Tomo dos Mil Demônios

Edwain estava muito cansado naquele dia. Foi mais um dia que começou com correria, pois havia acordado um pouco tarde. Não comeu direito e correu muito para chegar antes dos portões se fecharem. Para piorar tudo, estava com uma tremenda dor de cabeça.

Desde a expulsão de Mark, nunca mais o vira. Sua rotina simplesmente não permitia. Acordava, passava no Lorcas, ia às aulas, voltava ao Lorcas, estudava um pouco e de lá retornava ao castelo. Era o oitavo dia da semana e Eduard havia combinado com Tíghas de procurar Mark no dia livre.

Pela manhã, tiveram aulas com os mestres Farkas e Crafith. Eduard se destacava como melhor da classe em esgrima, mas não estava conseguindo avanços nas práticas do Kishar. Numa luta era bem capaz de se concentrar, mas as práticas de Kishar eram meditações, respirações e coreografias nas quais não conseguia se concentrar. O mestre havia passado vários exercícios de concentração, mas a cabeça de Edwain estava cheia demais de problemas.

No almoço, sentou-se numa mesa com Tíghas e Francel. Ed olhava para Arifa conversando com Tarpin e outros alunos de ascendência nobre que estavam em outra mesa.

Tíghas sacou o ciúmes de Eduard e disse — não pode culpá-la, Ed.

— Hein?

— É natural pras mulheres o alpinismo social.

— Alpinismo social?

— Nossa Ed, as pessoas de Whiteleaf são todas imbecis ou é só ocê?

Eduard corou, mas não fazia ideia do que ele estava falando.

Francel, em geral era muito quieto, mas resolveu falar.

— Ele quer dizer que ela está entre os nobres na esperança de fisgar algum para um casamento.

Edwain repeliu aquela ideia com asco — Argh! Vocês dois não conhecem ela! Isso não tem nada a ver com ela, fiquem sabendo.

— Que falou foi ele! — defendeu-se Francel.

Eduard encarou o colega irado. Ele tinha lábios finos, rosto corado e cabelos loiros desbotados. Era muito magro e alto demais para os seus quatorze anos.

— Tá na cara que o Ed tá apaixonado pela guria, Fran.

Eduard ficou vermelho e sentiu as orelhas queimando — Não é nada disso...

Tíghas deu uma risada e cutucou Francel que riu também.

— É claro que não! — Tíghas era pura ironia.

— Não fica assim, Redwall, acho que metade da classe tem uma queda pela Arifa, afinal, é a única menina da classe.

— Eu pegaria, é claro — explicou o lacorês — mas ela é convencida demais pro meu gosto.

Ed tentava olhar para sua comida, que não era de todo ruim, mas bem pior do que tinha costume de comer no palácio. Mas seus olhos não resistiam e espiavam o que Arifa estava fazendo. Numa destas olhadelas, notou um aluno com a gola do uniforme vermelha entregar uma sacola para ela. Ela agradeceu com um gracejo meloso o que fez o estômago de Ed encolher.

— Os golas vermelhas são do sexto ou sétimo? — ele indagou.

— Sétimo. E aquele gringo se chama Keldron, eu acho. — explicou Tíghas.

— Olha quem fala — zombou Francel. Ele se referia ao fato que Tíghas era lacorês, mas a separação dos estados havia ocorrido há menos de vinte anos, de forma que muitos lacoreses, kamenenses ou nortenhos (como agora se referiam às pessoas de Whiteleaf) não se consideravam estrangeiros entre si.

sabe o que eu falando, olha a fuça de homenaseano do rapaz.

Sim, podiam notar as feições incomuns do aluno do sétimo ciclo. Era magro, rosto pálido, lábios grossos e cabelos negros enrolados. Ele tinha um sorriso simpático, mas ver aquilo apenas ampliava o ciúmes que Eduard sentia.

— Como é que você sabe o nome de todo mundo, Tíghas? — indagou Francel.

O rapaz respondeu mastigando — Eu sempre thô anthênto, shó isso.

Eduard ainda tentava se habituar com os modos de Tíghas. Nunca antes havia convivido com alguém assim, e até mesmo os criados do palácio tinham modos exemplares.

