Revelações
A relação entre Yaren e o vanush capturado evoluía bastante nos últimos dias. Yaren havia conseguido mostrar ao demônio quem ele era antes de cair. Suas suspeitas estavam corretas, a alma que fora corrompida pertencia a um elfo. Ele havia lutado contra os demônios durante a grande guerra na Era Maldita. Ele era um batedor e espião chamado Rolnirir. Fora um importante agente e pessoa de confiança a serviço do famoso general élfico Raastad. Mas, sofreu muitas perdas na guerra. A primeira delas, seus companheiros do exército. A maioria de seus grandes amigos morreram, um de cada vez, ao longo da aquela longa campanha que durou centenas de anos. Depois, viu a queda de sua cidade natal, em Nelfária. E com ela, sua família. Perdeu a esposa, três filhas e netos.
Um demônio horrível, chamado Lorde Grevos havia capturado a alma de seus entes queridos e as usou para convencê-lo a trair seu povo, mudar de lado na guerra. Ele queria, sobretudo, as filhas e os netos de volta, mas a única coisa que ganhou trabalhando para o demônio, foi ver, todos eles sendo torturados, e alguns deles sendo convertidos em demônios. O que o fez enlouquecer. Depois ele mesmo tornou-se um demônio.
Reviver tudo aquilo, estava sendo extremamente doloroso para Rolnirir, mas ao mesmo tempo, contava com apoio e compaixão por parte de Yaren que o ajudavam a suportar aquela dura prova.
— Amigo Rolnirir, sei que é tudo muito difícil...
— Não me chame assim! — o demônio respondeu o raiva e frustração.
— Negar quem verdadeiramente é, não vai levá-lo a percorrer o caminho necessário. É preciso ter coragem...
— Eu não tenho isso, monge! O que eu tenho, em minhas costas, agora mais que nunca, é o peso de minha traição, de meus crimes, de tantas mortes que provoquei.
— Não podemos mudar nosso passado. O que está feito, ficou lá atrás. Mas podemos mudar o futuro. Não é fácil, mas é possível.
— O que devo fazer?
— Deve confiar em mim. Assim como eu confio em você, amigo Rolnirir.
— Confiar? Há! Vejo o tanto que confia em mim. Conversando comigo aqui, todo amarrado...
Yaren se aproximou e com a chave, liberou os grilhões encantados que prendiam o demônio, um a um.
— Pronto, agora está livre.
— Você é um tolo, monge. Não vê que qualquer um que confia num demônio está condenado?
— Estou? O que vai fazer comigo? Possuir e usar meu corpo? Me matar? Fique à vontade. — Yaren abriu os braços e o encarou, olhos nos olhos.
O demônio sentia muita raiva fervilhando dentro de si. Sim, o mataria. Mataria por enganá-lo, fazer se lembrar de tantas coisas que trouxeram imenso sofrimento. Pensava em como iria fazer isso. Em como seria divertido vê-lo implorar. Vê-lo decepcionar-se com aquela irritante confiança que depositava naquele deus. Mas então, a porta se abriu e uma figura entrou ali.
Era um homem. Rolnirir nunca o havia visto, mas Yaren o reconheceu. Era Mollom, o assassino feioso que queria estripá-lo. Ele carregava um gancho afiado na mão e sorria de modo maligno para Yaren.
— Ah, finalmente vou arrancar suas tripas, monge maldito! E o melhor, vou receber bem mais por isso.
Rolnirir o examinou. Não era apenas um homem maligno que estava ali, andando na direção de Yaren. Era também um demônio. Um vanush, como ele, que estava estirado colado no corpo de Mollon, escondido sob o largo casaco de inverno. Somente um vanush conseguia olhar e reconhecer outro de modo fácil e transparente, pois conhecia exatamente todos os segredos para se manter oculto.
Yaren fechou seus olhos em prece. "Parece que chegou minha hora, Senhor. Rogo-te que me acolhas na luz, à qual tenho convicção de pertencer".
— Não — disse Rolnirir rugindo, falando a língua dos demônios. — O monge é meu! Meu! Seu desgraçado! — e saltou contra a garganta de Mollon dando uma mordida violenta que arrancou, metade da carne do pescoço. O assassino caiu de costas no chão, em convulsões. Rolnirir sabia que tinha pouco tempo para agir. Que logo, o vanush se desconectaria de seu hospedeiro e seria um oponente difícil de confrontar. Sentia que ele estava melhor nutrido e em forma física superior. Então, saltou contra a parede do recinto e cravou as unhas nas pedras. Enfrentou seu medo de fogo e retirou dali o archote, levando-o com cuidado até o corpo de Mollon, que ainda estrebuchava, asfixiando-se no próprio sangue que descia da garganta para os pulmões. Ateou fogo nas roupas dele e ao ver as chamas crescendo, escutou o grito de agonia do outro vanush.
