote foi rude e tomou-lhe a carta. Quebrou o selo e pôs-se a ler seu conteúdo. Lá pelas tantas exclamou num misto de indignação e de escárnio – Extradição do Monge Yaren? Há! Essa é boa.
– Estou certa de que devemos levar em conta a opinião do Prior.
DeGrossi ficou vermelho – Ora, de certo que não! O julgamento do herético Yaren já está marcado. Não pode ser removido sob hipótese alguma! Espere aí, você acabou de dizer certa?
– Certa?
– Sim, por acaso é uma mulher?
– Sim.
– Vestida como um cavaleiro? – o sacerdote uniu os dedos e agitou-os num gesto característico de benzimento. – E ainda me mandam uma mulher vestida de homem como mensageira? A gente de Kamanesh está mesmo perdida... Já vai passando a hora da Real Santa Igreja se reestabelecer por lá!
– E quanto ao Prior, quero vê-lo.
– Você não quer nada, mulher! Leve a seguinte resposta ao conselho: Não!
A Capitã respirou fundo e o fez novamente. Fazendo assim conseguiu afastar a ideia de sacar sua espada e degolar aquele sacerdote arrogante num golpe fácil.
– Escute aqui, Ékzor DeGrossi. Só vou sair daqui depois de falar com o Prior Ormont. – Sacou sua espada e tocou a ponta dela no pronunciado pomo de adão do sacerdote. A cor de seu rosto se esvaiu e seus lábios tremeram.
– Mas que gritaria é essa no templo sagrado de Uraphenes! – veio a voz rouca e firme do velho que surgiu de trás da estátua do deus. Ele forçou a vista e não teve dúvidas. – A senhorita deve ser a Capitã, não é mesmo? Vamos, por favor, guarde esta lâmina, que a casa de um deus não é lugar para isto!
– Vamos irmãos – disse DeGrossi – essa herege Kamanesa precisa ser expulsa do templo.
– Ora vamos, irmão DeGrossi, sem mais esse assunto de herege, sim?
– A carta – ela apontou – era para o senhor, mas...
– Decá isto aqui, irmão DeGrossi!
O sacerdote voltou a corar, ficando roxo de raiva, mas entregou a carta ao seu superior.
O velho colou o rosto no pergaminho para conseguir ler e resmungava enquanto o fazia.
– Veja bem, Capitã, temo não poder atender o pedido aqui expresso. O julgamento já está marcado.
– Mas...
DeGrossi estampou um sorriso vitorioso no rosto. – Como eu já lhe disse, Capitã, o pedido de extradição está negado, certo? Então se nos dá licença, temos mais o que fazer.
– O Monge Yaren está aqui? Será que ao menos posso vê-lo.
– Ora não... – dizia DeGrossi, mas Ormont elevou sua voz e disse – Sim, minha filha, já que veio de tão longe, é o mínimo que podemos fazer. Venha comigo.
O exorcista pôs-se a seguí-los, indignado, mas foi enxotado por Ormont. – Irmão DeGrossi, quer ser um bom assistente e ir até meu escritório cuidar da correspondência? Eu levarei a Capitã para ver o prisioneiro, está bem assim?
– Sim, Prior Ormont, como quiser. – A bochecha do sacerdote sacudia de raiva, olhou-os por uns instantes e pensou. "Não vejo a hora de você morrer, velho maldito! E aí, as coisas vão mudar muito por aqui, ah se vão!" Como ele não tomava cuidado algum com tais pensamentos, a Capitã pode ouvi-los claramente.
A Capitã seguiu o velho que andava com alguma dificuldade. Tomou coragem e disse – Desculpe dizer isto, Prior, mas aquele homem o quer ver morto.
Ao ouvir aquilo o velho deu uma gargalhada – Ora esta! Mas não é que é verdade?
– E o senhor não vai fazer nada?
– Se os tempos fossem outros, talvez... Mas mesmo um sujeito rancoroso como o irmão DeGrossi, faz-se necessário frente aos perigos que nos cercam.