Arifa se levantou e veio na direção deles. Isso fez o coração de Ed disparar. Ele começava a perceber que realmente estava apaixonado pela garota.

— Oi pessoal.

— Oi — os outros dois responderam juntos, mas a voz de Eduard engasgou e não conseguiu dizer nada.

— Já terminou, Ed? — era uma pergunta retórica, seu prato estava vazio.

— Sim.

— Ótimo! Vem comigo, tem uma coisa que eu quero te mostrar.

Tíghas abriu um sorriso maroto e cutucou a canela de Ed sob a mesa. Ele fechou a cara para Tíghas e se levantou.

— Vem também, Francel? — ela chamou. Era óbvio para Tíghas que estava ficando de fora por que iriam frequentar uma classe separada. Ele iria para as classes de nivelamento enquanto eles iriam para algum outro estudo mais avançado.

— O que quer me mostrar? — Ed indagou assim que saíram do refeitório.

— Agora não dá, logo mais.

Não havia tempo sobrando. Logo chegaram à sala no segundo andar. Era a aula do irmão Meinard. Ele os recebeu simpático e sorridente. Como de costume, pediu para que lessem algo e meditassem para discutirem posteriormente. Assim que ele começou a roncar, Arifa tirou um livro da sacola e colocou sobre a mesa.

Ela estava excitada e sussurrou — Olha só Ed!

— O que é isso? — Ele olhou para o livro de aparência sinistra.

— O Tomo dos Mil Demônios!

— Como conseguiu isso?

— Com um carinha do sétimo ciclo.

— Em troco de que? — ele deixou escapar.

— Ora, não é de sua conta! Mas deixa estar, olha só isso!

Eduard ficou pensando besteiras. Não compreendia bem ainda o que se passava consigo. Nunca havia sentido aquelas coisas antes. Por que estava irritado com Arifa a respeito daquilo? Não era por obter um livro ilegalmente. Ele próprio estava cursando a academia ilegalmente. Não conseguia parar de pensar no sorriso do tal Keldron.

O livro continha muito texto, mas também, muitas ilustrações. Ela estava folheando e olhando as figuras, cheia de curiosidade.

— Espere — ele disse um pouco mais alto do que devia, mas isto não acordou Meinard.

Ela lançou um olhar recriminador. Ele engoliu seco, sentia-se muito desconfortável ao encarar aqueles olhos grandes e bonitos.

— Afinal, o que foi? — ela quis saber, falando baixinho.

— É que eu já vi este demônio, foi o que entrou na to... — ele se deteve. Quase deixou escapar que foi o demônio que entrou na torre no dia do ataque. — Digo, que entrou na cidade. Eu vi alguns cavaleiros combatendo-o. Foi muito assustador.

Eduard leu avidamente e Arifa o acompanhou.

"Vanush. Demônio de classe zimbroniana. Ranque seis. Tipo raro. Lúcido, cruel, escamoteador, farejador e portador de falsa couraça. Atuam como batedores, infiltradores e espiões. Se despojado de sua couraça, pode ser extremamente perigoso. Capaz de possessão física e onírica. Os vanush foram usados com sucesso por Lorde Grevos para invadir ou comprometer desde acampamentos até cidadelas fortificadas. Fraqueza: fogo. Sinais da possessão física podem ser encontrados no corpo da vítima. Locais típicos: axilas e virilha".

Arifa virou a página.

— Esse é bem parecido. — ela observou.

"Sagabaunush. Demônio de classe zimbroniana. Ranque cinco. Tipo raro. Semi-lúcido, cruel, violento, sedento por sangue e encouraçado. Combatentes muito velozes. Fraquezas: fogo e relâmpago".

Ao virar a página ela virou o rosto em repulsa — Eca. Coisas nojentas! Esses desenhos me parecem bem exagerados!

— Mas não são desenhos. Os magos tem um processo de transferir as imagens que viram para o papel.

— De onde você tirou isso, Ed?