Yaren abriu os olhos e viu a cena. Rolnirir encolheu-se e ficou num canto, com medo do fogo.
— Ele vai se libertar, monge! Faça alguma coisa! O fogo não está crescendo, vê!
Yaren viu o outro vanush se esgueirando para fora do casaco de Mollon, seu olhar parecia confuso, havia medo, havia ódio.
Yaren então recorreu aos Sagrados Ofícios. — Que Deus o perdoe, pequeno demônio. Que ele lhe proporcione a chance de redenção. Flamare Ictem Allum!
Então as chamas tímidas que queimavam as roupas de Mollon cresceram até formar uma pira alta e forte. O vanush, ainda preso ao corpo do assassino gritou e se retorceu, mas em poucos instantes, voltou a silenciar.
Rolnirir, apavorado, se espremeu contra a parede assumindo uma forma achatada.
— Por favor, não me queime, Yaren. Eu imploro, não me queime!
— Eu não o queimaria, amigo Rolnirir. — Yaren tossiu forte. — Não depois de tudo que conversamos nessas duas semanas. Eu quero ajudá-lo, confie em mim.
E então, com as chamas ali defronte dele, um pouco de suas aspirações e ideias malignas evaporaram. Ele olhou nos olhos de Yaren e viu ali bondade, viu esperança.
— Flama Estapta! — comandou Yaren e o fogo se extinguiu de imediato. A fumaça fedorenta tomou todo o cômodo, fazendo Yaren e Rolnirir tossirem.
— Vamos amigo — Yaren ofereceu a mão ao demônio.
O apêndice que mais poderia se parecer com uma pata segurou a mão de Yaren. Juntos, os dois deixaram o cômodo.
O subterrâneo da academia era muito pouco frequentado, em especial, naqueles dias. Yaren conduziu Rolnirir para seu quarto, e lá convidou-o para se sentar.
— Ficarei melhor deitado no chão — respondeu o demônio. Yaren notou que ele não possuía algo semelhante a uma bunda para sentar numa cadeira.
— Obrigado, Rolnirir! Obrigado por salvar minha vida. — disse Yaren com lágrimas nos olhos.
O demônio não sabia que aquele corpo era capaz, mas lágrimas também se formaram em seus olhos. Era bom, sentir, depois de tanto tempo, a boa sensação da gratidão. A sensação que sentimos quando ajudamos outra pessoa.
— Estou muito feliz. Você deu o primeiro passo importante para sua libertação. Não é só isso, Deus está lhe dando uma outra oportunidade de ajudar, neste momento. Não só a uma pessoa, como eu, mas a oportunidade de ajudar milhares de pessoas. Oportunidade de colaborar para salvar um reino inteiro.
— Sério? Como assim?
— Agora que deu o primeiro passo na direção do bem, você deve falar. Conte-me tudo o que sabe? Qual era sua missão aqui em Kamanesh? O que sabe sobre os planos de Lorde Grevos para nosso reino?
Rolnirir suspirou. Um som monstruoso saiu de sua boca irregular. — Certo, vou falar, monge. Só espero que esteja certo, pois se não estiver, um destino terrível me aguarda nas garras de Lorde Grevos.
Yaren assentiu enquanto servia um pouco de água.