– Entendo.
– Sabe Capitã, talvez você possa salvar a alma do pobre Monge Yaren.
– Salvar, como?
– Na verdade, ele é um ótimo rapaz. Não faria mal a uma mosca... Por outro lado, tem uma língua muito solta. E teve a péssima ideia de vir aqui pregar nas ruas de Lacoresh. Ele tem algumas ideias que eu considero... excêntricas, mas inofensivas.
– Então por que ele está preso?
– Sou apenas o prior desta pequena ordem sacerdotal, Capitã. O rapaz incomodou bispos e o próprio patriarca. O povo quer vê-lo julgado e queimado. Entretanto, se ele reconhecer em público que tudo que disse era um equívoco, que aceita a Real Santa Igreja e seus valores, ele talvez possa ser poupado... Ou no mínimo dizer que aceita a Igreja de Kamanesh.
– Vou falar isso com ele.
– Ora, eu mesmo já não o fiz? A cabeça dele é dura como uma ripa de aço. Mas eu sou um lacorês, talvez ele lhe dê ouvidos...
– Eu duvido, mas vou tentar.
***
A Capitã penetrou na cela onde Yaren era mantido. Na verdade, não era uma cela de prisão, mas um claustro. Um simples dormitório com uma estrado de palha, um penico com tampa e um pequeno criado mudo. A Capitã já havia o visto de longe, certa vez, pregando nas ruas de Kamanesh. Ele era magro, pálido e tinha parte dos cabelos raspados, como procediam os monges de sua ordem. Seus olhos eram escuros, mas tinham um brilho incomum, como se transparecessem inteligência, ou grande fibra.
– Monge Yaren, tudo bem?
– Sim, estou ótimo!
– Não parece ótimo... Sou a Capitã, já deve ter ouvido falar em mim.
– Ah sim, quem não a conhece em Kamanesh? O que a trás aqui?
– O senhor.
– Não sou senhor algum. Pode me chamar de você, ou Yaren.
– Vai ser morto, Yaren. É isso que quer?
– O que eu quero é dizer a verdade.
– Não vê que assim, a única coisa que vai conseguir é morrer?
Ele deu com os ombros e sorriu. – Não tem problema. Eu volto e começo tudo de novo.
– Volta?
– Sim, este corpo é que vai morrer e não o meu espírito. Com ele, posso voltar a nascer e dar continuidade à minha missão.
– É? – ela disse muito desconfiada. Não fosse pela formação que recebeu de sua tutora, aquilo teria soado como loucura. – E que missão é essa?
– Transmitir a verdadeira mensagem de Deus.
– Deus? Quer dizer, dos deuses, né?
– Não, falo de Deus, o único.
A Capitão resmungou – Já entendi por que eles querem queimar você...
Ele deu com os ombros. – Não tem problema.
– Você é louco! – Disse com convicção. – Mas recebi uma missão e não pretendo retornar a Kamanesh de mãos vazias.
– Se pretende me arrastar, saiba que não vou com você.
A Capitã compreendeu por que Kandel a havia escolhido. Ela suspendeu o véu e disse a Yaren. – Olhe bem em meus olhos.
O monge encarou-a, como que encantado e assustou-se quando ouviu pensamentos dentro de sua cabeça. "Você virá comigo, Yaren, de um jeito, ou de outro!"
Poucos, fora de Kamanesh, tinham uma boa noção de que alguns de seus cavaleiros eram muito proficientes na manipulação das energias do Jii. Mas o caso da Capitã era diferente, ela não era apenas proficiente, também era poderosa; uma mestra em manipulação mental.
Antes de modificar a mente de Yaren, ela se lembrou do apelo de sua tutora: "Lembre-se minha filha, não é certo tirar o livre arbítrio de um outro ser. Talvez, não haja crime mais abominável que este".
E a Capitã pensou, "Desculpe-me, minha senhora, este é apenas mais um crime com o qual terei de lidar".
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