Um bendito aliado

A Capitã se esquivava das anotações deixadas por Nathannis. Elas faziam volume e incomodavam carregadas na bolsa a tiracolo. Ela sabia que ler tudo era importante, mas estava protelando novamente. Desta vez, a justificativa era fazer uma visita ao monge Yaren. Lalith, sua mentora espiritual enfatizara que ele precisava ser protegido como se fosse o próprio rei. Mas como faria isto? Talvez Hégio pudesse ajudá-la...

Teve que perguntar aqui e ali, mas ele não era uma pessoa difícil de encontrar. Encontrou-o próximo a uma taverna, nos estábulos, onde cuidava de seu cavalo.

– Capitã? Estava me procurando? É para marcarmos um almoço, ou jantar? – Hégio era todo sorrisos.

– Nada disso, Greyhill.

– Eu tive um sonho...

– Opa! Isso é coisa boa, foi com...

– Quieto homem! Apenas escute!

Hégio deu com os ombros e fez um sinal para que aguardasse. Pendurou a escova e conduziu o cavalo de volta ao cocho.

– Vamos sair daqui, o ar lá fora é mais agradável.

Ela retomou o assunto – O fato é que penso que Yaren possa estar em perigo.

Hégio gargalhou – Pois eu tenho certeza! Ele já foi preso e quase perdeu a cabeça por causa de suas pregações, pelo que estou vendo, tem muita gente, até aqui em Kamanesh que não gosta nada dele.

– Sei disso, mas duvido que gente daqui faria algo contra ele. Haveria muito a perder.

– Isso depende. Coisas podem ser feitas e ninguém ficar sabendo de nada, sabe como é.

– Sei. Mas há o meu sonho. Sonhei com aquele sacerdote lacorês, Anupi DeGrossi. Ele dava ouro para um trio. Não pude vê-los bem, mas pareciam soldados, ou mercenários.

– Um trio, você diz.

– Sim, pessoas vindas de fora. De Lacoresh.

– Certo, posso dar uma olhada nisso. Mas quer um conselho, amorzinho?

– Não me chame assim, nunca mais! Está ouvindo? – A Capitã disse encolerizada.

– Desculpe, escapou, não vou repetir, juro! E sobre o conselho – ele foi dando mesmo sem que ela dissesse que o queria – arranje um jeito de convencer o monge a ficar uns dias com você no castelo. Com tantos Patos Negros lá vai estar mais protegido dos tais mercenários...

– Isso é ótimo Hégio! Como não pensei nisso antes?

– Tenho lá minhas utilidades...

– Não me referia à sua sugestão, mas algo que acabou de me ocorrer.

– O que?

Ela deu um sorrisinho sarcástico que ele não pode ver, mas percebeu em seu tom de voz – Ora, não é de sua conta.

– Claro!

– Os três mercenários, sim? Vai ver isso para mim?

– A troco de que?

Ela atirou a sacolinha com moedas para atingí-lo na face, mas os reflexos de Hégio eram muito bons e pegou-a no ar.

Ela riu e seguiu seu caminho. Ele não pode ver, mas jurava que ela estava sorrindo e de bom humor.

***

A capitã encontrou Yaren. Estava abrigado entre os Naomir. O rapaz estava suado e um pouco sujo. Tinha aceitado trabalho duro em troca de estadia ali. No passado, andou falando bobagens demais e o líder da ordem expulsou-o. Mesmo não gozando mais de status de irmão, havia quem fosse simpático à sua pessoa, ou mesmo, a algumas de suas ideias extravagantes. Usava um manto simples e surrado e agora se parecia mais um camponês do que um monge.

Yaren limpou o suor da testa e sorriu – Capitã? Está um lindo dia, não?

O céu estava cinzento. Ela apenas deu com os ombros e disse – Monge Yaren, vim por que preciso de sua ajuda.

– Pode me chamar apenas de Yaren, nem monge mais eu sou, tive até que entregar meus trajes.

– Sinto muito por isso.

– Ah, não tem problema. Sinto até um certo alívio. Não devo obrigações a mais nenhum irmão superior. O negócio todo agora é entre eu e o Todo-Poderoso.

– Certo.

– Eles me proibiram de pregar em praça pública também, ou em tavernas, bem, praticamente em qualquer lugar.

– Quando foi isso?

– Anteontem. Pensei que todos em Kamanesh já soubessem disso.

– Eu não estava... – A Capitã pensou melhor e decidiu ir direto ao assunto. Tirou as anotações de Nathannis de sua bolsa à tiracolo e deu-as ao ex-monge.

Yaren olhou para os papéis intrigado.

– São anotações do Cavaleiro Nathannis. Venha comigo.

– Espere um pouco. Preciso avisar ao irmão Teol que me ausentarei. Ele tem sido muito bom para mim, sabe?