— O que Grevos queria era controlar o reino, do lado de dentro. Torná-lo um parceiro na nova campanha contra Nelfária. A campanha que falhou da última vez. A campanha para conquistar os portões de Brás Niairia. O plano inicial era fazer isso através do jovem príncipe Edwain. Teria dado certo, mas houveram imprevistos. Eu não tive acesso a ele de imediato. E depois, quando tive, ele já estava frequentando a academia, recebendo instruções, aumentando sua fé em si mesmo. Isso tornou uma possessão definitiva, cada vez mais difícil. Então, comecei a ter problemas. Desconfiavam de minha presença. Primeiro, o Cavaleiros Nathannis. Tive que matá-lo. Mas logo, a Capitã e Kandel assumiram as investigações. Eu não podia ser descoberto. Percebemos que íamos falhar com o príncipe e precisamos mudar de plano. Então, iniciamos outros assassinatos com o objetivo de desestabilizar o reino. Eu queria incriminar a Capitã, mas possuí-la fisicamente era impossível. Mas ela tinha suas fraquezas. Assim, conseguir penetrar em seus sonhos e plantar dúvidas sobre si mesma ali. Quando matei Henyl, usando o corpo de Edwain, disfarcei os rastros. Gerei imagens na vítima que sugeriam o envolvimento da Capitã. Quando Galdrik investigou, as sementes que plantei nos sonhos da Capitã, fizeram surgir suspeitas. Ela própria suspeitou de si mesma. Devo admitir, eu sou muito bom nisso. De outro lado, nossos esforços para penetrar em Lacoresh, fracassavam, sempre rechaçados pelo Príncipe Kain, mas encontramos menos resistência em Whiteleaf. Quando Whiteleaf começou a cair em nossas mãos, pensamos tirar proveito da instabilidade política. Havia Fyorg Yourdon, um sujeito leal apenas para com o lucro de sua corporação. Um homem que já vinha negociando com Whiteleaf, que queria estabilidade para dar continuidade nos negócios. Mas também um idiota, que não soube costurar o terreno de modo adequado. Falhou em cooptar DeVance e teve que matá-lo, contratando um assassino. Ele acabaria entregando seu envolvimento com Whiteleaf, e informações sobre outros infiltrados dispostos a virar a casaca, quando o momento chegasse. Então, também tive que matá-lo. Ainda consegui usar o príncipe, mais uma vez. Deixei rastros. Se descobrissem que o herdeiro prometido era um assassino, a instabilidade iria recair sobre Kamanesh nos favorecendo. Então Kain se intrometeu e o príncipe encontrou uma saída. Dissolveu os conselhos e nomeou Kandel como comandante do reino. Conquistar Kamanesh, com o mínimo de perdas, ficava cada vez mais complicado. Então, surgiu uma grande oportunidade o próprio Kandel. A solução esteve tão próxima, ele não tinha defesas. Eu testei e vi que poderia tornar a possessão permanente, mas o maldito Zéfiro veio e estragou tudo. Ele quase me pegou. Escapei por pouco. E quando tudo pareceu ficar mais difícil, ganhamos um prêmio, Jon Tarpin, caiu do céu, casou-se com a princesa, era o comandante natural. Ambicioso, mesquinho e fácil de possuir. Foi com ele que me vinguei de Zéfiro. Aquilo que ele havia feito não podia ficar sem uma resposta, podia? Agora as coisas estavam se ajeitando novamente. A Capitã havia sumido, e voltou, do nada! Bem, foi fácil tirá-la do jogo. Mas então, outro imprevisto. Seu amigo, Ékzor DeGrossi. Ele me achou, não é? E pronto, aqui estou.
— Eu não fazia ideia... Para falar a verdade, metade do que contou, não faz muito sentido para mim... Mas acho que faria para alguém que esteja acompanhando todas as intrigas políticas do reino. E agora, quais são os planos de Grevos?
— Não sei ao certo. Imagino que tenha desistido de minimizar as perdas. Eu conquistaria Kamanesh usando as tropas de Whiteleaf e depois, só faltaria Lacoresh. O mestre se empenhou para disseminar boatos, intrigas que impedissem uma reunificação entre Lacoresh e Kamanesh. A verdade é que a força das hordas ainda é pequena. O ritmo de penetração nesse plano ainda é devagar. Não temos tropas para conquistar tudo e todos. Por isso, precisamos de reinos como os de vocês, para usarmos contra Nelfária. Vários reinos do leste, como Yrquônia já estão sob nosso controle, mas não queremos desperdiçar forças, não é?
— Acho que entendo. Não sei, mas estou certo que Darnell, Ivrantz e os demais, farão bom uso dessas informações.
— Ah, é melhor que façam.
— Há mais uma coisa.
— O que?
— A bússola. Grevos é sensível às falhas que levaram à derrota dos demônios na última guerra. Ele já está trabalhando na localização e aquisição de todas as armas e artefatos que foram produzidos pela aliança no passado. Há um, em especial, que merece atenção. A lâmina de Öfinnel.
— O lendário rei dos antigos?
— É, foi com tal lâmina que o Lorde do Submundo foi banido dessa terra. Ela se fragmentou. Um de seus pedaços, foi usado por um dos descendentes de Öfinnel para forjar uma espada. Ficou conhecida como Espada de Tarquis.
— Ouvi falar nele, era um caçador de demônios, que trabalhou por muitos anos após o fim da guerra.
— O mago, Kímel Lorual, que assumiu a antiga necrópole de Thoudervon, possuía a bússola. O artefato capaz de localizar os fragmentos da lâmina de Öfinnel. Lorde Grevos quer essa arma para si. Ele acha que com ela, poderá crescer. Tomar o lugar de seu superior, o Duque Zimbros, ou mesmo, do próprio Lorde do Submundo.
— Possuía?
— Ele a perdeu, recentemente. Mas isso não importa... O mais importante no momento é unir Lacoresh e Kamanesh. É a única chance que vocês têm de evitar cair nas garras de Grevos.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top