Ele deu com os ombros. Na verdade, sempre estava aqui e ali escutando pessoas importantes em inúmeros banquetes e outras ocasiões formais. Era um passatempo escutar sobre assuntos diversos, mas sempre que havia magos discutindo, Edwain escutava com atenção especial.

— Onde você estava quando viu aquele demônio, Ed?

— Eu estava, é... — tinha dificuldade para mentir, ao menos para ela.

— Perto do palácio?

— Bem, sim, mas por que a pergunta, Arifa?

— Não posso contar tudo, Ed, mas estou ajudando uma pessoa a investigar a série de assassinatos no palácio.

Ele ficou totalmente atordoado com aquela informação.

— Série? — Até onde sabia apenas duas pessoas haviam morrido. O cavaleiro Nathannis e o vice-conselheiro do comércio.

— Não está sabendo? Acharam a terceira vítima nesta madrugada.

— É? Quem foi a vítima?— ele morava no palácio e não sabia nada sobre aquilo, mas também, saia tão rápido e tão cedo que não deve ter tido a chance de saber sobre essa nova vítima.

— Outro cavaleiro. Foi encontrado morto em sua cama.

— Mas como sabe disso?

— Não posso dizer. Todos estão falando em conspiração. Em espiões de Lacoresh e Whiteleaf infiltrados, mas para mim, não é nada disso.

— Você acha que isso é coisas de demônios. — ele deduziu.

— Sim. Não vê, existem dezenas de tipos de demônios que poderiam estar fazendo isso.

— Está sugerindo que há um demônio infiltrado no palácio, me desculpe Arifa, mas isso soa ridículo. Não acha que os Blackwings já o teriam localizado?

— Bem, não viu o que acabamos de ler sobre aquele tal Vanush? É um infiltrador. Na verdade, nós conhecemos pouca coisa sobre demônios em geral. Os tipos que os necromantes do velho imperador usava eram poucos, segundo sabemos. Agora que há novas hordas vindas do leste, há chance de que confrontemos tipos sobre os quais sabemos muito pouco.

Ed lembrou-se do demônio que invadiu a torre. Nathannis e a Capitã derrubaram-no do alto da torre, mas ele teria morrido com a queda? E então Ed ficou branco. Gelou ao perceber que aquilo podia ser mesmo verdade. Lembrou-se da voz horrenda do demônio. Disse que queria o princepezinho para si. E ainda, falou numa tal de Lorde Grevos. E depois disso, Nathannis foi morto. Aquilo podia ser vingança. Isso significava que a Capitã poderia estar em perigo...

Arifa ficou apreensiva ao vê-lo descorar. Tomou sua mão.

— O que foi, Ed?

Mas então, ela sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Suou frio e olhou para ele assustada. Imagens estranhas vieram à sua mente. Coisas que ela não estava habituada a ver e tãopouco interpretar.

— Que foi? — ele perguntou alto demais desta vez.

Meinard acordou num sobressalto.

— Ah sim, obrigado, Redwall. Sim, está na hora da discussão.

Então ele encarou a mão de Arifa sobre a mão de Eduard. A careta do professor fez com que ela corasse recolhesse a mão. Meinard segurou um risinho. Depois olhou para o fundo da sala com interesse.

— Francel! — ele gritou.

O rapaz levantou a cabeça da carteira e limpou a baba que escorria da boca.

— Quantas vezes eu já disse que somente eu posso dormir nesta classe!

A turma caiu na gargalhada. Todos exceto Arifa. Ela examinava o resquício das imagens que vieram à sua mente quando tocou em Eduard. Ela viu um garoto de cabelos escuros e com a fisionomia muito diferente de Ed. Quem seria? Seu irmão, um amigo? Tinha a sensação de que era alguém muito íntimo dele. Alguém que sofria. Dor. Ao mesmo tempo, uma sensação de prazer. Aquela visão era muito confusa e perturbadora.

Lembrou-se sobre a conversa que tivera com o Mestre Crafith. Ele a chamou depois da classe para discutir seu potencial para o Jii. Ela já conseguia efeitos físicos nos exercícios do Kishar, mas ele percebeu que ela poderia ir além daquilo. Ele disse que iria marcar uma entrevista dela com o Mestre Dornall.

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