A Capitã apenas acenou. Ficou observando o pequeno mosteiro. Era uma construção nova e muito simples. Não abrigava mais que trinta monges. Os Naomir, em outros tempos, foram uma ordem grande, com centenas de membros. Após a queda do império, a ordem ressurgiu, mas apenas no reino de Kamanesh.

Yaren voltou com o rosto e braços limpos, e como de seu feitio, sorrindo.

– Não esperava que fosse tão difícil para as pessoas assimilar o conceito de perdão, digo, perdão verdadeiro e irrestrito.

– Seu coração é muito mole, Yaren, e o de todos os demais, nestes tempos sombrios, estão endurecidos.

– É verdade, Capitã. Tem razão.

– Então, vou lhe explicar tudo. Talvez você precise ficar uns dias conosco no castelo...

– Ah sim, sem problemas. Dormirei onde quer que a vontade do senhor me levar. Na verdade, já estava esperando sua visita.

– Mesmo?

– Ah sim, vi isso nas minhas orações matutinas. A próxima tarefa de Deus para mim é aliviar um pouco o peso de seu coração. – Yaren elevou e sacudiu um pouco as anotações de Nathannis.

– Você é cheio de surpresas Yaren.

– Não sou eu, é Deus.

Nisto, se aproximavam dos portões do castelo. Yaren olhou para a imponência da construção e pensou como Deus era grande e fazia obras magníficas através dos homens.

— Antes de entrarmos há algo a combinarmos.

— Sim, Capitã?

— Sobre o que vamos investigar. É preciso absoluto sigilo. Você deverá conversar sobre isto apenas comigo e com o conselheiro Kandel.

Ele sorriu — Posso fazer isso.

A Capitã se pegou sorrindo sob seu véu. Ela se perguntava como podia haver alguém assim como Yaren, tão alegre, bondoso e até, inocente. Nem mesmo sua mestra Lalith transmitia tanta beatitude.

Dois sentinelas cumprimentaram a Capitã com o sinal de armas e deram passagem à dupla. Atravessaram o pátio e, para surpresa da Capitã, se depararam com Kandel. Estava todo encapotado o corpo coberto por uma capa marrom.

— Capitã, Yaren! Que fortuito!

— Olá, conselheiro. — o rapaz cumprimentou.

— Pensei que Yaren poderia ficar conosco uns dias para nos ajudar. — ela explicou.

— Ótimo! Estou certo que suas habilidades serão de grande ajuda. Quando eu retornar, nos falaremos.

— Por que a pressa? Algum problema?

— O de sempre: política. Me convidei para participar de uma reunião extraordinária entre o conselho da nobreza e dos tecelões.

Yaren não compreendeu. — Se convidou?

— Sou membro do Alto Conselho, posso participar de qualquer reunião, gostem disso ou não.

— Problemas? — indagou a Capitã.

Kandel riu. — Nunca estamos livres deles, não é mesmo? — acenou para os dois e partiu.

Yaren pressionou os lábios e disse — Não sou afeito à política, mas escutei coisas preocupantes nestes últimos dias, entre os monges.

— Coisas?

— Sim. Falam sobre a possibilidade de guerra entre Whiteleaf e Lacoresh.

— Fique tranquilo então, Yaren, já se fala nisso há anos e nada aconteceu.

— Sim, mas já se perguntou o porquê?

A Capitã não fazia ideia. Na verdade, entendia pouco de política. Toda sua vida estava ligada a ideia esconder sua identidade e treinar para ser forte o suficiente para proteger Kamanesh. Mas sua recente viagem a Lacoresh a fez começar a pensar em outras coisas.

Como ela não respondeu, Yaren disse:

— O Rei Dwain era apaziguador. Era dele que emanava o ponto de equilíbrio.

Sim! Aquilo fazia sentido. Então ela se deu conta que a defesa de Kamanesh não era mais uma simples questão de força militar. O exército de Kamanesh não era o maior, mas ela tinha confiança na superioridade dos cavaleiros formados pela a academia. Combinavam as habilidades de guerreiros, mentalistas, magos e clérigos. É certo que havia uns poucos destes em Lacoresh e Whiteleaf, mas não se comparava ao números que tinham em Kamanesh. A ausência do Rei Dwain daria oportunidade a Lacoresh ou Whiteleaf de convencer o governo de Kamanesh a tomar um partido. Ela confiava em Kandel, mas nem um pouco em outros conselheiros, tais como Fyorg Yourdon e Ruy DeVance.

— Melhor deixar as questões políticas nas mãos de Kandel, não é mesmo? — Sugeriu Yaren.

Ela suspirou. Pensar naquilo tudo dava um nó em sua cabeça e trazia angústia.

— Sim, Yaren, bem colocado. Vamos, quero que você examine as anotações de Nathannis. Temos nos concentrar em descobrir o assassino.

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